Um Conto Mestre de Natal

O anticristo vem para a ceia


Enquanto um dos álbuns de Natal do Pentatonix tocava baixinho na caixa de som, eu esperava, em frente ao forno, pelo último e essencial item da ceia: o bendito peru. Era o primeiro ano em que eu arriscava prepará-lo completamente sozinha – ou não tão sozinha, graças ao maravilhoso tutorial de uma senhorinha cozinheira no Youtube.
A mesa já estava posta com dois lugares e tudo já estava pronto. A casa tinha passado por uma revolução natalina e até mesmo a lareira tinha ganhado meias. Era meu primeiro natal solo, mas eu queria tudo perfeito com meus avós costumavam fazer quando eu era criança.
Fui até a geladeira, pegando uma jarra de suco de uva e quando ia colocá-la na mesa, ouvi um som alto, como uma pancada forte e seca vinda de não muito longe. Deixei a peça de vidro na mesa e corri até a janela, vendo muito mais neve do que o habitual caindo do céu. Tinha alguma coisa errada.
Corri até a sala, pegando a espingarda de cima da lareira e saí pela porta da frente, olhando atentamente em volta. Não havia nada no quintal perturbadoramente branco. As luzes vizinhas distantes pareciam normais e longe como sempre. Ainda assim, eu sabia que tinha algum intruso na área. Era um instinto que tinha surgido quando passei a morar sozinha. Ele estava errado noventa por cento das vezes, mas minha fiel escudeira, minha espingarda, estava sempre na minha mão quando ele surgia.
Dei a volta na casa, encontrando a origem do problema. Um buraco gigantesco tinha se aberto por algo que provavelmente caiu do céu. A neve tinha criado uma camada enevoada que me impossibilitava de ver muita coisa, mas pude perceber um homem surgindo do meio do caos.
Ergui a espingarda, apontando para a figura.
-É bom ir com calma, amigo. -Avisei. -Ela está carregada.
-Eu ficaria decepcionado se não estivesse. -Ergui uma sobrancelha, reconhecendo a voz. Não é possível. Ele saiu da névoa e pareceu surpreso ao me ver. -Você.
-Você. -Aproximei o dedo do gatilho. -O que quer aqui?
-Aqui nesse planeta ridículo ou aqui diante de você, companheira?
-É bom tomar cuidado, alien. Não ache que não atiraria em você só porque é natal.
Diante de mim estava simplesmente o Mestre, um alienígena psicopata maligno que tinha tentado me matar mais vezes do que eu podia contar apenas por que eu era companheira de outra alienígena, a Doutora. Uma rixa entre aliens que existia muito anos antes do planeta Terra surgir em nossa galáxia.
-O que você quer aqui? -Exigi.
-Não vim aqui por escolha própria. -Olhou em volta com desgosto. -Foi um acidente causado por uma rota má calculada.
-Quem diria que você seria mal piloto?
-TARDISES são feitas para serem pilotadas por...
-Mais pessoas, é. Eu já ouvi essa história antes. Uma pena você não ter amigos o suficiente para te ajudar nisso. -A expressão dele se tornou desafiadora.
-Da última vez que eu soube, a Doutora também não tinha. -Desviei o olhar, reunindo toda paciência que tinha para não dar um tiro bem no meio da testa dele. -Ou será que ela voltou para te buscar?
-Vai se ferrar. -O encarei. -Caso não tenha percebido, eu tenho uma arma apontada na sua direção.
-E o que vai acontecer se você atirar? -Abriu os braços. -Eu vou regenerar. Tenho mais regenerações que você tem de balas.
-Tanto faz. Aposto que em algum momento não vou estar diante de uma encarnação tão pé no saco. Qual é o seu plano? O que quer com meu planeta dessa vez?
-Nada. -Abaixou os braços devagar. -Eu não planejei estar aqui.
-Eu não confio em você.
-E está certa nisso. Mas dessa vez, não há nenhum truque. Sou só eu e uma TARDIS que precisa se recuperar. -Estreitei os olhos na direção dele, desconfiada. Porém, se ele me quisesse morta, eu já estaria morta. Ele não precisava se explicar ou mentir para mim.
-Boa sorte com isso então. -Comecei a recuar, a arma ainda apontada nele, mas parei, suspirando. -Você quer entrar? Está frio aqui fora e quente lá dentro. -Ergueu uma sobrancelha. -É natal, eu não posso simplesmente abandonar alguém aqui fora. Minha avó dizia que às vezes Jesus ia visitar as pessoas no Natal para ver se elas tinham bondade o suficiente em seus corações. Ela acharia graça se soubesse que o próprio anticristo surgiu para a ceia dessa vez.
-Eu não sei o que é isso, mas parece rude. -Sorri.
-Você não fazer ideia deixa ainda mais engraçado. E então...? -Deu de ombros.
-Eu não tenho mais nada para fazer mesmo. -Dei alguns passos para o lado, apontando com a arma.
-Por ali.
-Você vai mesmo ficar apontando essa coisa para o meu rosto o tempo todo?
-Vou. E se você sequer piscar mais do que eu achar necessário, meto uma bala em você.
-A Doutora não vai gostar disso.
-Ela não está aqui agora, está?
Ter sido deixada pela Doutora ainda era um tópico sensível, mas eu não ia deixar ele pisar nos meus espinhos. Andei atrás dele, com a espingarda bem apontada para o meio de suas costas, seguindo-o atentamente. O Mestre parou na frente da porta e virou para mim.
-Você precisa de permissão como um vampiro ou coisa assim? -Perguntei.
-Eu pareço um vampiro?
-Eu não sei, você é um? -Revirou os olhos e passou pela entrada.
O segui para dentro e encostei a porta atrás de mim, sem tirar os olhos dele. O Mestre olhou em volta, cutucou alguns enfeites como se visse insetos esquisitos e inclinou a cabeça para o lado, olhando para o presépio que eu tinha montado em cima da mesinha da sala.
-Você nunca viu decorações de Natal antes? -Perguntei.
-Por que vocês gostam tanto desse Natal? O que ele fez?
-Natal não é uma pessoa, é uma data comemorativa. Para alguns, é a representação do nascimento de Jesus.
-Quem? -Franzi a testa, tentando não me sentir ofendida.
-Você invadiu meu planeta mais vezes do que posso contar em uma hora, e simplesmente não sabe nada sobre ele? Sobre nós?
-Sei que são fáceis de invadir e de dominar. E que não são muito inteligentes.
-Oi? Nós somos inteligentes o suficiente...
-São atrasados. Lentos. -Respirei fundo, querendo muito dar uma encostada no gatilho.
-Somos tão indefesos que você nunca conseguiu ficar no poder muito tempo, não é?
-Eu nunca disse que são indefesos. -Deu um peteleco numa das bolinhas do pinheirinho. -Vocês tem um protetor há muitos anos. Há sessenta anos esse planeta tem sido guardado pelo Doutor.
-E você simplesmente não consegue vencê-lo. Quem é lento mesmo?
-É uma questão de tempo. E quando eu conquistar esse planeta, é bom se perguntar o que farei com você. -Ri.
-Boa sorte com isso, querido. -Meu forno apitou. -Oh, está pronto, sai da frente!
Passei por ele apressada, entrando na cozinha e deixando a arma de lado. Coloquei as luvas e abri o forno, encontrando o último e essencial item da minha ceia de Natal. Puxei a forma com cuidado para fora. Mesmo com as luvas, podia sentir o calor.
-Que diabos...? -O Mestre murmurou, parando na porta da cozinha.
-Prontinho. -Deixei a forma em cima da mesa e tirei as luvas. -Lindo e douradinho igual o da receita. -Sorri. Vovó teria ficado orgulhosa. -Bom, não fica parado aí, senta. -Apontei para a outra cadeira, colocando as outras travessas e tigelas na mesa.
-Por que dois lugares, quem você estava esperando? -O encarei, um pouco sem graça.
-Ninguém. -Menti. Ele riria se eu dissesse que tinha colocado um lugar para a Doutora. Ela aparecer seria um verdadeiro milagre de Natal, é claro. Mas eu tinha sentido que era o que devia fazer. -Fiz sem perceber. -O Mestre me observou atentamente, mas se sentou. Ocupei meu lugar.
-Não vem mais ninguém?
-Minha família encurtou rapidamente. -Dei de ombros. O Mestre olhou em volta.
-Tanto assim?
-Acho que isso não é da sua conta. -Me ergui na cadeira, pegando a faca grande.
-Wou, calma aí, querida...
-Não é para você, idiota. É para o peru. Eu assisti vários tutoriais de como cortar e acho que consigo.
-Você não parece levar muito jeito com coisas afiadas. -Apontou para as minhas mãos, cheias de band-aids coloridos.
-Você deve levar. -Sorriu, ficando de pé e estendendo a mão.
-É claro que sim.
-Eu não vou confiar uma faca grande à você.
-Acha que eu ia precisar dela? Eu podia te matar com a tigela de ervilhas. -Ergui uma sobrancelha.
-Bom saber.
-Não seja ridícula. -Insistiu com a mão. Suspirei, mas entreguei a faca. Seria poético morrer no Natal, no fim das contas.
Mas, se o Mestre estava mesmo planejando me matar, ele decidiu que não era o momento e a faca foi utilizada no peru, não em mim.
Engoli minha surpresa e servi meu prato. Talvez fosse minha última refeição, então eu comeria até estar apta a sair rolando daquela cozinha.
-Você fez tudo isso sozinha? -O Mestre perguntou, sentando depois de servir o próprio prato.
-Fiz sim. Uma refeição completa de Natal, com tudo o que tinha direito. Quis caprichar, é meu primeiro feriado sozinha.
-Se você ia passar sozinha, quem queria impressionar com tudo isso? E por que outro lugar na mesa?
-Por que só não cala a boca e aproveita a comida? -Sorriu.
-A Doutora aprovava sua língua afiada?
-É uma das minhas melhores qualidades.
-Quais as outras?
-Talvez eu te conte na hora da sobremesa.
Comemos em silêncio, embalados pelas músicas natalinas do Pentatonix. Eu não tinha muito o que dizer para o Mestre, embora fosse fácil falar com ele. Mas ele era o inimigo e uma refeição feita em paz era uma doce ilusão. Eu não devia ir muito longe da minha espingarda.
Quando terminamos, coloquei os pratos e talhares na lava-louças e guardei o que sobrou da comida. Eu teria uma longa semana com a ceia requentada.
-Descobri outra qualidade. -O Mestre disse, quando nos sentamos na sala, perto da lareira.
-Qual?
-Você cozinha bem. -Ergui as sobrancelhas, surpresa.
-Sério?
-Acho que é uma das poucas coisas que os humanos fazem bem.
-É mesmo? E quais as outras coisas? -Ele sorriu, dando de ombros.
-Talvez eu te conte depois da sobremesa.
-Usando meu próprio jogo contra mim, que baixo. -O Mestre riu. -Mas tudo bem, eu quero muito mesmo a sobremesa também.
Voltei para a cozinha, pegando dois copos com o english trifle da geladeira, duas colheres e retornei para a sala, onde encontrei o Mestre não destruindo tudo, mas sim sentado, observando minha decoração de Natal. O que será que se passava na cabeça dele?
-Bem, aqui está, senhor alien. -Entreguei um copo e uma colher.
-O que é...?
-Apenas coma. E é bom não reclamar. -Voltei para minha poltrona. Peguei meu celular apenas para mudar para a playlist de músicas natalinas da Lindsey Stirling, então o deixei ao meu lado, perto o suficiente caso precisasse dele de repente.
-Por que eu reclamaria das suas habilidades culinárias? -Sorri.
-Boa decisão.
-De quem era o segundo lugar na mesa, Eve? -O encarei, surpresa por ter lembrado do meu nome.
-Da Doutora. -Respondi baixinho. -Caso... Ela aparecesse. É bobagem, é claro. -Encarei meu copo, dando uma colherada enorme na sobremesa. -Por que está aqui?
-Foi realmente um acidente. Eu só queria um lugar em que pudesse ir para pensar.
-Pensar em que?
-Em tudo. Em nada. -Ergui o olhar lentamente.
-Foi por isso que eu abandonei a cidade grande e vim para o campo. Eu precisava de um lugar só meu, onde podia pensar em paz o quanto quisesse.
-Foi uma boa decisão?
-Foi... Mas às vezes não queria ter tomado ela. A solidão não é uma boa companheira. Ela é cansativa, na maioria das vezes.
-Então por que não sai daqui? -Parei um momento.
-Eu não sei.
Terminamos a sobremesa em silêncio e assim continuamos. E quando o relógio bateu meia noite, o Mestre se levantou para ir embora.
O segui para fora, caminhando com cuidado pela neve branca. Agora que a névoa havia dispersado, eu podia ver sua TARDIS no meio do buraco que sua queda havia causado. Ela tinha se camuflado como um pinheirinho alegre e colorido de Natal.
-Acho que sua data comemorativa é mais especial do que pensei. -O Mestre comentou com humor. Sorri.
-Ela sempre é.
-Escuta, -Se virou para mim, me encarando atentamente. -você gostaria de... -Apontou para a TARDIS atrás de si com o polegar.
-Ir com você? -Assentiu. -E você por acaso pararia de destruir, matar, invadir e vandalizar o Universo? -Ele balançou a cabeça negativamente. -Então sabe a minha resposta. -Recuei um passo. -Feliz Natal, Mestre.
-Feliz Natal, Eve. -Começou a se afastar, indo em direção à sua nave. -Se eu aparecer aqui ano que vem...? -Sorri, dando de ombros.
-Quem sabe? Vai ter que aparecer para descobrir.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.