Serena

Milhões de teorias borbulharam em minha cabeça. Certo. Eu senti arrepios quando Heath encostou em mim pela primeira vez?

Não me lembrava. Na verdade, o tempo onde eu não sentia nada por Heath Seeler parecia outra vida.

Espere... Seeler é um anjo! Meio anjo, que seja. Mas... o sangue dele é diferente. Talvez as correntes elétricas...

— É isso! — falei com Audrey dois dias depois, quando finalmente cheguei a essa conclusão.

— O quê?

— Você presta atenção na aula de Religião?

— O que você acha?

— Certo... Mas... Sabe se, quando um anjo toca um humano, o humano sente um... — baixei o tom de voz e desviei o olhar. — arrepio?

Audrey achou graça.

— Um... — ela se aproximou e baixou o tom de voz. — arrepio? Não.

— Não sente ou você não sabe?

— Afinal, que merda de pergunta é essa? Ei, Seeler! — ela gritou, e eu quis matá-la por isso.

— Oi, Audrey — ele sorriu levemente e se aproximou, afastando os cabelos escuros do rosto.

— Você sabe se, quando um anjo toca um humano, o humano sente um... arrepio?

— Um... arrepio? — Heath também imitou o sussurro. — Não.

— Não sente ou você não sabe?

— Bom, vai saber. O que me diz, Argent? — ele me fitou com os orbes dourados, o que me deu a certeza de que ele sabia o motivo da pergunta sobre anjos.

Maravilha.

Heath

Na sexta-feira, eu, Serena e Audrey ficamos até mais tarde no colégio por causa do musical de inverno.

— Eu comecei a escrever — anunciou Serena no microfone. — Chamo de Céu e Inferno. Eu não vou explicar merda nenhuma, se vocês quiserem saber, peguem aquele folheto ali — ela apontou para uma pilha de folhetos no canto do palco. — Se quiserem fazer teste para o protagonista babaca, irritante, filho da mãe, maldito, convencido e provavelmente hétero, podem se inscrever naquela folha ali.

Provavelmente hétero? — ergui uma sobrancelha.

— Seeler, cale a boca, seu babaca, irritante, filho da mãe, maldito, convencido e provavelmente hétero.

— Olha só, pareço ser perfeito para o papel.

— Eu não acho — ela resmungou e saiu do palco.

Depois da reunião quase inútil, eu e Serena acompanhamos Audrey até o carro da morena, que nos daria uma carona.

— Droga, esqueci meu casaco — Audrey revirou os olhos e correu até o auditório.

Posicionei-me entre Serena e o carro.

Provavelmente hétero? — repeti, erguendo uma sobrancelha. — Você tem dúvidas? Porque posso provar para você agora mesmo.

Ela mordeu o lábio, desviando o olhar.

— Eu não disse que era sobre você, idiota.

Soltei um riso.

— Certo.

— É sério! Minha vida não gira em torno de você!

— Pois é. Não é injusto que a minha tenha de girar em torno de você?

— Não, você fez merda no Céu, então agora tem de me aguentar.

— Que tortura — aproximei-me dela. Estávamos tão perto que eu podia sentir seu hálito.

Ela ainda recusava-se a olhar para mim. Acho que sabia o que aconteceria se olhasse.

— Tomara que seja — disse ela e me empurrou, no exato momento em que Audrey voltou.

— Interrompi alguma coisa? — ela ergueu uma sobrancelha.

— Graças a Deus — resmungou Serena e abriu a porta do passageiro, sentando-se lá.

Sentei-me no banco de trás e voltamos para a casa dos Stewart.

— Tchau, Audrey — acenei e abri a porta do carro.

— Tchau! Ei, Serena!

— Sim?

— Quero detalhes.

— Vai à merda.

Serena saiu do carro. Fitei-a à procura de respostas, mas logo ficou claro que eu não receberia nenhuma.

Eu desisti? Não. Lembrei-me de todas as vezes em que achei que ainda ia enlouquecer por causa de Serena.

Eu tinha quase certeza de que estava acontecendo.

— Serena — chamei quando entramos em casa. Estiquei-me para segurar a mão dela, mas a garota desviou rapidamente.

— Não toque em mim.

Ergui uma sobrancelha.

— Está falando sério? Certo, que seja. Mas podemos conversar?

— Não. Tenho lição de casa para fazer.

— Como se você ligasse.

— Como se você me conhecesse.

— Eu conheço você, Argent. Sabe disso. Não precisa admitir, dane-se.

— Seeler — ela finalmente virou-se para me encarar com seus olhos azuis tempestuosos. — Desista, está bem?

Abri um sorriso presunçoso e me aproximei, deixando um espaço minúsculo entre nós.

— E se eu não quiser?

— Problema seu.

— Só meu? Tudo bem, Argent. Tudo bem.

— Ótimo — ela me deu as costas e subiu para o próprio quarto.

* * *

Serena passou a tarde inteira trancada no quarto enquanto eu estava na sala tentando estudar Química.

A verdade é que aquela merda não fazia sentido algum para mim.

Depois do jantar, fui direto me deitar, mas não consegui dormir. Em parte porque estava bem calor, o que, sendo a Inglaterra, provavelmente significava o fim do mundo. Fiquei ouvindo Train no fone de ouvido.

Oh I swear to you

I'll be there for you

This is not a drive by

On the upside of a downward spiral

My love for you went viral

And I loved you every mile you drove away

But now here you are again...

Quando vi, já eram três da manhã. Percebi que estava com sede, então desci as escadas para tomar um pouco de água antes de voltar a tentar dormir.

Entrei na cozinha e peguei um copo. Estava colocando água nele quando percebi que não estava sozinho.

Serena, cuja presença eu não havia notado, estava fazendo um sanduíche de queijo. Vestindo apenas o shorts curto do pijama e um sutiã preto.

Eu poderia dizer que não fiquei olhando, mas... Merda, quem acreditaria nisso?

Ela continuou fazendo seu sanduíche como se não tivesse me notado, mas derrubava alguma coisa constantemente. Tentava fazer parecer que não estava desconfortável, mas era evidente na expressão dela.

— Boa noite — arrisquei, sorrindo levemente.

Ela me deu as costas, instintivamente tentando cobrir o sutiã com os braços.

— Vai dormir, Seeler.

— Agora é que eu não durmo mesmo.

Minhas intenções eram bem claras em meus olhos, porque ela franziu o cenho e disse:

— Nem vem.

Fitei-a por um minuto.

— Não me convenceu.

Comecei a me aproximar dela, que recuou. Eventualmente, bateu na parede. Eu estava a poucos centímetros dela.

— Já sei. Não quer que eu toque em você, porque não quer admitir que me acha atraente — ela não olhava para mim, mas eu mantive meus olhos fixos nela. — Não quer admitir que eu faço você sentir... algo. E se eu fizer isso aqui? — encostei dois dedos no braço dela, como se fossem perninhas, e fui subindo até o ombros. Senti o leve arrepio vindo dela. — E pior: — aproximei-me tanto que tornei impossível que ela não olhasse para mim e sussurrei: — você não quer admitir que gosta.

Serena mordeu o lábio. Não disse nada. Não parecia em condições de dizer.

Eu estava sendo um babaca? Provavelmente. Eu me arrependia? Nem um pouco.

— Mas o que eu queria saber mesmo — abri um leve sorriso. — é o que acontece quando eu faço isso.

Deixei milímetros de distância entre nossos lábios. Ela prendeu a respiração e esperou que eu a beijasse, mas não o fiz.

Ela olhou para mim pela primeira vez, tentando esconder a confusão no olhar. Por fim entendeu.

Eu estava cansado de correr atrás. De ser sempre o que se ferra.

Não daquela vez. Se ela quisesse, teria de tomar a iniciativa.

Era a vez dela de ceder.

Depois de o que pareceram décadas, ela me beijou.

Começou suave, mas depois foi se aprofundando. Ela pulou em mim, ainda me beijando, e eu a coloquei em cima da pia, enlaçando suas pernas em mim. Seus lábios desceram para o meu pescoço.

Tive certeza de que aquilo deixaria uma marca.

— Vingança — ela sussurrou entre os beijos.

— Eu odeio você — resmunguei.

— Não, não odeia.

Fiquei alguns segundos apenas fitando-a. Afastei uma mecha loura de seus olhos.

— Eu sei.

Serena

A vida seria muito mais simples se Heath Seeler não ficasse andando pela casa sem camisa às três da madrugada.

Eu estava tão absorta nos beijos que acabei sujando a mão com a manteiga do pão. Limpei-a no rosto de Heath.

Eu não prestava, mesmo.

Ele riu e mordeu levemente meu lábio, esfregando o nariz sujo no meu.

Aquilo trazia um turbilhão de emoções humanas. Desejo. Luxúria. Egoísmo.

E a lista ia aumentando e aumentando.

Eu sabia que provocava emoções humanas em Heath também, e a seriedade daquilo me atingiu de repente.

Heath não era um anjo perto de mim. Eu trazia seu lado humano à tona.

Eu o separava do Céu. Eu o corrompia.

Eu não era um pedaço de mau caminho. Eu era a própria estrada para o Inferno.

Heath foi criado para ser um anjo. Não para ficar comigo.

Nem — Deus me livre! — para se apaixonar por mim.

Eu era a tentação. O teste final, só isso.

Um soluço escapou de meus lábios. Bem baixinho, mas Heath ouviu e interrompeu o beijo.

— Serena?

Meu nome. Era isso. Então por que era tão íntimo e significativo quando Heath o pronunciava?

Ele dizia meu nome como se fosse o maior dos elogios. Um segredo só nosso. Uma sinfonia de apenas uma nota. Ainda assim, a sinfonia mais bela de todas.

Merda, que tipo de pensamento foi esse?!

Odiava Heath por me transformar em uma versão menos vestida da Clarice Lispector.

— Estou bem — falei, mordendo o lábio.

Heath sentou-se ao meu lado, voltando a ficar mais alto do que eu, e entrelaçou seus dedos nos meus.

— Pode me falar.

Fiz que não com a cabeça.

— Não é nada.

Heath suspirou e beijou meus lábios levemente. Foi tão calmo. Tão carinhoso. Eu nem sabia que ele tinha aquilo dentro dele. Mesmo sendo tão singelo, aquele beijo certamente ficaria marcado em minha memória.

Foi quando pareceu que ele realmente se importava.

E então duas grandes asas brancas brotaram em suas costas.

Afastei-me, em parte pelo susto, em parte porque as asas derrubaram alguns pratos.

Heath demorou alguns segundos para notar. Tempo suficiente para que eu pudesse analisá-las novamente.

Enormes. Poderiam facilmente envolver eu e ele. Sua plumagem era diferente de tudo o que eu já havia visto, e, uma vez que eu começava a olhar, parecia impossível parar. Mas tive de fazê-lo, porque a junção de todas as cores que resultavam em branco ao meu ver começou a fazer minha visão desaparecer.

Heath guardou as asas antes que eu ficasse cega.

— Foi sem querer — disse ele baixinho. Minha visão voltou ao normal.

Aquilo me lembrou de nossa situação. Nossa situação verdadeira.

— Você passou a vida toda fazendo o que é certo — falei, desviando o olhar. — Deveria continuar.

— Eu me sinto tão errado fazendo a coisa certa, Argent — ele suspirou, sincero. — E me sinto errado fazendo a coisa errada também. Mas então... percebo que gosto de me sentir errado no segundo caso. Faz com que eu me sinta mais humano.

— Você não é humano — disparei.

— Sou metade humano. Continuo tendo emoções — ele me fitou.

— Ser humano é uma merda. Ninguém quer ser humano.

— Minha mãe q...

O que eu disse a seguir foi mais uma tentativa de convencer a mim mesma do que de convencê-lo:

— Você não é humano. Não é daqui. Não é um adolescente comum. E você não é... — minha voz falhou.

— Não sou o quê?

Os soluços voltaram, mas eu os comprimi. Merda, eu não choraria por ele. Meu rímel era caro demais.

Mesmo que eu não estivesse usando rímel. Mas mesmo se fosse o rímel mais caro do mundo. E mesmo que rímel não fosse o nome correto para se chamar uma máscara de cílios.

Beijei-o uma última vez e corri escada acima, trancando-me em meu próprio quarto.

Meu, completei em minha mente. Você não é meu.