Lá estava ele, chorando nos joelhos no chão frio do porão, rodeado de garrafas de vodca vazias e tristeza. Ivan não esperava que ninguém fosse atrás dele lá, e se fosse seria uma de suas irmãs, as únicas pessoas que queria ver naquele momento. Mesmo Natália, a culpada de toda aquela confusão, só para se certificar de que ela estava bem e que não tentaria se matar de fome. Quando ouviu os passos vindos dos degraus, seu coração se encheu de esperança, mas ao levantar o rosto, não viu Katyusha ou Natália.

— Toris? — seu tom era carente, nada de ameaçador. Até sua voz parecia mais fina. Por isso, Toris não teve mais tanto medo de se aproximar.

— Você está aqui faz horas… Os rapazes estão perguntando… — agachou-se na frente dele e sussurrou bem devagar, tentando mantê-lo calmo. Ivan fungou, passando a palma da mão no nariz vermelho.

— Cadê a mana?

Toris baixou os olhos, queria poder responder. Agora entendia o que Katyusha queria com aquela conversa no dia anterior.

— Eu não sei, Ivan… — ali, quando só estavam os dois longe dos olhos, não tinha medo de chamá-lo apenas pelo nome.

— Porque ela me deixou?

— Ela quer que você cresça. — só então percebeu o que tinha dado a entender. Ivan baixou os olhos.

— Eu já cresci. Construí essa casa toda para ela, ela sabe o que eu fiz...! — aumentou a voz, mas em seguida baixou. — Ela sabe...

Toris conhecia muito pouco da história de Ivan, mas sabia que Katyusha criou Natália e ele completamente sozinha na miséria extrema. Não era fácil para ele imaginar uma vida que ela não fizesse parte. De certa forma, Toris conseguiu se identificar.

— Talvez ela volte… — de novo se arrependeu. Ivan não precisava de falsas esperanças.

— Ela não tinha que ir… Ela não queria que eu me casasse eu não vou, porque ela não ficou do meu lado então?

Suspirou. Cada resposta tinha que ser cautelosamente pensada, para confortá-lo sem irritá-lo.

— Às vezes as pessoas que nos amam tomam atitudes que não entendemos para o nosso bem…

— Como Natália? — perguntou de imediato. — Eu não quero me casar com ela nem me mudar para Moscou sem vocês, mas ela quer me obrigar porque me ama… É isso?

Sim, tinha relação, mas não era dessa forma que Toris queria que ele visse. Natália o fazia mal, não buscava melhor pra ele. Talvez até buscasse, mas sua ideia de bem e mal era um tanto questionável e acabava tendo um efeito contrário.

— Bem, ela com certeza te ama. — suspirou Toris. — As duas te amam. Katyusha sabe que está fazendo, confia nela agora…

Ele o encarou nos olhos por um instante, depois voltou a olhar para baixo. Toris o deixou a pensar, aliviado. As coisas tinham saído melhor do que esperava. Ivan estava sensível e bêbado, mas logo ficaria bem, ou ao menos, voltaria a fingir que estava. É uma criança, apenas uma criança.

Talvez vários minutos tenham passado em silêncio, ali, tentando achar algum pensamento reconfortante e racional no meio de tanta angústia. De vez em quando, Ivan soluçava. Depois de engolir em seco por um pensamento azedo, ele não levantou os olhos para sussurrar, com a voz bem fraca e rouca:

— Eles vão embora, não vão?

Claro, Ivan não era burro. E depois do abandono, não se surpreenderia com mais nenhum. Entre tantos anos de ditadura, seria difícil não notar no espírito rebelde de muitos ali, ainda mais ele que entendia de fuga. Toris não respondeu.

— A mana já foi e eu estou aqui, Natalia não vai sair do quarto também, não tem nada impedindo… Não era para ser assim…

Somos todos uma família agora. A voz dele ecoou em sua mente. O primeiro jantar com todos os moradores tinha a mesa farta. Ivan levantou uma taça e propôs um brinde a todos. Ninguém estava ali porque queria.

“Que esta casa jamais fique vazia!”

E brindaram. Mas a família não era tão acolhedora com ninguém, a verdadeira face, não surpreendeu morador algum. Agora os que antes levantaram suas taças estavam no andar de cima planejando sua fuga sonhada desde aquele dia.

— Era para sermos uma família…

Toris não teria coragem de falar a verdade.

— Talvez sintam falta de suas próprias famílias, Ivan… Todos aqui tem uma vida fora…

— Ninguém tem ninguém fora daqui. — respondeu rápido, como se fosse óbvio.

Toris pensou em Feliks. Ele tinha alguém. Se fosse libertado, teria alguém para bater na porta e reconstruir sua vida. Mas era uma exceção. Quando ele chegou ali, também não tinha ninguém. Agora, Ivan também não tinha.

— Ninguém vai embora… — declarou, querendo ter certeza.

— Vão sim… — pela primeira vez, sua voz saiu menos manhosa infantil, porém mais grave e resignada. — Você sabe disso...

— Eu não vou. — se viu dizendo de repente. Ivan ficou tão surpreso quando o próprio. — Eu estou aqui agora, não vou a lugar nenhum...

Ah, como era o contraditório. Dizia tão firmemente promessas como é que ela só para sumir de vista quando todos adormecessem. Não compactuava com estratégias libertinas, mas porque ficar lidava uma localização favorável. Dizia que não ia a lugar nenhum, mas era o único que tinha para onde ir. Como não sentir o peso da culpa ao mente tão descarada mente em frente o rosto tão carente de amparo? Era ridículo.

Em qualquer outra situação, tentaria se convencer de que não era o culpado, mas não quando ouvia chorar. Ali não era Ivan, o terrível, que quebrava seus ossos e machucava seu rosto, mas uma criança sem mãe que precisava urgente de colo. Que tipo de perdedor mentia mentiras tão grandes para uma criança?

Aquela culpa veio tão forte que saiu de seu corpo e foi até Ivan. O medo de iludi-lo fez com que ele percebesse sua mentira. E agora, o castigo merecido viria, e o carrasco era a vítima.

Sim, porque Ivan se lembrava da vez que mentira antes, guardava do fundo do coração gelado a lembrança que a culpa de Toris trazia de volta. No começo da história dos dois, nos primeiros meses no casarão, Toris tentara fugir, várias vezes. Às vezes, com planos mais elaborados que outros. Mas os dois tinham uma promessa, feita quando crianças, que seriam amigos, então a traição dele sempre era mais dolorosa. Machucava a criança de Ivan. E ele nunca, nunca, esqueceu. Por agora, ele não precisava mais de colo.

— Não vai me abandonar? — repetiu, sussurrando. Seus olhos estavam turvos, sombrios. — Isso é o que você mais quer fazer. Pare de fingir que ainda está do meu lado.

Levantou-se, e enquanto Toris estava ajoelhado, ele parecia ainda maior de cima. Sua sombra o cobria por inteiro. Tinha o zangado, exatamente porque sua voz calma temia por fazer. Ivan juntou os pontos, Katyusha o abandonou, a "família" o abandonaria assim como Toris o abandonara. Quebrara sua promessa, não era melhor que eles.

Agora a raiva se misturava com álcool no sangue, e quando Toris tentou se levantar, ele o atingiu com um soco no rosto. Começou com socos; vários, seguidos, sem brecha para raciocinar entre eles. E no meio, os gritos. Ivan estava chorando de novo, mas era o choro violento, carregador berros de toda a mágoa guardada, dele, de Katyusha, de Natália, de tudo e de todos. Seu corpo guardava raiva demais e precisava descontar em alguém antes que em si mesmo... Seus punhos duros afundando no rosto de Toris marcando a pele, deixando roxo, parecendo prestes a deslocar sua mandíbula, borrando seu olhar não pareciam suficiente.

Apalpou o chão ao seu redor a procura de uma das garrafas de vodca vazias e quebrou com vigor em sua testa, perfurando sua cabeça com vários minúsculos pedaços de vidro que infelizmente não o nocautearam. As feridas que surgiram ardiam em contato com o resto da bebida em seu rosto, mas não teve descanso dos socos, que voltaram logo em seguida.

Depois de um tempo Toris nem sabia se doía mais, pois a sensação da batida era tão constante que parecia que sempre esteve lá. Já nem mais tentava se defender quando Ivan parou, caminhou até o balcão para pegar uma corda velha e amarrar suas mãos atrás das costas. A raiva animalesca aos poucos trazia de volta a crueldade cínica de Ivan na hora de usar seus métodos.

— Tire a camisa. — ordenou, esticando a corda.

Obedeceu, hesitante e arrependido. Ivan amarrou suas mãos atrás das costas, e só a corda velha já o machucava de tão apertada que ele deixou. Fazia tempo que não levava uma surra, Ivan jurava que não gostava de machucá-lo, por isso nunca ficava satisfeito todas as vezes que Toris se colocava no lugar dos colegas para protegê-los. Mas dessa vez a culpa era dele mesmo. Por seus pecados, por sua hipocrisia. Mesmo assim, foi para ajudar. Queria dar a Ivan o colo que precisava, como também já tinha feito. Bem que o avisaram, a gratidão não viria. O que veio foi um chute nas costas, terminando de derrubá-lo de cara no chão.

— Tsc. Talvez se todos andassem presos desse jeito não me abandonariam também.

Seu rosto estava esmagado contra o concreto, sujeito aos pequenos arranhões da irregularidade do solo, que pareciam esfolar sua bochecha até no movimento de respiração, e doíam como se as pedrinhas pudessem entrar na pele. Ivan deu-lhe outro chute, que o levou para frente no chão, arranhando além do rosto os braços e parte da barriga. A barra de suas calças foi para cima, expondo também ao concreto as pernas e calcanhares. Porém, aquilo nada mais era que o começo.

Primeiro Ivan puxou a corda em seus pulsos e o levantou de súbito, amarrando-o no gancho no teto deixando Toris com os pés a centímetros do chão. Ivan pegou duas vendas no balcão para seus olhos e sua boca, fazendo mergulhar numa escuridão muda de medonha expectativa. Toris não tentou resistir a nada, pois sentir culpa, já tinha passado por isso antes, se de alguma forma isso deixasse Ivan melhor…

Já fazia alguns meses que não apanhava, quase um ano. Talvez por essa razão o choque tenha sido tão grande quando as pontas de um chicote atingiu sua pele, rasgando as costas e expondo a carne a sangrar, ele gritou atrás da mordaça. O segundo seguinte foram agonizantes, na espera do próximo ataque que não veria chegando. Mas veio, veio cortando sua respiração ofegante com vários acertos seguidos nas costas, que fizeram abandonar os pensamentos. Tudo que ocupada sua mente era dor, dor atrás de dor.

A sensação que dominava o corpo era ardida, suas costas queimavam como fogo, como se cada golpe ateasse mais à fogueira que era sua pele, coberta por inúmeros vulcões em erupção. Ao gritar, sentia como se cuspisse fogo junto ao som, mas a mordaça o impedida e mantinha o calor dentro. Chegou um ponto que seus gritos eram tantos que sua própria garganta começou a queimar junto com as costas, o emudecendo. Na ânsia de extravasar a dor de alguma forma, acabou mordendo a própria língua, com tanta força que umedeceu sua boca com o familiar sabor metálico de sangue. Sentia sua pele desistir e sumir com facilidade, revelando a carne que queimava ainda mais.

Não pensava mais se merecia aquilo tudo, só pensava que queria sair.

Seu corpo se debatia para se livrar das cordas, balançando a cabeça desenfreadamente para frente e para trás, no desespero para sair dali custe o que custar. Ou então, se não conseguisse sair, talvez batesse em alguma coisa com a cabeça e desmaiasse de vez. Contorcendo-se para onde a dor ordenava, tentou encolher os ombros por instinto, desejando algum lugar para esconder o rosto. Porém isso só fazia as amarras parecerem mais apertadas, dificultando ainda mais a circulação, quando todo sangue estava indo para suas costas e se perdendo por lá. Seus pés pendidos no ar também tinham a circulação enfraquecida, o que os deixava, em contraste com as costas, gélidos e insensíveis por dentro.

Com os olhos vendados, seus outros sentidos rapidamente se aguçaram, tornando o som de cada estalo do chicote contra sua pele ainda mais insuportável, como bombas agudas estourando centenas de vezes em seus ouvidos. Completando as dores nas costas, nas mãos e nos pés, vinha a agonia de parecer que ficaria surdo a qualquer momento.

Ouvia Ivan soluçando enquanto o chicoteava, mas não conseguiu sentir dó, não mais que ódio, não mais que nada. A aflição de não saber quando viria o próximo golpe aumentava a si mesmo em cada segundo arrastado, os ferimentos já feitos ardiam com frio e o calor, a dor nos braços e nas pernas suspensos que pareciam prestes a cair. Quando mais se machucava, mais Ivan batia, com mais força e mais raiva. No ápice do surto, não dava segundos te consternação entre um golpe e outro, era o seguidos com pressa, detonando o que estava de sua pele o ritmo de seus berros chamando a família.

— Você não sabe de nada! — Toris ouviu seu grito atrás do barulho das chicotadas constantes, furioso e agoniante, como se sua voz fosse unhas afiadas riscando um quadro negro a cada palavra. — Minha mana vai voltar nem que eu vá para inferno buscá-la! Ninguém nunca mais sair dessa casa! Nenhum daqueles ratos malditos como vocês não vão a lugar nenhum ou eu mato cada um de vocês!

Houve outros gritos, mas nada muito diferente disso. Eram ameaças a todos eles e chamados por Katyusha e Natália, mas aos ouvidos de Toris tudo ficava tão alto e agudo que os sons se distorciam, tornando-se rugires disformes o cercando na escuridão.

As forças e a mágoa que movia Ivan pareciam nunca acabar, pois os golpes cada vez mais furiosos continuavam, e continuavam. Era tão doloroso e tão insistente, que em algum ponto de todo aquele sofrimento, Toris simplesmente apagou.

...

Quando aos poucos sentiu a consistência retomar o corpo, o único som no ambiente era das gotas de seu sangue das costas escorrendo pro seu corpo até pingar no piso de concreto num gotejar absurdo. O ar era coberto por um cheiro pesado de cigarro e álcool, que o deixavam enojado e com dificuldade de respirar. Parecia ter passado horas, Toris acreditava estar sozinho no porão. Ivan não o soltara. O desespero se intensificou, estava amarrado sangrando em um porão de uma casa que ninguém jamais encontraria. Morreria de fome lentamente, ou de hemorragia. Voltou a chorar, umedecendo a venda. Pensou o que é que ele seria últimos momentos de sua vida sofrida. Nunca sairia do casarão, nunca voltaria para sua terra, nunca ajudaria Ivan, nunca veria Feliks de novo. Tudo teria sido uma falha.

— Eu não queria ter que fazer isso… — a voz de Ivan ecoou baixa e distante de repente, causando Toris um susto tão grande que ele faltou ar. Esteve lá parado o tempo todo, observando desistir de tudo e desmaiar, até aos poucos recobrar a consciência. — Mas de que outro jeito você iria aprender? Da última vez você quase perdeu a perna, mas mesmo assim insiste em querer me deixar…

A síndrome de abandono de Ivan, embora justificável, estava indo longe demais. Não era a toa que queriam fugir. Mas ele não via, era uma criança. Mas que futuro teria uma criança daquelas? Ainda ouvia seu sangue gotejar.

A dor ardente em suas costas abertas era inenarrável e o deixava tonto. Sentia se prestes a vomitar, mas não sentia os braços. Na infernal escuridão da venda, ouviu os passos das botas enormes de Ivan atravessando o porão até ele. Algo pequeno e em brasa encostou em seu peito, queimando com o som do choque térmico. Ivan tinha apagado um cigarro em sua pele. O cheiro da fumaça penetrava seus pulmões como se pudesse fazê-los cair apenas de incômodo. O tabaco queimado caiu se desfazendo no chão de sangue, mas a queimadura com certeza deixaria marca por um tempo. Se não fosse pela mordaça, teria gritado de novo. Já não sabia dizer que parte do seu corpo não sentia dor, era inteiro dela.

Um toque suave alcançou sua bochecha suada de medo, tão suave que o assustou mais ainda. Mesmo que fosse o primeiro toque em horas que não causava sofrimento algum, Toris sabia que não era bom sinal.

— Você sabe que eu não gosto de machucar você... — mais estranho que eu toque, Toris sentiu um beijo em seu ombro, na região da escapula, carinhoso como se pudesse estar arrependido, mas não estava. — Porque você me obriga fazer isso?

Toris engolir um e seco, bem no momento que Ivan tirou a mordaça e o deixou respirar o ar pela boca, ofegante, mas aliviado. Queria dizer tanta coisa, mas o pavor o segurava. De repente, seus olhos foram cegados pela claridade quando a venda também foi embora e os olhos vermelhos e coitados de Ivan surgiram diante dos seus novamente. O pouco de ódio que dor o trazia foi embora ouvir aquela expressão desolada, trazendo ainda mais forte seu constante instinto de proteção. Por mais que quisesse sentir ódio, ainda queria cuidar dele e fazê-lo se sentir melhor, queria abraçá-lo. Porém as amarras em seus braços continuavam lá.

— Toris, você me dá tanto trabalho… — os braços fortes de Ivan o envolveram completamente, mostrando seu medo de deixar escapar. — Mas ao menos…

As mãos dele subiram por suas costas, trazendo primeiro choque térmico com os dedos frios e o ardido do contato com a carne viva, mas toda a voz e a força foram embora de seu corpo quando ele afundou as unhas ardilosas nas feridas abertas, fazendo se contorcer de aflição, e sangramento voltar. A dor era tanta que não conseguiu respirar, seu grito saiu surdo.

—… Sei que você nunca vai me deixar…

Ele desceu as unhas pelo cumprimento de todos os machucados nas costas, apertando com mais força os ferimentos, como se tocasse piano em sua carne. Suas mãos para sua cintura, trazendo carne presa nas unhas juntas, e então voltava. Toris sabia que suas costas jamais seriam lisas de novo, as costas que Feliks arranhava e beijava, e quando ele fazia era bom, estariam marcadas pra sempre. Um choque percorreu seu corpo quando Ivan arranhou cruelmente um ferimento no topo da espinha, chegando no pescoço.

—… Nem que eu tenha que te matar aqui...

Ameaças e tortura, isso era tudo que Ivan conhecia para se proteger. Talvez por isso esboçasse uma levíssima satisfação no olhar quando as lágrimas de Toris voltaram a rolar pro seu rosto cheio de hematomas. O medo era tão grande que Toris não se segurou mais e começou a suplicar:

— Por favor, me deixa ir, por favor… Eu juro que não vou a lugar nenhum... Vou ficar do seu lado para sempre se você quiser... Eu não ia fugir... Só me deixa ir...

Meses atrás, não estaria implorando por sua vida, pois via a morte como uma salvação divina. Mas agora não, agora tinha alguém para encontrar e amor pela liberdade que antes não se lembrava. Não podia morrer ali.

Houve um momento de silêncio curto, tomado pelas unhas de Ivan cravando na carne e pele de Toris, que não sabia mais o quanto poderia aguentar. Contudo, teria que aguentar muito mais ainda, pois Ivan afundou ainda mais os dedos dos ferimentos antes de voltar a falar:

— Você já quebrou sua promessa… Mas eu sinto falta de você do meu lado... — a resposta fez Toris arregalar os olhos, mas os apertou em agonia quando Ivan o arranhar outra vez. — Você não fugia de mim antes, naquela época… Nem chorava quando tentava te abraçar…

Ele fechou mais seu corpo em seus braços, mas sem jamais tirar as unhas. Toris tossiu por falta de ar causada pela dor.

— Era diferente. — disse com um fio de voz estrangulada.

— Ontem eu quase me casei com minha irmã… E hoje eu perdi as duas… — dito isso, arranhou as costas de Toris com toda força que tinha para dissipar sua própria dor. — E agora todos os meus amigos vão me deixar.

Toris odiava quando ele se referia aos prisioneiros da casa como "amigos". Eles sim o odiavam, mas só ele estava pagando.

— Agora entende porque eu tenho que fazer isso?

Toris mergulhou olhar nos orbes violetas de vidro quebrado olhando parece, e continuou vendo uma criança pedindo colo. Reunindo coragem, Toris tomou ar e respondeu sua pergunta, com um sorriso doce que compreensivo quase fora de contexto:

— Porque você está com medo…

Ivan congelou com a resposta de Toris que não esperava receber, muito menos daquela forma. Seus pulmões doíam para falar, por mais que respirasse pesado para tentar recuperar o ar, esse parecia nunca ser o suficiente. Apesar de tudo, preencheu os pulmões e completou:

— O mundo não tem sido nada bom com você... Não é... Ivan? — a bondade em sua expressão parece disposta a dar aos toda força que não tinha para fazer o seguir. —Então… Se você precisa me machucar pra sentir melhor… Eu não te culpo…

Ivan recuou um passo.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — ele pareceu genuinamente horrorizado, tanto que trouxe suas mãos de volta para si, soltando das costas de Toris.

Liberto, depois de tanto tempo quase incapaz de respirar, soltar um suspiro pesado na que momento foi de um alivio tão grande que Toris conseguiu relaxar o corpo. E, por um segundo, foi a melhor sensação do mundo. O sorriso seguinte conseguiu até ser mais verdadeiro.

— Nem todos são maus, Ivan... Você também não é.

Ele deu outro passo assustado para trás, porque não sabia lidar com benevolência. Só uma pessoa no mundo já tinha o dito antes que não era mal: Katyusha.

Ele se abaixou para pegar outras duas garrafas vazias de vodca no chão, dando meia volta ao redor de Toris, ficando de frente com suas costas deformadas. Apertando os gargalos das garrafas e fungando para segurar o ardido nos olhos, uma parte de si tentava convencê-lo que não era mais necessário, mas sabia que faria de qualquer jeito.

Reuniu a raiva que tinha do mundo e usou para atirar uma das garrafas com tudo no meio das costas de Toris, quebrando-a também em cacos pequenos se afundando na pele. O grito dele que veio do fundo da garganta foi ouvido na casa inteira. Insuportável, insuportável, insuportável. Era muito pior do que as unhas. Porém, não tinha acabado, Ivan tinha recolhido duas garrafas, então mais uma se desfez em sua carne sensível, misturando a bebida alcoólica com os cacos, acendendo a queimação nas costas, parecendo corroer como ácido cada milímetro em que o destilado encostava. Na terceira garrafa, a vodca começou a se misturar com o sangue a descer por seu corpo, desviando dos cacos enfiados na carne até gotejar no chão.

Então, sem dizer uma palavra, ele soltou as cordas de Toris, que caiu inválido no chão de concreto, abraçando-se dos joelhos, entre alívio e desespero, sem conseguir conter o choro alto. Na queda, ralou as mãos e as pernas, ao colocá-las na frente para se proteger.

— Você não sabe o que fala, verme. — franziu a sobrancelhas, dando um chute no abdômen de Toris, cortando sua respiração outra vez.

O chute foi tão forte que pareceu ter esmagado todos os seus órgãos internos de uma vez. Fez seu almoço subir pela garganta, e então voltar violentamente contra a base do estômago. Então a situação se repetiu, quando Ivan o chutou de novo para fazê-lo se deitar com as costas conta o chão, piorando seus ferimentos contra as pedrinhas do concreto, que empurravam os cacos de vidro para mais fundo.

Toris não entendia. Tinha sido bom, tinha e oferecido colo, o que mais precisava, mas aquilo parece ter enfurecido Ivan ainda mais. Ouviu sua voz cheia de impaciência ordenar:

— Fique aí e pense no que você fez.

As luzes apagaram e a porta fechou, Toris estava definitivamente sozinho no porão. Ivan subiu para destruir os rebeldes e seus planos de fuga, enquanto Toris soluçava no chão frio, sem condições de se levantar e ir embora, sabendo que ninguém viria buscá-lo. Afinal, não tinha ajudado Ivan, não tinha melhorado nada. Encolhido no chão naquela tarde, chorou tanto que dormiu. Teve tantos pesadelos que acordou. E, ao se ver no concreto gelado, sentindo as costas ardendo e os cacos perfurando, chorou mais.

Nenhum golpe surpresa viria quando fechar seus olhos, mas agonia das chicotadas no escuro não foi embora. Praguejou contra mundo todo aí, pelo que pareceram dias, e talvez tenham sido. Chegou uma hora que se levantou, com força que não sabia que tinha, cambaleando e se escorando na porta, e nem se preocupou em vestir a camisa para manchá-la de vermelho. Subiu dois lances de escada com consciência de que poderia ceder a qualquer minuto e desmaiar nos degraus, mas cumpriu toda a jornada. Novamente no casarão, nada parecia ter mudado, mas não havia sinal de uma alma viva por lá. Sabendo que não aguentaria mais muitos passos e sem se preocupar em ser pego no caminho, ele saiu pela porta da frente e fui para um único lugar que sua mente embaçada ordenada as pernas: a casinha cor-de-rosa de Feliks.

Nevava muito, ele só estava de calças e não se aguentava em pé. Mas não pensava, não via os obstáculos, só sabia que tinha que ver Feliks, o resto não tinha espaço. A caminhada que antes parecia curta foi uma odisseia sofrida, seus dedos congelavam isso inspiração não dava conta de seu corpo, mas ele chegou até a porta e bateu.

Talvez, por um único instante iluminado, toda sua dor tenha desaparecido quando Feliks abriu a porta, animado para vê-lo e com o rosto tomado por um lindo sorriso colorido de saudade. Quando ao ver o estado de Toris seu sorriso desapareceu, sua pouca força foi embora e ele deixou o corpo esgotado derramar-se para frente, caindo inconsciente nos braços de Feliks.