– Eu já disse e repito: nada disso foi decisão minha. – diz o moreno, lançando-me um olhar impaciente, sentado em uma luxuosa poltrona acolchoada de tecido vermelho, disposta esta na ampla sala de visitas do castelo dos Edelstein.

Bufo, também já sem qualquer paciência, enquanto bagunço ainda mais, com uma das mãos, os finos fios de meu cabelo loiro esbranquiçado. O moreno já se mostrava nos limites de seu auto controle.

– Rod, você não está colaborando em nada! Como pode estar tão calmo? – digo, com as palavras aos tropeços e o olhar fixo nos orbes lilás, que também me encaravam atentamente.

– Por que não estaria? Agitar-me não levará a nada. – diz ele, enquanto leva uma pequena xícara aos lábios rosados, brevemente. Sua voz transparece apenas calma e indiferença. – Não há motivos para tal.

– Como não?! Nós estaremos praticamente casando! Ou...

O silêncio do moreno, que apenas se ocupava em me encarar fixamente, fez-me estremecer com um repentino e indesejável pensamento: uma possível explicação para a incompreensível calmaria de Roderich Edelstein perante tal situação.

Lanço-o um olhar desconfiado, ao que ele apenas ergue uma das sobrancelhas, confuso.

– Rod, eu não fazia ideia de suas preferências... – ele ergue a sobrancelha, ainda mais confuso – E logo por mim, seu amigo de tão longas datas! Mas sinto não poder corresponder aos seus sentimentos e aconselho-o a abandonar tais emoções. Elas certamente não são nada saudáveis...

Ele permanece em silêncio, a sobrancelha ainda erguida. Seu olhar se mostrava ainda mais impaciente. Ele suspira forte.

– Não fale besteiras, Gilbert. E não estaremos casando, é apenas uma homenagem.

Bufo mais uma vez.

– Prometer viver ao seu lado, apoiando-o sob quaisquer situações, por toda a eternidade e blábláblá... Fale o que quiser, mas, no meu ponto de vista, essas são uma releitura barata das promessas feitas durante casamentos!

Ele novamente nada pronuncia. Nada menos esperado, claro. Roderich sempre fora assim: simplesmente se silenciava, quando o assunto não era de seu agrado.

O homem diante de mim, Roderich Edelstein, sempre fora do tipo que economizava palavras, evitando assim quaisquer conflitos desnecessários. Não que isso pudesse ser considerado um defeito, muito pelo contrário.

Sendo o único filho de uma das mais ricas e influentes famílias feudais da região, ele sempre viveu sob mimos e cuidados excessivos, não que isso o fizesse um nobre mimado - possivelmente só um pouco. Além disso, o jovem sempre fora muito inteligente, habilidoso e até mesmo belo - não que essa última parte importe por algum motivo em especial.

Como futuro patriarca da família, Roderich é, consequentemente, o sucessor definitivo como dono de um grande poderio regional, atraindo assim sempre bastante atenção; inclusive de minha família, os Beilschmidt, que sempre se manteve atenta. Claro que não somente nós, mas todos os feudos próximos tinham interesses em formar alianças com o futuro senhor dos Edelstein.

Nós não somos muito ricos ou influentes, mas sempre fomos aliados dos Edelstein. Claro que a relação entre as casas sempre foi de interesses; não existe amizade na guerra. Apenas os que sabem usar bem a sua influência local conseguem sobreviver. Mas nada disso impediu que eu, Gilbert Beilshmidt, o filho mais velho e teoricamente o herdeiro do poderio de minha família, me tornasse um grande amigo do austríaco.

Éramos crianças quando nos conhecemos e, consequentemente, não tínhamos noção de que nosso envolvimento deveria ser diferente. Não tínhamos ideia de que não deveríamos ser melhores amigos, mas aliados. E é justamente por culpa desse forte laço entre nós que, agora, estamos sendo presos um ao outro, por interesse dos mais velhos e, principalmente, de nossos pais. É por isso que eu me vejo sendo obrigado a servir, daqui a um tempo, o aristocrata mais exigente destas terras...

Provavelmente, se não fosse pelo meu antigo sonho de me tornar um honrado e grandioso cavaleiro, certamente eu já teria retornado ao posto de herdeiro das terras dos Beilschmidt - afinal, Ludwig nunca será um senhor tão incrível quanto eu seria!

– Gilbert, está me ouvindo?

– Ahn? – indago, confuso. Eu realmente não notara que ele falava algo.

O moreno suspira, impaciente, enquanto massageia a têmpora exaustivamente.

– Você sempre será o maior dos tolos? Não pretende crescer e levar a vida um pouco mais a sério? – pergunta ele, com um olhar afiado.

– Serei o que você desejar, minha querida noiva. – sorrio largo e faço uma reverência rápida ao moreno, contemplando depois, com enorme satisfação, o rubor que assumiu a face clara do moreno.

– Eu já falei que não é um casamento! – ele diz, vermelho por um misto de raiva e constrangimento.

– Se você diz... – falo, virando o rosto e me fazendo de desentendido. Eu adorava provocar aquele aristocrata instável! Essa certamente sempre fora a parte mais divertida em nossa relação!

– Seu...

O de olhos violetas já estava prestes a me maldizer e perder a compostura - uma visão rara e deleitosa - quando um loiro adentrou subitamente a sala de visitas, interrompendo-o, para meu desgosto.

– Desculpe incomodá-lo, Roderich, mas temos compromissos na cidade. – diz o recém chegado, enquanto reverencia o moreno – Bom dia, Gilbert. E sempre um prazer vê-lo. Soube que finalmente abandonou quaisquer chances de ser alguém na vida, se bem que agora você terá a honra de trabalhar para o Rod.

Vash Zwignli, o herdeiro da família Zwingli.... É esse o intruso e intrometido, que me impediu de deliciar uma prazerosa cena! Eu odeio esse maldito suíço e seu constante sarcasmo! A forma como ele age e fala é simplesmente detestável! Por que ele não desgruda do Rod afinal? Esse maldito não tem uma vida fora desconexa à de Roderich?

– Ainda balançando o rabinho para os Edelstein? Eu esperava mais da segunda família mais poderosa da região... Por acaso as coisas andam complicadas para o seu lado? Hein, Vash? – um sorriso tão sádico quanto o do outro brota em meus lábios. Eu não iria perder para as provocações daquele idiota.

– Seu... Como ousa? – sua face assume uma tonalidade vermelha raivosa, mas o loiro retorna à compostura rapidamente – Os Zwingli, minha família, não necessitam correr atrás de ninguém. Somos autônomos, uma classificação que não pode ser atribuída ao seu caso. – ele diz, orgulhoso.

– Como disse? – dou um passo adiante, com os olhos mais vermelhos do que nunca. É agora que eu mato esse desgraçado.

– Com sorte, seu irmão levará a sua família a um futuro mais digno do que o de agora. Se alguém tem essa capacidade, certamente é ele. Talvez tenha sido bom você ter desistido de seu posto afinal.

Eu estava prestes a ir à direção do loiro e espancar-lhe a cara, quando Roderich finalmente se pronunciou.

– Senhores, acho que isso já foi mais longe do que o necessário. – diz, enquanto se levanta e se adianta ao lado do suíço, ajeitando as roupas durante o trajeto. – Vash, se não nos adiantarmos, chegaremos atrasados. – diz, calmamente – E não me agrada nem um pouco fazer os demais me esperarem.

Observo os dois caminhando porta afora. Eu não acredito que eles simplesmente me deixaram para trás. Malditos...

– Ei, Gil. – levo os olhos à porta, notando que o moreno permanecia na saída da sala. Senti-me iluminar por dentro, por um sentimento confortável. – Por favor, não se demore por aqui. Posso ter problemas por deixá-lo sozinho na sala de visitas.

– Certamente... Já estou indo embora, patrão. – respondo, com um quê de decepção e ira na voz, além do orgulho agora ferido. Maldito aristocrata... – Mas pode ter certeza de que nossa conversa não está encerrada! Certamente voltarei mais tarde.

Sem que qualquer resposta fosse me dada, ele partiu atrás do loiro que já o aguardava na entrada principal do castelo. Recolhi minhas coisas e não me demorei mais naquele lugar. Não havia motivos para lá permanecer.

Roderich... Ele não estava sequer um pouco interessado em qualquer conversa comigo...


~*~


Quando retornei à moradia do austríaco, já beirava o meio da tarde. Eu não fazia ideia quanto ao tipo de compromisso ao qual o suíço se referira de manhã, logo eu não sabia quanto tempo ao certo demoraria para eles retornarem; e segui-los até a cidade seria algo desonroso e estranho - já passarei o resto de minha vida acompanhando Roderich, não preciso me adiantar neste serviço.

Eu caminhava pelos, já me muito familiares, jardins dos fundos daquela enorme propriedade. Alguns servos trabalhavam mais adiante, mas geralmente as visitas não se aproximavam daquele setor, sequer davam-na atenção. Talvez seja justamente pela minha rebeldia que eu os observe com tamanha atenção e curiosidade.

Como sobrevivem aquelas famílias? Que tipo de vida elas levam? Elas certamente não vivem sob todos os luxos que eu e Rod vivemos há dezessete anos.

Sentado sobre um galho alto de um carvalho, eu observava o horizonte e os trabalhadores. O aristocrata não aparecia desde manhã. Não é que eu me preocupe, mas ele seria, em breve, o meu senhor! E se algo o acontecesse? Sem dúvidas eu seria culpado! Suspiro, um tanto impaciente e cansado.

O trotear de cavalos faz-me descer os olhos ao chão, levando-os ao encontro dos dois malditos, que enfim retornavam. Rod vinha adiante e parecia muito feliz, o cabelo balançava levemente com o movimento rápido com que o seu cavalo corria pelo terreno; ele apresentava um sorriso doce nos lábios rosados. Vash também vinha em disparada, mas se importava mais em cuidar para que o aristocrata não se ferisse em uma possível queda. Ele também sorria. Ambos sorriam e conversavam animadamente.

Eu não desci da árvore. Permaneci sentado no mesmo galho, encarando-os distantemente, escondido por algumas folhagens. Eu não teria porque ir até eles. Eu não desejo atrapalhar um dos únicos momentos em que eu via Rod sorrir tão belamente depois de tantos anos. Eu sempre pensara que a pressão por suas responsabilidades, crescentes ao passar do tempo, fosse a responsável por eu não tê-lo mais visto sorrir, mas aparentemente ele só mantinha a seriedade na minha presença. Seus sorrisos eram todos para o loiro.

Continuo a observá-lo, meus olhos presos aos lábios do moreno, que permaneciam curvados. Eu seria o seu cavaleiro, então porque ele sorria para outro? Os dois adentraram o castelo e eu senti que não devia segui-los de imediato. Que direito eu teria? Perto deles eu realmente não sou nada além de uma brisa passageira, usada para impulsioná-los enquanto for útil. Eles eram de famílias unidas e poderosas. Não importa o quão unido os Beilschmidt forem dos Edelstein, nunca passaremos de vassalos destes.

Pulo ao chão e caminho no sentido oposto à entrada.

Caminho pelos campos floridos, ainda um tanto chateado. Aquele maldito aristocrata devia me dar mais atenção. Idiota. Idiota. Idiota. Quem precisa de você? A minha grandiosidade merecia servir alguém superior!

Já um tanto distante da casa, deito-me no chão, sobre as multi coloridas flores. Eu fazia muito isso quando era jovem: deitava nas flores apenas para, depois, o Rod vir brigar comigo, todo irritado sobre minha indisciplina. É tão difícil assim ver que tudo que quero daquele maldito é um pouco de atenção? Eu também aprecio sua presença, e não é como se não pudéssemos conversar civilizadamente - apesar de fazer já um bom tempo que não temos um conversa decente.

O céu acima de mim move-se lentamente. As poucas nuvens que transitam por aquela imensidão anil movimentam-se vagarosamente. O sol forte não é o suficiente para me cegar. Fecho os olhos, não demorando a adormecer, rodeado por uma incontável tonalidade das mais diversificadas pétalas.


~*~


– Gil... Gilbert...

Quem me chama?

– Gilbert, acorde. Você não devia estar deitado sobre minhas flores! Vamos, levante-se.

Abro os olhos lentamente, deparando-me com um par de olhos violeta; muito próximos de mim por acaso. A proximidade com que Rod se encontrava assustou-me, fazendo-me sobressaltar e bater a cabeça contra a do austríaco.

– Ai! Idiota, não fique encarando as pessoas tão de perto quando elas estão dormindo. – digo, irritado, esfregando o local que latejava por causa do forte impacto.

– Não sou idiota. A culpa é sua por escolher locais estranhos para cochilar. – responde, também esfregando o local da batida. – Você não pode culpar os outros pelas suas ações desastradas. – ele diz, simplesmente.

– Ok. Ok. Desculpe-me então! – digo, já estressado. Por Deus, ele só sabia discutir comigo? – E o que faz aqui? Vash foi embora e veio buscar alguma outra companhia? – pergunto, as palavras praticamente sendo cuspidas na face do moreno.

– Não seja tolo... Eu vim procurá-lo. – ele diz, ofendido.

– E o Vash?

– Foi para casa...

– Viu! Você só estava solitário, por isso veio pedir minha companhia! – interrompo-o, com o tom de voz mais alto do que o necessário.

Ele encarava-me de canto e não parecia muito feliz. Sentou-se ao meu lado e permaneceu em silêncio por alguns instantes. Surpreendi-me ao vê-lo sentado no chão; ele sempre dizia que tais atitudes prejudicariam sua imagem perante outros nobres.

– Eu vim procurá-lo, pois você disse que voltaria. Você disse que tínhamos assuntos inacabados a tratar, então, quando notei sua ausência nos interiores do castelo, estranhei-a, porque você não se atrasa quando o assunto é de seu interesse. Por isso me despedi de Vash e vim procurá-lo.

–... – nada pronuncio. As suas palavras, apesar de me terem sido uma surpresa, não foram suficientes para me livrar da irritação por ser sempre posto de lado. – E como me achou? – pergunto, apesar de não muito interessado.

Ele rapidamente desvia o rosto de meu campo de visão. Confuso, ponho-me a encará-lo, esperando por mais alguma reação ou gesto do austríaco.

– Eu o procurei pela propriedade. Como mais haveria de ser? – ele diz, em tom beirando a ironia, a irritação e o constrangimento.

Você me procurou? Sozinho? Andando? Até agora? – eu pergunto continuamente, bastante desconfiado. Nunca que aquilo seria verdade, afinal era do Rod que estávamos falando! Onde ele pensa que vai chegar com mentiras tão deslavadas?

Ele nada responde, apenas permanece com o rosto virado. Em movimentos inconscientes, desço os olhos aos pés do moreno, notando o quão sujos estavam seus sapatos, normalmente impecavelmente brancos. Eu não os via tão sujos já há muito tempo. Não seria verdade, seria? Teria ele realmente me procurado? Mas apenas por eu ter dito que queria conversar com ele? Isso não me parece um motivo suficiente... Porém, se for verdade, ele certamente andou um bocado a minha procura.

Talvez seja verdade afinal...

– Você não precisava. – digo, enquanto coço a cabeça e bagunço os fios praticamente brancos de meu cabelo. Ele fizera mais do que eu imaginava possível, vindo dele.

– Claro que eu precisava! Temos assuntos pendentes. Não foi isso que você disse? E o que estava fazendo aqui, nos fundos? – as palavras saiam aos tropeços e fortes dos lábios do jovem.

– Dormindo, oras. Você parecia se divertir tanto com o Vash, que eu não quis atrapalhar... – dou de ombros, em tom de descaso.

– Atrapalhar?

Bufo, irritado, e uma gargalhada me é escutada quase que imediatamente. Volto o rosto em direção ao austríaco que tapava a boa com as mãos, tentando, falhamente, impedir-se de rir. Aquela reação me fora uma surpresa.

– Gil, por acaso você estava com ciúmes? – ele riu mais um pouco, ainda escondendo o rosto com as mãos. – Como você é idiota. Você é o meu melhor amigo, então não fique com ciúmes dos outros, tolo.

Suas palavras eram o de menos, comparadas ao sorriso que ele lutava para esconder de mim. Puxo suas mãos com força, tentando o fazer as tirar do rosto, e apesar de toda a relutância do austríaco em ceder, eu era mais forte.

– Por que você só sorri assim para ele? E não me chame de idiota! Você que é o idiota! E pare de se mexer tanto, eu não vou te largar!

Eu encarava aquele sorriso largo estampado na face clara do moreno em estase. Há quantos anos eu não via tal feição de tão perto? Rod sempre se encontrava sério em minha presença e agora lá estava ele, sorridente e completamente envergonhado pela situação em que se encontrava.

– Ah, vamos! Largue-me! – ele cora fortemente. – Você está me machucando.

Solto-o e ele se ajeita no lugar. Tudo que consigo é sorrir, largamente. Era bom ver que Rod e eu ainda tínhamos nossos momentos, mesmo que com uma frequência quase que rara (ou eu devia dizer inexistente?). É bom ver que, apesar do que nos aguardava, ainda conseguíamos ser nós mesmos um perto do outro. Eu desejava mais momentos assim, a sós com o austríaco, mas eu nunca admitiria isso. E creio que seja o mesmo para ele - ou seria esse apenas meu desejo egoísta?

– Vamos voltar para o castelo? – pergunta ele.

– Aqui está mais fresquinho. – respondo, lançando minha atenção novamente aos servos que trabalhavam diante de nós.

O moreno suspira e joga a cabeça para trás, e ao olhá-lo de esguelha vejo um leve e calmo sorriso na sua face. Aquilo me anima e me traz uma inexplicável paz interior.

– Você que sabe... Então, Gil, que assuntos pendentes você quer tanto discutir?

– Obviamente que é sobre o nosso casamento! – viro em direção a ele, perplexo.

– Homenagem. – ele apressa-se em me corrigir.

– Ah, tanto faz! O que importa é que não sei como você pode ficar tão tranquilo.

– O que o faz pensar que é o único nervoso com tudo isso? – diz o austríaco, numa voz um tanto constrangida.

Demorei um pouco para assimilar as palavras ditas por ele.

– Então por que não admitiu logo?

– Como se eu pudesse simplesmente agir dessa forma! Gil, eu acho que você ainda não entendeu a minha posição. Eu tenho que ser cauteloso. Não posso prejudicar de forma alguma a minha família. Carrego sobre meus ombros uma enorme responsabilidade! E só estou te dizendo como me sinto, pois não desejo que existam mentiras e mal-entendidos entre nós.

Não respondo de imediato. Ele tinha razão, a situação em que se encontrava era muito mais complexa do que eu poderia entender. Ele tinha responsabilidades as quais nunca me foram impostas. Ele era alguém de uma posição claramente superior, e seu último discurso apenas me comprovara isso.

– Mas você tem razão, Gil. – ele diz numa voz tranquila.

– Eu tenho? – eu decididamente deveria parar de me distrair tão facilmente, ou ele vai acabar pensando que faço isso propositalmente...

– Sim! Não é justo que tenhamos que ser forçados a isso! Nossos pais deviam ter nos dado o direito de escolha!

– Mas, Rod, assim você nunca conseguiria vassalos! Afinal que ser racional deste mundo desejaria servi-lo, tendo de seguir as suas muitas vontades e exigências? São poucos os loucos que se encaixam nessa definição!

Ele encara-me com um olhar desgostoso, de quem claramente não fora agradado. Ele cruza os braços sobre o peito e empina o nariz levemente.

– Como se alguém fosse aceitá-lo como vassalo. Um herdeiro revoltado e fujão: é isso que você é aos olhos de todos. – suas palavras saíram afiadas.

Observo-o, calado e surpreso. Eu não esperava que ele me respondesse tão rudemente, pelo menos não por tão pouco. Eu mal havia começado a provocá-lo! Esse aristocrata é realmente um ser inacreditável! Uma risada escapa-me subitamente pela boca, fazendo o moreno sobressaltar-se.

– Sim, você está certo. Apenas nós poderíamos suportar um ao outro, por tanto tempo, sem causar uma guerra. Talvez o senhor Frederich soubesse o que fazia afinal.

– É claro que meu pai sabia o que fazia. Ele é dotado de grande sabedoria, caso tenha se esquecido.

– Claro que não me esqueci, jovem mestre. Eu apenas estava fazendo uma pequena observação.

Ele suspira brevemente e um sorriso leve se forma em seus lábios; não era radiante como o de há pouco, mas era suficiente para prender minha atenção aos seus lábios. Ele desvia os olhos de mim e os direciona aos trabalhadores. Fiz o mesmo e assim o silêncio se forma novamente entre nós, sendo este quebrado apenas após quase um minuto inteiro.

– Ei, Gil... Você acha que a gente estaria passando por essa homenagem se nossos pais não estivessem nos forçando a isso? – o tom de voz do moreno era frio e sério, rasgando bruscamente a quietude que até então predominava.

Demoro um pouco para digerir as palavras ditas por ele, sendo assim minha resposta não saiu de imediato. Durante todo esse tempo, os nossos olhos de encaravam profundamente: o violeta e o vermelho fundiam-se, aos poucos, em uma cor só. Eu não sabia exatamente o que deveria responder.

– É claro que não! Por que haveríamos? Tudo isso é ideia dos nossos velhos. Se não fosse pelo meu sonho de servir a cavalaria, eu já teria voltado atrás há muito tempo! Você sabe as coisas constrangedoras que vamos fazer e dizer, não sabe? – eu digo, apressado, enquanto sorrio largo e abano as mãos, o tempo todo, enquanto falo. – Eu serei o seu homem! E nós teremos de nos beijar, na boca! Eu definitivamente não desejava ter de passar por uma situação tão constrangedora como essa com você por uma segunda vez! Beijá-lo uma vez na vida já era mais que suficiente!

– M-Mas... Aquela vez foi um acidente! E não pode ser considerada! Nego-me a aceitar que meu primeiro beijo tenha sido com você! – ele corara.

– Então, na sua próxima reencarnação, trate de se manter longe das beiradas dos rios, assim você não correrá risco de se afogar, e então eu não terei que te salvar...

– Não existem reencarnações, seu tolo.

– Então talvez você deva passar a eternidade pensando de como eu roubei seu primeiro beijo. E não fique se lastimando, eu te dei um beijo delicioso que eu sei!

– Como você haveria de saber?

– Ksese. Você não negou! Aposto que está ansioso pelo nosso próximo beijo. – insinuo, rindo.

– Como eu poderia negar algo que sequer lembro?! Tínhamos sete anos naquela época!

– E se eu te disser que nunca esqueci? – tomo-o pelo queixo e aproximo nossos rostos. Ele empalidece por causa da surpresa perante meu súbito gesto.

– Pare com as brincadeiras, idiota... – ele tomou-me pelos ombros e afastou-se em movimentos leves e calmos; eu sentia-o tremer por inteiro. O tom rubro em sua face nunca estivera tão forte e evidente. – E aparentemente pensamos igual...

– Que meus beijos são incríveis e você quer me beijar? – indago.

Ele suspira pesadamente, recuperando-se rapidamente do ocorrido instantes antes.

– Não, idiota. Sobre a homenagem!

– Ah...

– Com certeza, tudo é pelos nossos pais. Não temos nada em comum e certamente preferiríamos nos unir a outras pessoas, se tivéssemos direito a escolha.

Viro o rosto, tomado por certa seriedade. Tudo bem que eu mentira, afinal não há ninguém mais que eu queira servir além do moreno – e nunca que eu poderia simplesmente contá-lo a verdade -, mas eu não esperava que ele concordasse. Eu sequer pensava que chegaríamos a tal assunto. Eu sentia-me derrotado por dentro, pois algo me dizia que o moreno tinha algo a esconder, e eu estava decidido a descobrir o que exatamente.

– Por exempo, Vash Zwingli? – digo, simplesmente.

– Ah? – ele indaga.

– Acredito que se seu vassalo fosse o Vash, seu futuro seria muito mais próspero. Uma união entre as famílias Edelstein e Zwingli seria algo inédito e, com certeza, formaria uma força política, militar e econômica insuperável. Juntos, vocês seriam invencíveis. Não concorda?

– Vash nunca iria se tornar meu vassalo. A família dele é tão poderosa quanto a minha. Nenhum de nós poderia simplesmente abaixar a cabeça para o outro.

– Mas bem que você queria...

– É claro que não! Por que haveria de querer?

– Sei lá... Você tem fetiches estranhos...

– Não diga mais bobagens, ok? Estou satisfeito com você sendo meu vassalo, afinal podia ser bem pior.

– Devo levar isso como um comprimento ou como uma ofensa? – ergo a sobrancelha e lanço-o um olhar desagradado.

– Eu disse que estava satisfeito, não disse? E assim, pelo menos, terei como protegê-lo. Você é por demais descuidado, sabia?

– Como? Idiota, eu é que vou protegê-lo! Sou muito mais forte e corajoso, logo essa é minha obrigação. – repliquei, rapidamente.

– Gil, proteção é um benefício oferecido pelo suserano... – ele diz em uma voz arrastada.

– Não o estarei protegendo como vassalo, mas como amigo. – sorrio, convencido.

O austríaco encara-me em silêncio, só voltando a falar alguns instantes depois. Ele suspira.

– Certo. Então eu deixarei que proteja minhas costas, contanto que me permita proteger as suas. – ele diz, apontando para si mesmo.

– Isso é uma promessa?

– Se quer pensar dessa forma, então que seja. – diz ele, estendendo a mão e abrindo um sorriso tranquilo.

Seguro a mão do austríaco e ambos enroscamos nossos dedos, relembrando talvez de um passado, sem preocupações e problemas, onde correríamos juntos pelas propriedades do castelo.

– Então espero que não volte atrás de suas palavras.

– Homens não quebram promessas, e homens incríveis como eu menos ainda!

O toque de nossas mãos era quente e aconchegante, e a sensação permanecera mesmo após se separarem, e a forma como Roderich sorria também ficaria marcada eternamente em minha memória. Eu estava feliz em ver que ele sempre seria somente meu no final das contas.

Eu o protegerei, pois ele me é importante. Não deixarei que ninguém o tire de mim.

– Acabei de perceber uma coisa. – ele diz, subitamente. Sua voz tinha um quê de alegria e nervosismo.

Encaro-o, em silêncio. Minhas expressões eram calmas, beirando certa seriedade. Ele prosseguiu.

– Só teremos mais dois dias de liberdade. O fim da primavera está tão perto, que quase posso tocá-lo.

Ele estende a mão ao céu e a fecha, como se tentasse alcançar algo naquela imensidão azulada. Seus gestos eram leves e me encantavam.

– Sim. Logo você se tornará minha esposa definitiva. – sorrio, irônico.

– Eu já falei que suas piadas não tem a mínima graça! – ele diz, levemente escarlate.

O sol aos poucos se punha diante de nós, e o vermelho foi substituindo o azul do céu. Um mar aquarelado refletia, sobre nós, as estrelas. Levanto-me, sendo observado a todo instante pelo austríaco, e estendo a mão em sua direção.

– Vamos voltar para o castelo. – digo, com um sorriso discreto.

Ele demora um pouco para retribuir o gesto e se por de pé, ajeitando as roupas logo a seguir.

– É interessante pensar em tudo que acontecerá conosco em poucos dias. – diz ele. – Não teremos mais tanta liberdade.

– Acho que sim...

– Não vá se esquecer do que me prometeu.

Um riso contido me escapa pelos lábios.

– Eu já disse para não se preocupar. Vou estar sempre ao seu lado, jovem mestre. Dou-te minha palavra de cavaleiro.

Ele sorri timidamente, em aparente felicidade - uma felicidade quase que infantil - e segurou-me a mão, ato que me surpreendeu. Apenas enrolei mais meus dedos com os dele, mesmo que o gesto não me deixasse muito confortável. Eu sentia-me nervoso com aquele contato: a pele quente e macia do austríaco fervia a minha própria. Eu sentia-me quente.

O caminho em direção ao castelo era razoavelmente longo, mas o tempo parecera voar durante o percurso. O simples fato de estar perto do moreno fora suficiente para garantir-me felicidade. Paramos a poucos metros da entrada ao que ele solta minha mão. Senti-me decepcionar momentaneamente.

– Ah, sim... Seria estranho se nos vissem. – eu ri, finalmente compreendendo o seu gesto, apesar de um tanto decepcionado.

Coço a cabeça, um tanto sem jeito, sendo observado pelo moreno, que mantinha a face abaixada. Minha mão me incomodava e agora se sentia inexplicavelmente incompleta. Lanço-o um olhar confuso. O que era todo aquele silêncio?

– O que foi, Rod?

Ele abaixou-se numa reverência, ato que me deixara constrangido e surpreso.

– Rod, se alguém nos ver...

– Gil, obrigado. E espero poder contar com você de agora em diante. – sua voz tremia, de forma que seu constrangimento não podia ser mais evidente.

– Err... Rod...

– Eu sempre irei confiar em você, então não ouse me decepcionar! – sua voz denunciava seu nervosismo.

Um sorriso escapa-me pelos lábios. Reclamava até agora a pouco de como devia manter a postura, mas não se conteve de abaixar a cabeça ao seu futuro vassalo. Ele era realmente uma pessoa surpreendentemente idiota.

– Não abaixe a cabeça para um subordinado, seu idiota. E se alguém o ver? O que irão pensar? – levo minha mão aos seus cabelos negros e os bagunço. Aparentemente eu teria ainda mais trabalho com esse aristocrata do que eu imaginava.

– Pa-Pare com isso! – ele diz, afastando minha mão, desgostoso.

Sorrio para ele mais uma vez e o silêncio brevemente tomou conta do local.

– Bem... Boa noite, Rod. – digo.

–... Boa noite. – ele diz, baixo.

Ele finalmente adentra o castelo e assim me vejo livre para partir. Aos poucos viro-me, dando as costas à enorme estrutura, e caminho em direção a cidade.

Um futuro me aguarda, e nele, nada de mal me é realmente previsto; apenas pequenas turbulências em um mar calmo e tranquilo, cheio de vida.



Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.