Em algum lugar do Atlântico, 1926.

“Não faz sentido!” Lorde Roxton caminhava exasperado pela cabine, enquanto passava as mãos bronzeadas pelos curtos fios de cabelo castanho. “Não há lógica no que você está me propondo. Agora que finalmente conseguimos retornar a civilização você quer esconder nosso relacionamento? Há mais de um ano vivemos como casados...”.

“John, você não percebe? Londres não é como o platô. Existem conveniências na sociedade que devem ser seguidas. Você é um Lorde, tem um compromisso com seu título e com a sua família, e, além disso, você mesmo já me confessou que sua mãe preza pela manutenção dos costumes das tradições.” Marguerite ponderou de forma sensata. “Acho muito difícil imaginá-la satisfeita com o fato de seu único filho retornar concubinado a uma desconhecida com um passado como o meu.” Marguerite parou e tristemente acrescentou. “Ou pior, sem passado como eu”.

Roxton se comoveu com a tristeza na voz da mulher que amava, mas, ainda estava muito alterado para tomar qualquer atitude afetiva.

“Marguerite, isso é ridículo! Não estamos concubinados, e você sabe muito bem disso! Se não estamos oficialmente casados é porque não é fácil encontramos padres ou juízes no platô. Você deveria saber o quão profundo é o meu sentimento por você e eu nunca imaginaria colocá-la e uma posição que não fosse a de minha esposa.”

Marguerite sabia disso, mas, a reafirmação de Roxton fez seu coração aflito momentaneamente encontrar calma. Desde o momento que souberam que sairiam do platô, dúvidas e incertezas permeavam sua mente e seu coração. Ela não tinha ressalvas quanto aos sentimentos envolvidos na sua relação com John, porém, estava insegura sobre como seriam as coisas em Londres. Conhecendo a hipócrita aristocracia britânica, a herdeira sabia que não seria reconhecida como a esposa apropriada para um nobre da envergadura de John Roxton. Também era do seu conhecimento o remorso que assolava o coração do homem que amava por ter deixado sua mãe sozinha durante os anos que estiveram perdidos na América do Sul. Algumas vezes o caçador a confidenciou como sua mãe possuía uma postura austera e autoritária, mantendo sempre seus sentimentos sob seu controle, até mesmo com questões familiares. Lady Roxton sequer se admitiu se desesperar diante da morte de seu filho primogênito. Guardou pra si a dor da perda do filho e do marido em um curto período de tempo. Marguerite se perguntava se essa era a principal razão pela qual Roxton nunca se perdoou totalmente pela morte do irmão. A forma como a mãe encarava a tragédia a fez se afastar ainda mais do filho mais novo, e era como se além do pai e do irmão, Roxton também tivesse perdido o carinho da mãe. A herdeira sabia que isso o magoava demais e ela havia decidido que não seria um problema novo na relação de Roxton com a mãe. Ela estaria na retaguarda, enquanto o caçador e a mãe acertavam as diferenças, e, embora não fosse de sua natureza, ela mesma estava se permitindo alimentar esperança de ganhar a confiança de Lady Roxton antes de assumirem seu relacionamento. “Talvez os anos de solidão possam ter abrandado o coração rígido de Elizabeth e ela pode ter se tornado uma pessoa mais tolerante e flexível as convenções da sociedade”. Pensava Marguerite.

“John, eu também não consigo imaginar como serão meus dias sem a sua companhia, mas, será por pouco tempo. Apenas até o frenesi de nosso retorno se dissipar e sua mãe se acostumar com a ideia de ter uma nora.” Marguerite sorriu imaginando. “Depois teremos todo o tempo do mundo para viver nossa relação sem interferências”.

Roxton ainda não estava convencido se esta é era a melhor alternativa.

“Eu não sei, Marguerite. Não tenho um bom pressentimento com esse seu plano. Você sabe que mentir e manipular nunca foram meu ponto forte.” Roxton se arrependeu do que disse assim que as palavras saíram de sua boca. Não era sua intenção magoar a mulher que amava, mas toda essa conversa estava o desestabilizando. Ele notou o olhar magoado de Marguerite, mas optou apenas por interromper a conversa. “Eu preciso pensar um pouco sobre tudo isso.” Ele estava se preparando para sair da cabine a qual estavam dividindo a doze dias, desde que embarcaram no Rio de Janeiro com destino a Londres, quando Marguerite o interpelou.

“Por favor, fique! Eu saio. Preciso de um pouco de ar fresco, acho que estou desacostumada a viagens em alto mar, me sinto nauseada.”

O caçador concordou. Ele sabia que ambos precisavam de um pouco de espaço para processar aquela discussão antes que acabasse se tornando uma briga mais séria. No tempo que passou sozinho, Roxton pensou sobre o que Marguerite havia lhe dito. “Ela tem razão de certo modo” refletiu. Embora ele amasse Marguerite sem reservas, ele também conhecia o temperamento de sua mãe e sabia que impor uma esposa sem sua aprovação seria uma batalha perdida. Todos sairiam magoados. Talvez se sua mãe tivesse a oportunidade de conhecer a herdeira sem a pressão de um compromisso poderia reconhecer muitos de seus valores nela e logo se tornariam amigas, e assim seria muito mais fácil aceitar uma relação entre eles. Marguerite possuía todos os predicados para se tornar de uma dama da nobreza, disso não haviam duvidas, exceto pela obstinação difícil de ser controlada, mas isso era justamente o que mais o encantava nela. “Parece um bom plano” disse para si mesmo. Sua linda herdeira era uma excelente estrategista, ele tinha que concordar. Seria uma tortura se manter distante, mas ele pensaria em uma maneira segura de encontrá-la preservando o disfarce de bons amigos.

Em algum lugar do navio Marguerite observava a imensidão do mar. Infelizmente seu desconforto não estava colaborando com a apreciação da bela paisagem. Era a terceira vez que ela esvaziava o conteúdo do seu estômago naquele dia. Ela não se lembrava de ser tão frágil a oscilação do mar como agora. Com certeza a ansiedade do retorno a deixou mais susceptível. Engraçado como ela não conseguia pensar em Londres como um retorno para casa, ao contrário, tudo que conseguia imaginar é que uma vez na Inglaterra ela estaria novamente sozinha, ainda mais agora, depois do que havia proposto a Roxton. Uma sensação inesperada de vulnerabilidade tomou conta de seu coração e ela teve uma vontade incontrolável de chorar. “Droga! Essa é uma ideia ridícula! Roxton tem razão, é um absurdo ficarmos separados por um segundo sequer. Lady Elizabeth e a sociedade terão que se conformar com a nossa condição. Passamos muitos anos tentando persuadir nossos sentimentos para agora escondê-los como se fosse algo feio ou vergonhoso? Isso é ultrajante.” Pensando nisso Marguerite girou os calcanhares e marchou de volta pra a cabine, ela precisa urgentemente comunicar a Roxton que se arrependeu da sua proposta antes de magoá-lo verdadeiramente.

Ao abrir a porta do recinto Marguerite encontrou o caçador pronto para sair a sua procura.

“John!”

“Marguerite!”

Disseram ambos com surpresa e continuaram com sincronia.

“Preciso falar com você!” Os dois gargalharam e após um breve momento Marguerite prosseguiu. “Você primeiro...”

Roxton estava realmente interessado no que ela tinha a dizer, mas, a urgência do seu assunto ultrapassou seu cavalheirismo usual e então ele aceitou a cortesia da amada e continuou.

“Estive pensando e concordo com seu plano!”

“Como?” Marguerite parecia confusa.

“Bem, sobre o que falávamos anteriormente... eu concordo em fingirmos que não somos um casal, por enquanto”. Ele acrescentou. “Você está certa, não seria prudente chegarmos com uma novidade dessa magnitude depois de todos esses anos de reclusão.”

“Claro...” Marguerite concordou embora frustrada.

Por sorte, no telegrama que eu enviei a Londres quando chegamos ao Rio de Janeiro não mencionei o nosso relacionamento. Apenas informei do nosso retorno sem dar detalhes de qualquer outra situação”.

Marguerite ouvia a narrativa de Roxton tentando controlar sua própria respiração e batimentos cardíacos. Ela não queria deixar transparecer o quão decepcionada estava com tudo isso. Sua racionalidade, da qual ela sempre se orgulhou, estava sendo colocada à prova. Ela sabia que não havia nada demais no que ele estava falando, e que provavelmente ela teria feito o mesmo ao escrever um telegrama para sua família, se ela tivesse uma. Entretanto, sentiu seu coração apertado e confuso. O diabinho em seu ouvido esquerdo sussurrava que John não a mencionou na mensagem porque não tinha certeza de como fazê-lo, ou pior, tinha vergonha dessa condição. “Por que ele aceitou tão facilmente sua proposta?” ela refletiu de forma silenciosa.

Percebendo que Marguerite não estava mais na conversa, Roxton interrompeu o que dizia para perguntar. “Você está bem?”

Como num estalo, ela saiu de seus devaneios, mas não teve chance de responder a pergunta do homem a sua frente. Uma forte vertigem a dominou e a escuridão a abraçou.