Um mundo além do mundo
A discreta guerra
Roran abotoou a túnica marrom, fixado em seu rosto no espelho. Tudo o que via era um homem cujas esperanças se esvaiam como o corado da pele e a massa do corpo. Já haviam passado cinco semanas... Cinco semanas desde que soubera da fuga de Ismira, e de seu desaparecimento. As buscas foram estendidas, mas nada acalmaria Roran enquanto ele estivesse num castelo e sua filha perdida ou até...
A porta do quarto bateu com emergência, mas não conseguiu desviar os olhos de Roran do rosto magro e amargo no espelho. Um longo suspiro escapou de seus lábios, e, aborrecido como uma fera que é acordada do sono, ele foi ver quem era.
O mesmo jovem que sempre significava a mesma coisa ao bater na porta de seus aposentos de manhã surgiu-lhe a vista.
– A Rainha não precisa mandá-lo todas as manhãs. – Disse. – Creio que posso direcionar-me sozinho para o café.
– Diga isso para ela, não para mim. – Respondeu com peito para quem lhe recebera com tanta timidez nas vezes anteriores. – Já está pronto?
Roran e Katrina desciam as escadas num silêncio que falava sobre as atuais circunstâncias mais que as palavras desesperadas de ambos. Ele tirava Katrina da cama todas as manhãs. E nesses momentos era mais terrível para ela do que o próprio Marbrayes que tomara Carvahall e fizera sua filha se perder pelo império. Acordar Katrina para um mundo onde Ismira era um mistério era a maior das crueldades.
A mesa do café era de um brilho dourado, mística. A variedade de frutas no centro da grande mesa, de todos os tamanhos, como um espetáculo de bolinhas coloridas, os pães com suas nuvens de cheiro, e ainda assim as pessoas que olhavam para Roran e Katrina certamente culpando-se por não poderem fazer nada para mudar o estado de espírito dos dois.
– Roran... – A rainha olhou-o não menos imponente que sempre, mas a dura expressão facial ainda deixava descoberto o incomodo ao olhá-lo. – Katrina. Bem... Comam. Existem coisas que precisa saber, Roran, não queria acordá-lo de madrugada. Será um longo dia.
Roran sentou-se à mesa com o pronunciamento da rainha. Ela não falava de Ismira... se fosse o caso, ela o teria acordado a qualquer momento. Ele segurou um suspiro de alívio e estresse, em iguais proporções, e encheu sua xícara com café.
– Diga-me, Nasuada, o que está havendo?
– Não aqui. – Disse ela, com os olhos de quem não havia dormido.
Jörmundur pigarreou e abocanhou um pedaço de queijo.
Quando o café terminou, o estomago de Roran era quase o mesmo de antes, e seu prato, intocado. Não era de comida que precisava, e sim de mensagens, informações, ou do próprio Albriech.
Roran posicionou-se à esquerda do trono de Nasuada, pronto para enfrentar os debates vagos que envolviam a Rainha em seu dia-a-dia. As coisas só decaiam. Os lordes governantes de duas cidades do império encontraram-se lá, em Ilirea. Suas cidades tiveram de lidar com múltiplos ataques, incluindo ataques internos. Os moradores eram o problema mais escorregadio em todos os casos.
– Teirm virou um caos. No dia em que viajei para cá me atiraram frutas podres e garrafas. – Dramatizou o filho do Lorde de Teirm. – Eram como selvagens.
O severo Lorde que governava Gil’ead chegou com o rosto sombrio, trazendo um ar gélido mesmo naquela manhã de início de primavera.
– Atearam fogo na prisão. – Disse. – Se as histórias sobre sua cidade forem verdadeiras, Martelo Forte, posso afirmar que em Gil’ead as coisas foram bem piores.
– Não pode estar acontecendo. – Nasuada pressionou o braço do trono com dedos desesperados. Se estivesse sozinha, estaria caminhando de um lado para o outro. – Nós estamos deixando o Império cair sem nenhum esforço... Os rebeldes estão sendo previsíveis, mas continuam avançando, qual o problema? Não entendo como suas cidades possam ter sido atacadas ao mesmo tempo por eles, não vejo como possam ter uma tropa tão grande. – Os Lordes abandonaram os olhares hostis para ouvir. – Não sei nem o que vocês fazem aqui, não deveriam ter abandonado suas cidades!
Roran forçou o maxilar.
– Este não é o ponto! – Fez-se ouvir. – Não importa quantos ataques eles façam, e não importa o quanto conseguirmos segurar nossos muros. – Abandonou a posição e caminhou até o centro do salão. – É claro que não estamos repelindo ataques de rebeldes... Nós estamos em guerra com alguém de nível considerável. Precisamos mover as peças certas. – Envolveu o queixo barbudo com a mão. – Eu diria que a melhor forma de proteger o Império para, assim, podermos revidar, seria fortificar as áreas atacadas e focar no próximo passo de Marbrayes. Não se esqueçam que temos Lemond, que poderá ser de grande aguda. – Suspirou. – Nasuada, podemos reafirmar a aliança com Surda, talvez seja a melhor forma de manter o Império. Talvez precisemos fazer isso a todo custo.
Nasuada estreitou os olhos amendoados. E calada permaneceu por tempo o suficiente para que as palavras de Roran não se tornassem irrefutáveis.
– Quero todos na sala de reuniões... Agora. Este dia não terminará sem que tenhamos tomado todas as providências. – Todos se encaminharam para a entrada do salão. – Você não, Roran. Aguarde um instante, preciso falar com você.
Nasuada levantou-se do trono assim que as portas se fecharam. Seu vestido verde escuro ressaltava sua pele escura tornando-a ainda mais desejável.
– O quê? – Roran aproximou-se.
– Você sabe que não posso reafirmar o acordo com Surda. Orrin não teve motivos para se desligar do Império.
– E o que você acha disso? – Roran não hesitou.
Nasuada franziu o cenho.
– Roran... Não pode ao menos citar isso. – Ela virou-se de costas. – Poderia causar um alvoroço.
– Está óbvio que Surda está envolvida com Marbrayes. Eu penso que você deveria falar com os Lordes das cidades Surdanas, e com o próprio Orrin... Ofereça-lhes tudo o que for possível. Se recusarem, teremos uma resposta sobre o que está acontecendo.
– Isto não está indo bem... Os ataques realmente chegaram a este ponto, Roran. Não imagino o que aconteceria se eles ainda o tivessem.
– Não importa... podemos parar isto. Os rebeldes existem desde que Galbatórix caiu. Sabemos como isso acabará. O momento que eles se colocam em linha de frente, é o momento que caem. A essa altura Haddes já deve ter Marbrayes encurralado. Ele não permaneceria no seu esconderijo correndo riscos, mas Haddes já sabe por onde procurá-lo. – Roran abriu um sorriso. – Sei que se manter preocupada é um ponto inevitável, mas você sabe que isto está praticamente acabado.
Nasuada pareceu surpresa.
– Você já pode acompanhar os outros Lordes... Iniciaremos a reunião o quanto antes.
Roran fez uma reverência e virou-se.
– Roran, espere. – Ela chamou-o. Quando ele virou-se, fitou alguém mais relaxado. – É bom vê-lo tão confiante.
Seu humor escureceu com a citação do seu estado de espírito. Nasuada não podia ter feito aquilo. Simplesmente saiu da sala.
Jörmundur esperava no corredor, trazendo muitos rolos de pergaminho e uma cara aborrecida.
– Você sabe que temos que despachá-los o quanto antes, não sabe?
– Jörmundur... Neste caso eu não deveria voltar para Carvahall? – Roran bateu de leve no ombro dele.
– Você é o braço direito de Nasuada.
– Vamos logo acabar com essa reunião.
*
– Não podemos pedir ajuda dos anões! Isto é loucura! – Disse o Lorde de Gil’ead. – Imagine a repercussão que isto causaria. Pedir a ajuda dos anões para resolver um problema com os Rebeldes?
– Não vejo o que mais podemos fazer. – Disse, frustrado, o senhor de Kuasta que chegara de surpresa algum tempo depois da reunião ser iniciada.
– Não estamos aqui para discutir o que faremos, e sim como faremos e quando... Tratem de descrever como estão aguentando suas cidades e de retornar para elas assim que isto estiver terminado! – Disse Nasuada, e bebeu um longo gole de chá.
A reunião seguiu-se com relatos ociosos, ate que Roran levantou-se, ganhando olhares.
– Não vejo minha utilidade aqui. – Disse torcendo os lábios. – Se me dão licença...
A manhã havia terminado ali para ele. Permaneceu em seus aposentos até que a utilidade lhe chamasse.
*
Depois do chá da tarde, Nasuada o forçou até o peitoril que dava uma ampla visão da cidade e seu movimento ao fim da tarde.
– Eles estão prontos para culpar alguém caso suas vidas caiam em desgraça. – A rainha lhe disse observando as pessoas que passeavam pelas calçadas com crianças ou com carros de comida, estrume e outras especiarias. Pessoas como Seu tio Garrow ou como qualquer outra pessoa, em busca de facilitar a vida sofrida. – Não importa para a maioria deles o que está acontecendo fora desses portões. Só chega a importar quando os portões são atravessados definitivamente. Sabe, Roran... isto me irritava antes, mas agora percebo que isto é algo valioso. Eles não têm nenhum tipo de preocupação a não ser com a própria vida e de seus filhos, e nosso dever como Governantes é fazer com que continuem assim... Nosso bem mais precioso, Roran, é a falta de preocupação dos cidadãos.
– Lhe compreendo, Nasuada. – Disse ele pondo as mãos no peitoril. – E não pode dizer que não estamos nos esforçando ao máximo.
– Nós... somos todos nós do Império. E, não, não estamos nem de perto, alcançando nosso objetivo. Hoje mesmo três Lordes saíram de suas cidades.
– Mas já retornam. – Protestou Roran. – E já estamos dando nosso primeiro passo para o fim de tudo isto.
– O fim disto demorará quantos anos, Roran? – Ela fitou-o com olhos amendoados castigados.
Roran forçou o maxilar.
– Você sabe que só deve se concentrar no que pode evitar, Nasuada. – Ele deixou a Rainha com seus pensamentos e dirigiu-se para dentro.
A mesa no centro mostrava o mapa da Alagaësia. Roran vinha olhando-o de canto de olho, e algo não saia de sua cabeça... Ele tinha um plano, mas não podia compartilhar ainda.
Aproximou-se da mesa, apoiando as mãos no mapa. Aroughs era uma cidade de difícil acesso... Mas era para onde Lorde Roran direcionava seus olhos cerrados.
– Roran? – Nasuada aproximou-se da mesa. – Algo em mente? – A Rainha também olhou para Aroughs. Era difícil esconder algo de Nasuada, mas Roran não falaria nada até Albriech chegar.
– Nada que já não pensamos... A estratégia continua a mesma. Apenas espere por Albriech, quando ele voltar, começaremos a nos preparar.
*
Katrina melhorara um pouco aquela noite. Tomara toda a sopa com pão que ele trouxera aos aposentos e conversara sobre a situação do Império. Roran até conseguira arrancar algumas risadas dela.
– Roran... Diga-me algo. – Disse depois de terminar a sopa. Ela havia comido como se fosse uma criança obediente, apenas para agradá-lo, talvez não o quisesse tão preocupado quanto ela. – Se Ismira ainda está por aí, por que ela não veio até a capital? Por que não veio procurar por nós? Foi isso que Albriech disse para ela fazer. – Ela segurou a mão dele. – Talvez... talvez devemos apenas nos conformar.
– Não diga isso! – Ele rosnou. – Pense, Katrina. Ismira é esperta, ela sabia que Ilirea era a opção mais óbvia, sabia que a capturariam se viesse para cá. – Ele rangeu os dentes. – E se eles tivessem capturado ela, já teriam usado-a contra mim. Ela ainda está por aí, eu tenho certeza. – Segurou forte a mão da mulher.
Roran não tinha tanta certeza do que dizia, mas precisava de Katrina com esperanças, se fosse mesmo seguir o que estava planejando.
*
Roran afastou os cabelos ruivos de Katrina do rosto e deixou-a dormir. Afastou-se cautelosamente e foi até a porta. Mas não era o mensageiro, e sim Jörmundur.
– Venha. – Ele sussurrou.
Roran o acompanhou sem perguntas. Foram até a sala do trono em plena madrugada. Os guardas abriram as portas revelando Nasuada e um visitante.
Era Albriech, e somente ele.
– Onde está ela? – Roran correu até ele e segurou seus braços. – Você a achou?
– Roran... fique calmo. Eu não a encontrei, mas sei onde ela está. – Ele ergueu um espelho. – Alguém quer falar com você.
Roran segurou o espelho e afastou-se. A face não o refletia, mas sim mostrava Orik, Rei dos Anões. Ele evidentemente encontrava-se em sua montanha oca, e tinha expressões preocupadas.
– Saudações, Martelo Forte! – Ele bateu no peito. – Sei que esteve preocupado...
– Eu estou preocupado, Majestade! – Interrompeu. – Você tem algo para falar sobre minha filha?
– Sim... Desculpe-me, Roran. – O anão deu um sorriso forçado. – Não precisa mais se preocupar, Ismira encontra-se aqui em Tronjheim, sã e salva.
Roran arregalou os olhos, absorvendo as palavras do Rei.
– Orik... onde ela está? Como ela chegou aí?
Orik virou o espelho e revelou sua filha. Sua pequena garota, sorrindo para ele e acenando, com lágrimas nos olhos.
– Pai, eu estou bem. – Disse ela com o seu sorriso que iluminava a vida de Roran. – Estou com saudades de você, onde está a mamãe? – Perguntou ela com a voz tremula.
– Ismira... – Roran tocou o espelho, aliviado. – Sua mãe está bem. A chamarei para que possa falar com ela. – Ele olhou nos olhos da filha, através do espelho. Ela parecia tão diferente... como se tivesse amadurecido um pouco ou... ele não sabia dizer. – Mas diga-me, como você chegou até as montanhas Beor? Você se machucou? Encontrou problemas pelo caminho? Por quê foi até a montanha dos anões?
– Pai... Eu estou bem. Tudo o que você precisa saber é isso. Não posso lhe dizer muito, e não se preocupe. A montanha é o lugar mais seguro para mim no momento. – Ela estalou os lábios mandando-lhe um beijo e sorriu.
– Ismira, eu... – Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, a imagem no espelho dissolveu-se, até voltar a refleti-lo. – Ismira? – Ele tocou o espelho, desejando mais tempo para falar com a filha.
Devolveu o espelho para Albriech franzindo o cenho, sentindo o corpo quente de euforia. Aquilo mudava tudo. Roran estava mais que feliz, e determinado. Sua filha estava bem. Um pedaço dele que havia partido voltara. Agora, Roran era um homem pronto para defender o Império.
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