— Feliks! Feliks!

A vozinha alegre e quase infantil o cumprimentou ao país, no primeiro passo que deu para fora do trem. Era isso. Tinha ido para a Itália no final das contas, sem a principal razão para isso, talvez por impulso na hora da raiva. Mentira, se fosse impulso, não teria passado em casa, não teria dado um adeus apropriado para seus amigos na praça dos artistas, não teria acompanhado Katyusha para a outra estação da cidade quando ela decidiu também deixar o país. Talvez Feliks só não aguentasse mesmo a ideia de morar apenas a alguns metros de seu ex, que estaria naquele momento sendo torturado pelo cara que tinha o tirado dele, por livre e espontânea vontade.

A Itália tinha um cheiro mais agradável. Seu casaco estava amarrado em sua cintura, porque o ar era quente e novo demais para suas roupas russas. Fungou, limpou o resto de lágrimas do rosto – que surpresa, chorara a viagem inteira – e olhou de queixo erguido o destino que tinha escolhido. Procurou, no mar de estranho, o rosto familiar de Feliciano, seu amigo que tinha tornado tudo aquilo possível. O sorriso dele não tinha mudado um milímetro, como se a palavra sofrimento jamais tivesse surgido em seu vocabulário. Feliks tentou sorrir também.

— Fê! Ciao, ciao! — com sua animação característica, Feliciano, pulou nele em um abraço exagerado.

Normalmente, Feliks estaria gritando "Feli" e o abraçando tal como criança e tal como ele, mas o gosto amargo em sua boca acabou o contendo apenas a retribuir o abraço. Feliciano, apesar de distraído, notou algo entranho nele.

— Fê, seus olhos estão vermelhos... — constatou, num tom que não sugeria razão ou desconfiança.

— Hã? — fugou, quase divagando. — É, que merda, né? Tá muito feio?

— Eh... — ele parecia incerto sobre responder a verdade, o que para Feliks era o suficiente. — Mas cadê o garoto bonitinho? Eu quero conhecê-lo!

Feliks virou os olhos. É claro que ele ia perceber a falta da pessoa que tinha começado aquilo tudo.

— Bem, ele não veio. Não vamos perder tempo com ele, Feli. — forçou um sorriso e abanou o ar, como se não ligasse. — Vem, você tem que me mostrar essa cidade! Tudo parece tão lindo...

Rezou para Feliciano nunca detectar a falsidade em sua voz.

...

Toris tentava com mais esforço do que gostaria não se tornar extremamente consciente do som da água batendo nos pratos, depois dos pratos batendo na pia, do pano esfregando nos pratos, nos pratos secando no escorredor, e do leve cantarolar inocente que acompanhava tudo. O silêncio era mais ameaçador do que as palavras, ao menos por instinto.

Não fazia sequer uma semana que estava morando sozinho com Ivan, num casarão grande demais para duas pessoas. Não sabia bem o que esperar quando pisou naquela decisão, mas naqueles seis dias no casarão, não se surpreendeu por Ivan estar ao menos instável. Emocionalmente. Tinha pendurado dois quadros gigantescos na parede da sala principal, um de Katyusha, um de Natália, embora nem de longe tão perfeito quanto o que Feliks fizera. Sempre que os via, porém, Ivan parava, encarava, e na maior parte das vezes começava a chorar. Toris o abraçava, sem dizer nada, e acariciava seus cabelos até que ele, invariavelmente, dormisse em seu colo. Já tinha se tornado rotina.

Não era exatamente ruim, estava fazendo o que devia: cuidando de Ivan. Diferente do que Feliks tinha sugerido, ele não estava violento, estava mais dócil que nunca. Nem mesmo as tarefas de casa deixava Toris cuidar sozinho; combinaram que ele lavava a louça porque Toris cozinhava melhor, e dividiram a limpeza igualmente, escolhendo deixar alguns cômodos pegarem poeira por não serem usados. O quarto de Natália era um deles, pois Ivan não tinha coragem de entrar nem de mandar Toris. O sangue tinha secado.

Por ter seu próprio quarto destruído, Ivan se mudou para o quarto de Katyusha, talvez mais pelas lembranças que pelo conforto. Toris ficou com o quarto de visitas, infinitamente melhor que o quartinho dos empregados de antes. Pela primeira vez, tinha um quarto só dele. Tudo parecia bem novo, e superficialmente, diferente para melhor.

Porém, não eram camas de viúva, não ter que lavar louça e quietude que transformariam aquilo num mar de rosas. Não, o único rosa de sua vida era o das paredes da casinha, fadado a desbotar sem seu dono para iluminá-la.

Desfrutando da nova liberdade, Toris tomou coragem para ir lá no terceiro dia. A porta estava destrancada e ainda rangia da mesma exata forma para se abrir. Tudo estava quieto e vazio, como se ninguém tivesse morado. A cama de casal estava sem lençol, empoeirada, mas era agora o único móvel. Por ser um emigrante ilegal, tecnicamente, Feliks tinha levado pouco para a Itália, mas também sempre teve pouco, mas os poucos objetos rejeitados Toris pegava e apertava contra o peito, e longe dos olhos de Ivan era a vez dele de chorar. Eles quase tiveram tudo, eles estiveram tão perto. Toris sabia que ele tinha escolhido não o seguir e ser só mais um dos objetos que Feliks largaria na Rússia, mas não conseguia evitar imaginar como seria. Se ele tivesse ficado, sua vida talvez fosse o mais perto de perfeita que poderia ser. Mas depois de muitos dias refletir, sabia que não poderia culpá-lo por ir embora, porém também não estava arrependido. Por mais vazios que fossem os dias, ao menos estava fazendo o que achava certo.

Entretanto, sua consciência limpa não o impedia de se ajoelhar no meio do único cômodo, com o rosto enterrado em qualquer coisa que cheirasse a Feliks, pegando poeira junto com o resto da casa. Quanto mais ia lá, mais ela se tornava um fantasma do que um dia foi, mais cinza que rosa, mais triste que um refúgio da tristeza.

Ao final da semana, Toris se sentia solitário. Ele e Ivan conversavam pouco, numa casa muito grande; e querendo ou não, tinha se acostumado com a atenção viva e colorida que só Feliks sabia dar. Quando a noite caia, e estava sozinho de novo seu quarto, fechava os olhos e ouvia a voz dele ecoando pelas paredes. Suas risadas e suas ideias loucas, seus devaneios. Seus beijos, as marquinhas de amor que deixava em seu pescoço por mais que Toris pedisse para não deixar. Elas tinham sumido de vez agora, sua pele branca como sempre esteve, sentindo falta do roxo e do vermelho.

Pensava no brilho de seus olhos ao falar de pintura, e da bagunça do canto da casa cor-de-rosa onde ficavam seus quadros. Ria ao se perguntar se bagunçaria sua casa na Itália também. Àquele ponto já deveria estar lá, com as malas desfeitas, recomeçando uma vida da qual Toris não faria parte. E, enquanto ria, Toris chorava.

Na noite seguinte, quando novamente a solidão não o deixou dormir, Toris pensou em alimentar as lágrimas com um copo d’água. Desceu pelas antigas escadas mortas do casarão em direção à cozinha. Porém, viu da sala uma luz que não deveria estar lá. Ao se aproximar, encontrou uma lareira acessa aquecendo Ivan em seus pijamas e carinha triste.

— Sem sono? — perguntou para anunciar sua presença.

Sem se virar para olhá-lo, Ivan acenou com a cabeça.

— Quer companhia?

Outro aceno.

Devagar, Toris sentou-se ao lado dele, abraçou os joelhos e apreciou o fogo crepitar. Esperou que Ivan dissesse alguma coisa, mas manteve o silêncio. Toris também não tinha nada a dizer. Ficaram assim ouvindo o fogo, pelo que parecem horas, até um ponto que se sentiu novamente sozinhos faria tudo por uma companhia real, por um carinho, por aquilo que tinha se acostumado quando tinha Feliks por perto.

Com aquela solidão batendo tão forte no peito vazio, escorregou a mão entre os dedos gelados de Ivan e encostou a cabeça em seu ombro. Não foi um ato pensado, e apesar da seriedade que pareceu, era movido pelo mesmo desespero que o levará de volta pra a casa de Feliks toda noite, uma vontade de fazer tudo aquilo melhor. Não importava como.

Esperou uma reação, por quanto tempo não soube. Aquilo foi sua última lembrança antes de acordar, em seu quarto. Dormira na sala e Ivan o levará até lá. Nada mais. Com mais alívio que decepção, Toris entendeu que ele não estava interessado. De manhã, juntou seus cacos mais uma vez e desceu para um café.

Ivan já estava lá, sentado solitário na mesa comprida, tomando sopa com o jornal do dia nas mãos. Levantou os olhos quando ele chegou e voltou para o papel, inalterado.

— Bom dia. — sua voz estava usualmente macia. — Esquentei a sopa de ontem, não precisa cozinhar

Toris balbuciou um agradecimento e pegou uma tigela. Sentou-se na outra ponta da mesa, a uma distância opressiva. Quando a mesa estava cheia, ela ficava vazia. À direita de Ivan, Natália; à esquerda, Katyusha. Toris não ousaria ocupar o lugar de nenhuma delas.

Ainda era estranho o constante silêncio que perdurava entre ele. Toris estava prestes a retirar seu prato e pedir licença quando Ivan voltou a falar, ainda fitando apenas a própria comida.

— Você sente falta dele?

Toris endureceu, a pergunta o pegara com a guarda baixa. Acabou demorando demais para responder com somente um movimento da cabeça. Ivan bebeu mais uma colherada de sua sopa.

— E você sabe onde ele está?

— Em algum lugar da Itália eu acho... — se arrependeu de falar a verdade logo que percebeu o uso que Ivan poderia fazer com aquela informação.

— Hm.

Silêncio. Toris estava quase suando frios depois de um longo momento Ivan retornou.

— Você deveria voltar para ele.

Se Toris tivesse algo nas mãos, teria caído e se espatifado no chão. Seu coração quase parou. Tinha abandonado Feliks para estar ao lado de Ivan e agora estava ouvindo dele que tinha sido a decisão errada? Parecia um daqueles pesadelos que tudo voltava para assombrá-lo.

— C-como assim?

Ivan engoliu seu café.

— Eu não preciso da pena de ninguém. Você está aqui porque tem pena de mim. Ou vai tentar negar?

Toris abaixou os olhos. Ivan prosseguiu.

— Katyusha também tinha mais pena que amor por mim. — não parecia doloroso para ele admitir, mas Toris sabia que era. — Quando essa pena acabou, ela foi embora. Com você será o mesmo. Então você vai agora.

Toris procurou todas as palavras de consolo, mas se viu de repente sem voz. Aquilo era esquisito de tantas formas, a terceira vez que Ivan lhe dava permissão para ir embora. Na verdade, agora parecia uma ordem. Ivan se levantou.

— Arrume suas coisas. Te deixarei na ferroviária depois do almoço. Agradeço por tudo que me fez.

A última frase saiu mais fraca, engolida e diferente da firmeza das ordens. Antes que Toris pudesse sugerir tudo aquilo, Ivan tinha sumido.

Tremendo, voltou ao seu quarto e observou suas coisas. Tinha ordem para arrumá-las e ir embora. Não sabia se deveria protestar, pois sua única certeza era que deixar Ivan sozinho não era uma boa ideia. Porém aquele vazio em seu coração era tão difícil de dizer não, a euforia em seu sangue ao pensar em procurar Feliks, revirar a Europa de cabeça pra baixo para tê-lo de novo em seus braços. Se arrependia a cada segundo por ter assistido a ele correr para fora de sua vida, num final sem amor, sem poesia. Poder reverter a situação era digno de sonho.

Toris fez a mala. Horas depois, Ivan bateu em sua porta. Com os olhos baixos, sem palavra nenhuma, anunciou a hora de partir.

— Eu fico se você quiser. — sussurrou, mas o dó em sua voz o traiu.

— Você fica se você quiser. — foi a palavra final.

— Por favor, não me faça tomar essa decisão.

Era irônico que, quando finalmente ganhará sua liberdade, Toris percebeu-se com medo dela.

— Você já tomou. — Ivan pausou. — Nunca vou entender como você não me odeia até hoje.

— Eu te conheço...

Ivan virou o rosto e saiu andando pelo corredor. Toris entendeu com dor no peito que era para apenas segui-lo e dizer adeus.

— Você não diria isso se ele tivesse morrido. — Ivan finalizou a conversa, deslizando as mãos pelo corrimão das longas escadas do casarão.

Estranhamente, no caminho, Toris encontrou muito pouco conflito interno comparado ao turbilhão que estivera dentro da casa. Tudo acontecera tão rapidamente que só poderia se deixar levar pela corrente. Ivan encarava a estrada como quem encarava o nada.

— Vai ficar bem sem mim? — sem ninguém, perguntou Toris, mais para si mesmo.

Ivan não respondeu e com seu silencio estacionou o carro. Toris desceu.

— Obrigado.

— Não deveria me agradecer.

Toris hesitou em se aproximar, sem saber se aquela era a ocasião para uma despedida emotiva. No final, o abraço que tentou dar Ivan não retribuiu. Se uma palavra ou olhar a mais, Toris desceu do carro e procurou o primeiro trem para atravessar a cortina de ferro.

...

Assim que a porta se fechou, Ivan sentiu-se mais sozinho do que nunca. Voluntariamente abrira mão do único disposto a ficar do seu lado, por raiva que tinha de si mesmo por não receber seu ódio. Sua irmã o achava um monstro. Agora estava convencido disso.

Parte dele não queria deixar Toris partir, não queria deixar ninguém, mas era tarde. Toris merecia odiá-lo como muitos, bastava lembrar-se do rosto contorcido e agoniado de seu amante rebelde enquanto Ivan amassava seus órgãos internos com os pés. A capacidade de perdão de Toris era algo além. Talvez por pena de sua alma benevolente, Ivan soube que precisava deixá-lo ir.

Com o carro e a vida vazios, Ivan deu partida e seguiu seu caminho, não para seu casarão destruído, mas para outra velha construção, no centro da cidade.

Encarou os policiais de lá com desconfiança e o coração na mão. Na secretária da delegacia, um policial de certa idade perdera o ar de superioridade firme que um dia os oficiais soviéticos puderam sustentar.

— Posso ajudá-lo, Sr. Braginsky? — por toda a cidade Ivan era conhecido e respeitado, raramente precisava se apresentar.

— Eu tenho uma denúncia a fazer. — manteve a pose que também um dia teve. Os olhos do policial se arregalaram. — Tenho todas as provas e exijo prisão imediata.

— O que seria, senhor?

— Corrupção, tortura de civis, cárcere privado.

O policial o encarou em silêncio e expectativa.

— Na verdade é uma confissão.

...

Katyusha ainda estava com dificuldade de aprender sueco. Encontrara alguns russos que moravam em Estocolmo da primeira vez, mas agora não tinha recursos para reencontrá-los. Era um segundo recomeço. Porém não havia mais medo em seu coração, apenas luto. Seus irmãos estavam mortos. De repente, sua família não mais existia. Por causa de Ivan, sua irmãzinha tinha enfiado um caco de vidro e sangrara até a morte. Era um ato que agora passava muito pela cabeça de Katyusha, sem família e sem razão. Mas se tinha voltado para a Suécia, é porque pretendia continuar.

Porém, na maior parte do tempo, não havia energia para recomeçar. Como um hábito que absorvera dos irmãos, na Suécia frequentava muito mais os bares. Não tinha dinheiro, a vodca não era tão boa quanto a soviética, mas jeito se dava em tudo. Com pequenos serviços de babá e lavadeira, pagava aluguel numa república de estudantes e anoite ia beber sozinha. Em luto, tentava ainda sorrir para os bêbados das outras mesas, procurando novos amigos, quem sabe.

Perto do balcão havia uma minúscula televisão, inaudível. Seus olhos se arregalaram ao observar a imagens que passavam, de mapas da Alemanha e da União Soviética junto com entrevistas de autoridades, mas o som estava desligado. Fez sinal para o balconista. Ele aumentou um pouco o volume. Katyusha não falava sueco, mas conseguiu absorver entre palavras soltas, uma frase:

— A juventude alemã se reúne ao redor do muro. Todo o mundo socialista está em choque.

...

— Derrubaram! Derrubaram o muro de Berlim! — uma risada beirando a histeria ecoou pelo apartamento. — Se foderam.

Eduard estava radiante com o jornal na mão.

— Eu vi. No que você acha que vai dar? — Raivis tirou os olhos do livro para falar com ele.

Eduard então começou a discorrer sobre suas opiniões enquanto pegava um café na cozinha. O apartamento que dividia com Raivis era muito, muito pequeno, num bairro pouco prestigiado da capital finlandesa. Perto do casarão, parecia uma mansão. Após a fuga, Eduard foi atrás de um amigo seu lá e arrastou Raivis com ele para um novo começo. Conseguira um emprego desenvolvendo tecnologia, embora atrasada em relação a outros países, Raivis trabalhava em serviços menores e no tempo livre começara a escrever poesia. Só havia uma peça faltando ali.

— Você acha que o Toris gostou da notícia? — Raivis trouxe o assunto com muito cuidado. — Onde quer que ele esteja...

...

A brisa da Itália era quente no rosto que só conhecia o frio. Toris desceu do trem com peso no peito por estar sozinho. Ali era o lugar com que havia sonhado, por semana com Feliks, mas havia chegado lá sem ele. Estava algumas semanas atrasado.

Ensaiou em sua cabeça o que diria quando o encontrasse. Feliks não iria pular em seus braços facilmente, não depois de Toris ter escolhido deixá-lo. Sinceramente, não estava nem um pouco confiante de que seria perdoado, quem dirá aceito de volta. Talvez se implorasse de joelhos. O que quer que fosse, enfrentaria mesmo que apenas por um perdão e um adeus. Assim que o encontrasse, descobriria.

Quando o encontrasse. Não tinha um endereço, um número de telefone, apenas um passaporte e um dicionário de russo para italiano. Eles tinham planos de ir para a América, mas se Feliks seguira com isso, suas chances de encontrá-lo tornavam-se nulas. Feliks tinha que estar naquela cidade.

Ivan tinha lhe dado dinheiro para moradia e comida, mas tudo lá parecia muito caro. Cobravam por coisas que Toris sequer sabia que poderiam ser compradas. Inclusive, para seu azar, a entrada de galerias de arte. Precisava começar de algum lugar, porém não só não havia um sinal da cabeleira loura que amava, como nenhum dos quadros sequer lembravam o estilo de Feliks. As poucas semanas que estiveram distantes não foram suficientes para sua carreira decolar.

Também procurou por todos os parques e praças da acidade. Havia por todo canto jovens com seus cadernos, mas nenhum sinal dele. As comunidades semelhantes à praça dos artistas também não eram promissoras, pois Feliks era extremamente tímido ao redor de desconhecidos, e também não falava italiano. Mesmo assim, tinha vindo enfrentar sozinho o país apenas porque Toris não manteve sua palavra. Seu coração apertava só de lembrar.

...

— Ele está olhando pra você... — veio um sussurro alegre em seu ouvido.

Feliks seguiu o olhar de Feliciano até encontrar, de fato, um rapaz olhando pra ele. Seu instinto foi imediatamente esconder o rosto e grunhir.

— Eu tipo, sei que sou lindo mas odeio que me encarem assim.

— Ele não é feio. E você tá solteiro...

— Obrigado por me lembrar. — bufou. — Eu sei, mas tipo... sei lá...

— Feli, supera... — Feliciano brincou com seus cabelos, a voz quase miada como de costume, sem malícia alguma.

— Eu totalmente superei. Ele só não é meu tipo.

Feliciano desistiu depois disso, estavam em um bar bem caidinho no centro o qual Feliks se arrependeu de sugerir que fossem. Sabia muito bem que precisava sair e casa e não deixar a vontade de se enrolar em um cobertor e chorar o dia todo vencer. Mas o tédio e o desconforto que esses bares traziam não pareciam valer a pena quando estava lá.

— Aliás. — Feliciano voltou a falar, depois de um tempo. — Você deveria ter ido pintar no parque comigo hoje. Tinha um carinha todo esquisito andando pra lá e pra cá usando um dicionário pra falar com todo mundo. Eu fiquei com medo.

— Parece patético.

Antes que Feliciano pudesse responder, um rapaz que trabalhava no bar aumentou o volume da pequena televisão do estabelecimento. A legenda foi o bastante para atrair os olhos de todos.

— Como assim derrubaram o muro de Berlim?!

Feliciano se assustou com o tom urgente de Feliks.

— Eu acho que vi isso em algum lugar... Estão até com medo da União Soviética acabar se fragmentando...

Feliks mal escutou. Seu coração estava quase saltando para fora do peito.

— Eu vou voltar pra Polônia. — sua voz saiu baixa, contemplando pela primeira vez a possibilidade. — Feli, se isso for verdade, eu vou voltar pra Polônia!

— Mas você acabou de chegar...

Feliks abriu um sorriso pequeno e triste, passando o indicador pela borda de seu copo.

— Não era pra ser assim... Eu vim para me casar, mas já que não rolou... Eu quero voltar pra casa...

...

Toris estava prestes a desistir. Semanas se passaram e sequer tinha uma pista. Aprendera o básico da língua, mas aquilo ajudara pouco a encontrar um loirinho polonês pintando por aí.

Por isso, quando viu o papel, seu coração gelou.

Conhecia aquele rosto. Os cabelos claros, pele clara, a beleza inigualável capaz de derrubar impérios. O retrato era de Natália.

Não era propriamente um retrato, mas um mero esboço em um papel tão leve que voou direto em sua mão enquanto caminhava. Só poderia ser de uma pessoa. Porém, o vento poderia ter trazido de qualquer lugar. Pensou em seguir a direção contraria, se agarrar em toda a esperança que restava.

Tinha passado os dias sonhando com esbarrar casualmente com Feliks na rua, com ele aparecendo um dia em sua porta, qualquer repentina surpresa que viesse derrubar a angustia que estava vivendo. Sonhava com seu rosto, com sua voz, seu toque e seu gosto. Queria vê-lo pintar de novo. Queria abraçá-lo e girá-lo no ar mais uma vez. Queria qualquer coisa que pudesse ter, qualquer migalha de Feliks mataria sua fome.

Porém nenhuma imaginação poderia se igualar ao ver aquele desenho. Não significava que Feliks estava por perto, mas qualquer decepção encararia depois.

E se suas preces foram atendidas, o cabelo loiro que vira ao longe não seria de mais ninguém. Seu coração já nem mais em seu corpo estava. Afinal, parado no meio da estação, estavam os olhos verdes de seu subconsciente arregalados ao vê-lo. Qualquer discurso que ensaiara um dia se desfez no vento. Com as mãos tremendo, entendeu a folha que vento lhe entregou e gaguejou.

— Você... deixou isso cair.

Feliks parecia até mais atônito que ele, encarou o papel encarou Toris, encarou o papel, encarou Toris,

— O que você está fazendo aqui? — sua voz estava tensa, baixa, incomum.

— Procurando... Você... — respirou fundo. — Me desculpa. Eu te deixei sozinho, eu fiz errado, eu... Me desculpa.

Fixou o olhar no chão, envergonhado, reprimindo todo seu desejo de abraçá-lo e nunca mais soltar.

Feliks também olhava apenas para o chão. Seus lábios se desenharam num sorriso amargo.

— Tipo, totalmente atrasado.

Toris só não sabia se sorria junto ou se realmente era tarde demais. Se deu conta, de repente, que ao lado de Feliks havia uma mala, e que estavam parados perto da porta de um trem, já se enchendo de passageiros.

— Para você vai? — a voz de Toris quase não saiu.

— Pra casa... Pra Polônia. As coisas estão mudando.

— Ah... — toda a alegria que Toris sentia se destruiu como vidro. Tinha encontrado Feliks, mas tinha sido tarde demais.

— Espero então que... tudo dê certo pra você... lá... — não era o que queria dizer. Não poderia acabar assim...

— E você? Pra onde vai?

Toris suspirou. Não tinha planos para aquilo.

— Não sei... Eu passei os últimos meses atrás de um rapaz então... Acho que vou continuar.

Feliks o encarou em silêncio. De dentro do trem veio o anuncio de embarque. Toris entendeu, e soube que Feliks também. Última chamada. Próximo trem para a Polônia apenas semana que vem.

— Me espera lá? —Toris deu um sorriso que pareceu como um adeus.

Viu a confusão correr pelo rosto de Feliks, a decisão entre Toris e o trem. Toris e o trem. Ir para casa, ficar, quando nem parecia acreditar que Toris estava mesmo ali em sua frente, a ferida da última briga ainda aberta. Toris tinha o deixado, e poderia agora facilmente se vingar. Mas se estava lá era porque tinha ido atrás dele, e se tinha o escolhido era porque tudo estaria diferente. Não tinham uma casa rosa para ir, Toris não tinha um casarão para voltar. Se ficassem, iriam juntos para casa, depois descobririam o que fariam.

Viu também o momento que a decisão chegou, e no minuto seguinte, Feliks tinha os lábios nos seus, e tudo pareceu um sonho prestes a acabar. Se transportou para a casinha rosa, para as noites de risos e deles, em que fogo de medo e alivio queimava nele. O medo de voltar para o casarão, o alivio que Feliks trazia, por existir, sua fuga, sua luz. Havia se arriscado tanto por ele, que era difícil acreditar que um dia poderia ter o deixado.

Tanto estava absorvido pelo amor e calor em seu corpo que mal ouviu o som do trem partindo, mal registrou que com todos os motivos para deixá-lo, Feliks estava lá. Quando se afastaram, Toris sentiu o vento soprar todo o passado que havia deixado para trás. Com o corpo quente e vivo como nunca, as pálpebras de Toris estavam pesadas em pedido de mais beijo. Feliks sussurrou.

— Vamos pra casa.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.