POV Nora

Está escuro...e frio. Mas tem estado sempre assim. Dentro de mim nunca há calor, sol ou uma luz de qualquer tipo. A luz ao fundo do túnel para muitos é para mim nada mais do que um capítulo encerrado. Posso detestar a vida que tenho mas dou demasiado valor à vida para pensar no suicídio. Bem...isto não é inteiramente verdade. Eu já pensei nele e já afastei essa hipótese. Odeio sofrer e nada me garante que a morte seja indolor...e gosto demasiado de livros e ninguém me garante que eles existam do outro lado, seja lá o que aquilo for. O simples pensamento de não poder ler, nunca mais, é demasiado torturante. Os livros são a única coisa boa que conheço, permitem-me fugir de tudo inclusivamente "dela", o ser que não deve ser nomeado, mas também me mostram a triste realidade de tudo o que interiormente anseio e nunca poderei ter.

Talvez devesse fazer como as pessoas sensatas e fugir. Sei que um dia vou fazê-lo. Mas duvido que aguente muito mais. “Ela" tirou-me as mantas todas, com o pretexto de que é friorenta, e durmo num colchão mínimo junto a uma das janelas daquele apartamento gelado a que não consigo chamar casa. Sou obrigada a trabalhar que nem uma escrava e a enfrentar todos os dias o mundo cinzento, gélido, monótono e assustador em que todos somos obrigados a viver. Sempre através de grades, no apartamento ou na escola. É por isso que no intervalo do almoço faço como agora e fujo para a biblioteca...o sítio mais bonito que conheço de onde o cinzento foi totalmente banido, onde as estantes de mogno e os benditos aquecedores conferem ao seu silêncio de catedral um encanto, como que um prelúdio, para que possamos mergulhar nas maravilhas escondidas que contém aqueles livros. Suponho que não é preciso dizer que a biblioteca é a minha segunda casa, na verdade é o único sítio em que me sinto realmente em casa, e que a única altura em que posso cá vir é durante a hora de almoço, "ela" zanga-se eu passar na escola um segundo mais do que o estritamente necessário, e que por isso simplesmente não almoço...

No entanto hoje há algo a perturbar o silêncio perfeito da biblioteca. Um rapaz entrou e começou a falar com a bibliotecária. Apesar de normalmente ser a única que cá vem não sei o nome dela. Eu fujo das pessoas e confesso que invejo bastante aquela que tem o trabalho de guardar este lugar tão bonito. Ela já me conhece, entro, pego num livro, vou para o meu canto favorito, o lugar mais escondido que existe, leio, arrumo o livro e saio, todos os dias pontualmente. Não me incomoda e eu não a incomodo e gosto de pensar que é assim que a convivência deve ser... pacífica. Apesar de eu ter imenso medo dela, como tenho de toda a gente, sei que provavelmente é um dos seres vivos que menos me assusta. Mas o rapaz incomoda-me...que estará ele aqui a fazer? Não devia estar lá fora na cantina barulhenta que eu não suporto, a jogar à bola ou a falar com alguém? Tem mesmo de vir aqui? O único local onde ninguém desta escola vem, destruir o meu silêncio e a única hora do meu dia em que estou em paz? Eu sei que isto soa bastante egocêntrico mas tenho medo e não gosto da sensação. A biblioteca sempre foi o meu refúgio, o único lugar aonde nunca precisei de temer fosse o que fosse e de repente, a presença dele alterou tudo isso. Esforço-me por me concentrar e acalmar e deito-lhe uma última espreitadela...só uma, bem rápida para avaliar a situação. Ele é bonito, não da maneira típica, e parece emanar calor...tem uma voz suave, que não ergue demasiado, cabelos castanhos-escuros, e uns olhos que são autênticos poços de chocolate raiados de caramelo...como é que eu sei isto? Ele olhou para mim...

Fico imediatamente embaraçada e sinto as minhas bochechas a ferver. Tenho a certeza que já estou toda vermelha e apresso-me a olhar para o livro para disfarçar a vergonha. Ele vem nesta direcção…O medo inunda o meu sistema. Quero fugir, juro que estou a conter com todas as minhas forças o súbito e imperioso impulso para sair daqui a correr. Mas isso só vai chamar ainda mais a atenção para mim por isso controlo-me e consigo ficar quieta a olhar para o livro sem realmente assimilar o que está escrito. Estou demasiado nervosa com a sua presença, nem ler consigo. Ao longe não parece mas acho que deve ser um pouco mais velho que eu...Espero que não venha para ao pé de mim.

Mas as minhas esperanças caem por terra quando ele escolhe um livro, se senta perto de mim ainda que felizmente suficientemente longe para não barrar o meu caminho de fuga. Quando penso que as coisas não podem piorar oiço a sua voz que me diz baixinho:

– Tem calma. Eu não te vou morder. Chamo-me Lucas.

Eu corei…Ainda mais se é que isso é possível. Mas ele simplesmente sorriu e abriu o livro que escolheu e está ali a ler como se estivesse tudo bem. Como se eu tivesse respondido e isto fosse uma situação normal. Uma dúvida surge na minha mente. Será que é? Serei eu assim tão estranha que ache que o que acabou de acontecer é não só muito esquisito mas também bastante assustador. Talvez…Eu sei que não penso como as outras pessoas.

O melhor é voltar a concentrar-me, eu hoje tenho Dickens no colo e ainda não li uma sílaba. Daqui a nada vai tocar a campainha...algo que me vai levar à terrível prova das aulas, supostas maravilhas do conhecimento, partilhadas com um monte de pessoas normais, barulhentas e assustadoras que insistem em arruiná-las. Ensinadas por professoras que tem de berrar o tempo todo, sem mais nada para fazer além de ler o manual e fazer os exercícios, na perfeição e a tempo e horas, que é a única maneira de passar despercebida e de não se incomodarem comigo, ou por outras palavras de sobreviver à escola. E depois disso...arrepio-me só de pensar.

Tocou....

Já estou a tremer...