VIII – Ecos

“Eles cresceram e, como se é esperado, eu os vejo diferente agora. Eu vejo o ressentimento que se transforma na violência com a qual Caranthir luta para Eredin e a desconfiança guardada no silêncio e na distância de Ileanna. A confiança que meus alunos um dia depositaram em mim está agora quebrada ou trincada. Minhas palavras são vistas com criticismo e minha autoridade é desdenhada por Caranthir. Ileanna é mais discreta e, embora eu possa enxergar um pouco da antiga confiança no olhar de minha aluna, eu também vejo o questionamento e mais do que isso, a compreensão. Ileanna conhece minha história e percebe o quanto meu passado molda meus passos no presente. Eu apenas imagino o que a Rosa fará com esse conhecimento.

(Fragmento do diário do Sábio Avallac’h)

— Sua beleza não murchou, Rosa de Auberon.

O trêmulo sussurro de Avallac’h ecoa com a provocação dirigida para a antiga aluna e faz com que a surpresa nasça nas faces de todos os presentes. O olhar dourado da jovem feiticeira observa as írises aquamarines do Aen Saevherne, o coração batendo forte no peito com o inesperado e ao mesmo tempo desejado reencontro, mesmo que a peça central para a existência do desejo – a Andorinha – não esteja presente no momento. As pálpebras se fecham sobre os olhos do poderoso Aen Elle e o toque que envolve os dedos da feiticeira perde a força. Contudo, Ileanna não afasta a mão, os dedos permanecendo contra a palma enluvada e antigas memórias se transformando em uma tempestade na mente. Há um murmuro do passado na presença de Avallac’h, um sussurro de uma época de treinos e lições, de perguntas feitas e deixadas sem resposta. Afinal, não é natural que um aluno cresça apenas para desconfiar do mestre.

— Você o conhece? – a voz de Lambert desperta a jovem feiticeira com a intensidade que carrega.

— Sim. – Ileanna responde, as írises de witcher sendo dirigidas para o mais velho e exibindo uma frieza até então ausente, uma que traz a lembrança da Caçada Selvagem para todos que observam a conversa – Tudo que eu sei sobre magia, sobre ser uma feiticeira, eu aprendi com ele.

— Então, você confia nele? – Eskel questiona com cuidado. O ar parece congelar lentamente no salão de Kaer Morhen e o witcher sente a pesada tensão que parece envolver o elfo desacordado e a jovem feiticeira de olhos dourados.

— Eu não disse isso. – Ileanna responde, o frio nas írises douradas se desfazendo em um momento, quase como se nunca tivesse estado presente. Um fraco sorriso estica os lábios vermelhos e somente então a feiticeira afasta o próprio toque da mão do antigo professor.

— Mas Ciri confia? – Vesemir pergunta, o atento olhar do velho witcher observando a face da mais nova e percebendo a sombra que permanece na feição de Ileanna, mesmo que a frieza tenha abandonado o dourado olhar. O mais velho dos Lobos sente que há algo, uma história, entre a jovem feiticeira e Avallac’h, uma que não é tão simples quanto um passado como mestre e aluna.

— Provavelmente. – a jovem com olhos de witcher diz, o olhar caindo, por um momento, sobre o inconsciente feiticeiro. Em silêncio, Ileanna se recorda do tempo que a Andorinha passou entre os Aen Elle, a presença de Avallac’h quase uma constante durante a permanência de Zireael em Tir Ná Lia. E mesmo que a feiticeira de olhos dourados tenha tentado avisar, parece que Ciri decidiu confiar no Aen Saevherne.

Distraída, Ileanna falha em perceber as írises douradas e violetas que a observam com intensa e curiosa atenção. Pouco a pouco, as peças vão se encaixando na mente de Yennefer, como as partes de um quebra-cabeça que finalmente começam a montar uma imagem. A negação de Ileanna em dizer o nome daquele que a treinou como feiticeira, embora o nome de Eredin fosse dito com naturalidade e sem hesitação, a recusa em dizer quem era o potencial acompanhante de Ciri em Skellige, a tentativa de desvendar a identidade de Uma apenas por reconhecimento da energia emanada... Todas essas ações foram conscientes, formando uma tentativa de manter Avallac’h em segredo, em silêncio. Mas por quê? A poderosa feiticeira sabe que o Aen Elle não é confiável, tendo ouvido de Geralt como foi o encontro do witcher com o Sábio anos atrás. Foi por isso que Ileanna manteve o nome de Avallac’h em segredo, para evitar que eles se preocupassem com a desconfiável companhia mantida por Ciri? Ou foi por causa do passado que pode ser claramente sentido entre a jovem feiticeira e o Aen Saevherne?

Questões similares passam pela mente do Lobo Branco, as írises douradas analisando o modo como a filha observa o elfo adormecido. Parece haver um questionamento no olhar da jovem feiticeira, um que o witcher não consegue reconhecer ou traduzir. Foi um choque para Geralt descobrir que Avallac’h era quem acompanhava Ciri e a ajudava a fugir da Caçada Selvagem, mas também foi uma surpresa – uma desagradável – saber que foi o Aen Saevherne quem treinou Ileanna. Avallac’h e Eredin. Geralt não consegue pensar em piores nomes para imaginar como professores da jovem de olhos dourados. A presença do Aen Elle nas vidas das duas filhas não é algo que contente o witcher, mas é um detalhe que atrai a maior parte da atenção e da curiosidade do Lobo, um que ecoa um comentário feito sobre as runas em uma espada e que ganha vida na voz baixa e rouca que questiona:

— Ele chamou você de “Rosa de Auberon” – as palavras atraem a atenção das írises douradas da feiticeira – O que isso significa?

— É meu título entre os Aen Elle. – Ileanna responde e o tom de voz da jovem feiticeira reflete aquele usado em uma conversa em Kaer Trolde: forte e firme, mas também resignado e dolorido. A percepção faz com que Geralt questione o quão pesado é o passado de Ileanna, não aquele que foi esquecido, mas o que foi vivido entre os elfos em um mundo distante, um passado marcado e manchado pela traição e por uma fuga que quase a levou para os braços da Morte – A protegida do rei. – um sussurro de orgulho colore a voz da feiticeira nas últimas palavras.

É então que mais uma peça encaixa nas mentes de Geralt e Yennefer, completando a sensação tida na conversa em Skellige, em que uma história foi contada em fragmentos. Agora, o witcher e a feiticeira percebem os detalhes deixados ocultos começando a ser revelados, a verdade sobre a posição ocupada por Ileanna entre os Aen Elle passando a ser vislumbrada. Em meio às sombras que dançam no rosto jovem, ambos podem ver os pedaços de uma imagem deixada para trás, abandonada com uma vida que ainda assombra e ameaça. As írises douradas e violetas veem a feiticeira, a soldada, a navegadora, o poderoso truque do destino sob a proteção do rei... Mas tudo isso são apenas pedaços, fragmentos de quem Ileanna é, de quem ela se tornou. E por mais que tentem, os olhos do witcher e da poderosa feiticeira não conseguem encaixar todas as peças e formar uma única imagem. Ainda há vácuos no desenho, preenchidos pelas sombras nas írises douradas e na pesada conexão que parece unir a jovem feiticeira e o desacordado Aen Saevherne.

— O que nós fazemos agora? – Eskel questiona tentando quebrar o tenso silêncio que domina a fortaleza.

— Nós temos que encontrar Ciri. – Vesemir responde com uma firme autoridade na voz, o experiente olhar ainda observando atentamente a feiticeira mais nova – E cuidar de Avallac’h.

— Eu vou cuidar de nosso hóspede. – Yennefer diz, as írises violetas procurando o olhar do Lobo Branco – Avallac’h não resistirá aos danos causados pelo teste sem o auxílio da magia. Vá e traga Ciri de volta. – um pequeno e fraco sorriso estica os lábios da bela feiticeira.

Por um momento, Geralt abre a boca com a intenção de protestar, de questionar, mas o desconhecimento sobre o que exatamente a mente e o coração querem perguntar o faz permanecer em silêncio e apenas oferecer um firme aceno afirmativo com a cabeça. No intenso olhar de Yennefer, o witcher encontra o reflexo da própria confusão, embora mais contido, e das próprias indagações. E um mudo pedido para que tudo seja mantido quieto por enquanto.

— Eu posso abrir um portal para você para Skellige. – Ileanna diz atraindo a atenção de todos os presentes – Posso tentar deixá-lo o mais próximo da Ilha possível.

— Um portal? – Geralt questiona, o eco de um frustrado grunhido colorindo a voz.

— Por que não um portal para a Ilha da Neblina em si? – Lambert pergunta ao mesmo tempo.

— É o caminho mais rápido. – a feiticeira de olhos dourados responde para o Lobo Branco e então dirige o olhar para o outro witcher – A Ilha tem uma forte proteção mágica que torna impossível construir uma ponte mágica, como um portal, para ela. Como Avallac’h disse, ela está em todo lugar e em nenhum lugar.

— Então, como você vai conseguir abrir um portal para o mais próximo possível dela? – Lambert questiona cruzando os braços sobre o peito, um claro desafio pintando a voz do witcher.

Por um segundo, as írises douradas da feiticeira caem sobre o elfo adormecido e as sombras no claro olhar se intensificam. Lembranças de treinos sob a lua nos jardins de um palácio se misturam na mente de Ileanna, envoltas no frio que se tornou tão familiar. Sombras de sonhos recentes se tornam relâmpagos na memória, intensificando a tempestade do passado. Se tivéssemos tido tempo... Eu teria contado a verdade para Zireal. O rei teria contado. O olhar da jovem feiticeira retorna para Lambert, cujo desafio enfraqueceu nas írises douradas que observam o silêncio da mais nova com curiosidade. Posso... Deveria contar a eles? Deveria colocar todas as minhas cartas na mesa?

A feiticeira sente o coração batendo forte no peito, tremendo com confusa inquietação. A familiaridade sentida com Geralt e Yennefer sussurra com insistência, dizendo para confiar, que há segurança entre os witchers e com a feiticeira de olhos violetas. Entretanto, o instinto adquirido com uma vida jogando o jogo de máscaras e palavras fala mais alto, segurando a língua e ocultando as cartas. A tempestade permanece na mente e sob a pele, um frio pulsar que nasce no sangue e segue o ritmo do coração, uma companhia que já não é mais temida, tendo sido domada nos jardins do Palácio da Lua. Mas ainda assim, o fraco murmuro da Geada Branca é o suficiente para fazer o poder estralar sob a pele e o peito doer. Por um breve momento, as írises douradas buscam pelo Lobo e pela feiticeira de olhos violetas.

Por que... Por que não consigo saber se eu os conhecia antes? Por que vocês são tão familiares, tão seguros para mim?

Mesmo que tenha parecido um momento interminável, apenas segundos se passaram e quando as írises douradas da jovem feiticeira voltam a se focar em Lambert, a surpresa se desenha na face do witcher. As sombras ainda estão presentes no olhar de Ileanna, mas cristalizadas, como pequenos e escuros cristais de gelo que conferem uma rigidez ao dourado olhar que faz retornar a lembrança dos cavaleiros vermelhos.

— Eu não seria uma navegadora da Caçada Selvagem se não pudesse encontrar caminhos mesmo nos terremos mais protegidos. – a jovem feiticeira responde com orgulho e autoridade vibrando na voz – Eu vou abrir um caminho para o mais próximo da Ilha da Neblina possível.

Diante da firmeza e da intensidade das palavras ditas, nenhum dos presentes se atreve a fazer outro questionamento acerca das habilidades da feiticeira. Um satisfeito sorriso se desenha nos lábios de Lambert, expressando o contentamento do witcher com a aceitação do desafio por parte de Ileanna. Não foi um desafio oficial, mas a confiante e determinada postura da jovem feiticeira, a ausência de medo e a recusa em se submeter com certeza agradaram ao rebelde witcher. Um sorriso similar nasce nos lábios do Lobo Branco, que se diverte com a recusa da filha em ser provocada por Lambert. Todavia, írises violetas observam a conversa com preocupada atenção, o olhar percebendo as sombras cristalizadas nas írises douradas, os sombrios flocos de neve que caem ameaçando congelar o coração da poderosa feiticeira.

Sentindo o término da conversa, Ileanna se retira do grande salão, os passos ecoando no silêncio e denunciando o caminho tomado em direção ao jardim da fortaleza. Olhares curiosos acompanham o afastamento da jovem feiticeira, refletindo pensamentos distintos acerca da jovem de olhos dourados. Há um brilho de divertimento nos olhares de Geralt e Lambert e uma sombra de cautela nas írises de Eskel e Vesemir. Mas a preocupação presente nas írises violetas de Yennefer apenas se intensifica, a fria força mostrada por Ileanna ao responder a questão de Lambert a tendo deixando parecida demais com os cavaleiros vermelhos e fazendo com que a poderosa feiticeira questione o quanto do que Ileanna mantém escondido a deixa mais próxima de quem era em meio aos Aen Elle. Por um momento, o forte olhar de Yennefer é abaixado para o elfo inconsciente, a mente imaginando o quanto o passado – e o presente – da jovem de olhos dourados se encontra entrelaçado a Avallac’h.

— Ela está escondendo algo. – Eskel diz quebrando o silêncio.

— Isso é óbvio, meu querido Eskel. – Lambert rebate com jocosidade na voz – Ela não confia em nós.

— Ela não se lembra de nós. – Yennefer intervém, as palavras sendo envoltas por uma frieza capaz de rivalizar com aquela existente em Skellige. Pelo menos, não conscientemente. O pensamento traz de volta à mente o olhar dourado marcado pelos cristais de sombras. Havia algo na mente de Ileanna naquele momento, a feiticeira tem certeza, algo pesado e doloroso.

— Mas ela não está contando tudo. – Vesemir afirma, a voz refletindo a expressão pensativa no velho rosto – Ela pode nos contar algumas coisas, mas há algo, algo crucial, que Ileanna mantém oculto.

— Sim. – Geralt concorda, a voz e o olhar dourado perdendo o brilho de divertimento – Tem sido assim desde que a encontramos em Skellige. Mas nós não vamos forçá-la a nos contar.

— Ela realmente não confia em nós? – Eskel questiona com uma nota de surpresa colorindo as palavras.

— Isso não é surpreendente se olharmos pelo ponto de vista de Ileanna. – o mestre dos witchers diz atraindo a atenção de todos – Para nós, ela é uma criança que finalmente voltou para casa, mas se invertemos como olhamos, então tudo muda. Pensem em tudo que ela contou a Yennefer e ao Geralt. – as írises douradas de Vesemir se voltam para o olhar violeta da feiticeira – Ela foi treinada sob as ordens de um rei para ser uma soldada em um exército de elite e, então, foi traída pela mesma pessoa que a treinou. – o olhar do líder dos lobos se volta para os outros witchers –Ela é poderosa e especial, tanto que foi arrancada do próprio mundo por causa do sangue que carrega. Ela era a protegida do rei, o que nos faz deduzir que ela viveu na corte, tendo uma alta posição social, mas também próxima de um rei assassinado. Alguém com uma vida como essa, alguém marcado pela traição não confia tão facilmente.

— Então o que sugere que nós façamos? – Lambert pergunta com uma pontada de petulância.

— O que nós fizemos desde o momento em que ela nasceu. – Vesemir responde com simplicidade, a atenção das írises douradas sendo dirigida para a feiticeira de olhos violetas e o Lobo Branco – Nós ficamos ao lado dela e a fazemos ter certeza de que está segura conosco. Com o tempo, ela irá confiar e irá se abrir para nós. – as palavras do witcher fazem com que um pequeno sorriso nasça nos lábios de Geralt e Yennefer, que assentem levemente, concordando com a sugestão do velho witcher.

No pátio da fortaleza, uma jovem feiticeira com olhos de witcher permanece em silêncio, deixando que a fria brisa afaste a inquietação que atormenta o coração. Sussurros de sonhos que se assemelham a lembranças esquecidas despertam na mente e aceleram os pensamentos, formando uma tempestade que ecoa um único questionamento: Meu passado antes da Caçada está conectado a essa lugar? Todas essas pessoas... Eu as conhecia antes? Em uma tentativa de se distrair, o olhar dourado percorre a extensão do pátio vazio, as írises de witcher percebendo os trincados que marcam os muros, os pedaços de antigas paredes que se encontram esquecidos sobre chão, o tempo os cobrindo com a selvagem vegetação. A brisa assopra e balança as copas das altas árvores e o coração bate mais forte, pulsando com o desejo guardado em silenciosas memórias.

Com cada batida do coração, Ileanna sente a vontade de estar de volta em um jardim sob a sombra de um palácio, contornado por profundas quedas d’água e onde um balanço permanece guardado sob a copa de um antiga árvore. Ou em meio ao silêncio das catacumbas, que era quebrado apenas pelo sussurro dos corvos e a forte e rouca voz que contava histórias de aventuras passadas e personagens conhecidos e amados. Eu entendo agora o que você sentia, Zireal. O pensamento acompanha o suave suspiro que escapa por entre os lábios vermelhos da feiticeira. Mas eu tenho que seguir em frente. Eu preciso colocar um ponto final no meu passado para poder retornar ao lar que achei nesse mundo. O som de passos se aproximando traz a jovem feiticeira de volta à realidade e atrai a atenção das írises douradas para o witcher de cabelos brancos e a feiticeira de olhos violetas que se aproximam. Mas e se eu encontrar mais? Mais do que eu me lembro? É isso? O passado cujo esquecimento nunca me incomodou, agora me assombra como as lembranças que guardo no meu coração?

— Está pronto para ir? – a feiticeira questiona o witcher, tentando afastar os pensamentos e as lembranças da mente.

— Sim. – Geralt responde, o atento olhar percebendo as sombras que permanecem no olhar da jovem feiticeira e a mente imaginando exatamente o que elas escondem, quantos segredos permanecem guardados no silêncio de Ileanna.

Assentindo, a feiticeira respira fundo, as pálpebras se fechando sobre os olhos dourados e as mãos abertas se aproximando do medalhão na forma da cabeça de um lobo. Não demora para que uma suave luz azulada nasça nos contornos do lobo, o iluminando com uma magia que parece pulsar como o lento bater de um coração. Geralt e Yennefer observam em silêncio, sentindo o ar no pátio mudar, se tornando mais pesado e frio, o toque da brisa se tornando finas garras a arranharem levemente a pele. Sob a pele da jovem feiticeira, o frio desperta e sussurra na mente, questionando o que é desejado. Mostre-me o caminho para a Ilha da Neblina. O pensamento pulsa com o coração e a magia, esquentando o sangue que o frio ameaça consumir. Mostre-me passagem para a entrada da Ilha. Leve-o para a porta escondida em Skellige. Os sussurros do frio se tornam mais intensos, se tornando um força que demanda ser libertada. O sangue pulsa e o coração bate, transformando a força em uma luz cheia de energia que engole o medalhão para então se quebrar como o uivar de um lobo. Em um momento, um portal surge no pátio de Kaer Morhen, tremendo com a luz azulada que o contorna e o conecta às mãos da feiticeira de olhos dourados.

— É seguro. – Ileanna diz ao abrir os olhos e notar os olhares surpresos que marcam as faces do witcher e da feiticeira mais velha.

— É... Diferente.— Yennefer diz devagar, a pele formigando com a energia que pesa no ar e se concentra no portal. Tudo é intensamente frio, como uma tempestade domada que ainda luta para se libertar.

— Eu ainda não gosto de portais. – Geralt responde quase de modo automático, as írises douradas observando o portal e a mente concordando com a descrição de Yennefer. Esse portal é diferente. Não apenas dos portais que outras feiticeiras abrem, mas dos outros que o witcher viu a jovem feiticeira abrir. Há algo a mais, algo que vibra e pulsa no ar como o eco de uma antiga memória, de um frio sentido muito tempo atrás, em lembranças marcadas pela Caçada Selvagem e que nunca retornaram.

— Ele o levará até Skellige, na fronteira com o território da Ilha da Neblina. – Ileanna explica e o Lobo Branco pode notar a tensão presente na voz da jovem de olhos dourados. Seja qual for a verdadeira natureza do portal, não é fácil mantê-lo aberto. – Ao chegar, use o guia que Avallac’h deu a você. Ele o levará além da fronteira e até Zireael. – por um momento, as sombras causadas pela luz do portal parecem intensificar aquelas já presentes nas írises douradas da feiticeira e o frio treme como uma antiga e enfraquecida ponte – Mas tome cuidado, é dito que existem muitos perigos na Ilha da Neblina.

O witcher assente, aceitando as instruções e o conselho, e se aproxima do portal. Geralt percebe que a cada passo dado, o frio se torna mais pesado e intenso, quase como se quisesse envolvê-lo por completo. O Lobo para por um momento, o olhar procurando brevemente pela feiticeira que mantém o caminho aberto e o que Geralt vê é o que sempre pensou que Ileanna se tornaria: uma poderosa e habilidosa feiticeira. E nesse momento o witcher sente o peso de um arrependimento nascido da cruel realidade, do fato de que Ileanna não aprendeu como a ser uma feiticeira com a mãe, mas com um elfo que parece apenas complicar toda situação em que aparece. Respirando fundo, o witcher passa pelo portal e o frio que era intenso se torna insuportável.

Ofereça a ele a mesma proteção que oferece a mim. O pensamento ecoa na mente com a mesma intensidade do estalo com o qual o portal se fecha e um discreto suspiro escapa por entre os lábios vermelhos da jovem feiticeira. Os músculos tremem sob a pele e, pouco a pouco, os sussurros do frio são silenciados, mas ainda o coração pulsa com o peso da voz da geada. Distraída, Ileanna falha em perceber as írises violetas que a observam com intenso interesse. O treinado olhar de Yennefer percebeu a diferença no portal invocado pela filha, o intenso pulsar da magia o denunciando como um portal interdimensional, como aqueles usados pela Caçada Selvagem para invadir esse mundo. E a presença do frio que congela o sangue e arranha a pele somente confirma as semelhanças com os portais dos cavaleiros vermelhos. Observando a jovem feiticeira discretamente se recuperar do esforço para abrir o caminho para a Ilha da Neblina, Yennefer sabe que o vê não é apenas uma simples feiticeira, mas também uma poderosa navegadora. O coração da feiticeira dói quando a mente imagina o quão fundo o frio da Caçada Selvagem teve que arranhar para conquistar o poder de Ileanna para os Aen Elle.

Skellige

O som dos cascos dos cavalos contra a estrada de terra ecoa na silenciosa floresta. Sob as sombras causadas pela tempestade que se aproxima, dois cavaleiros se destacam pelas máscaras de caveira que cobrem os rostos. Um dos cavaleiros retira a máscara, deixando que o frio ar do arquipélago toque a face marcada pela longa cicatriz. Írises verdes observam a paisagem ao redor e a mente deixa que o distante som das ondas embale os pensamentos. Ela não está aqui. A constatação não é uma surpresa para Vridhiel. O jovem capitão não esperava que Ileanna permanecesse por muito tempo em um lugar abandonado pela Andorinha, mas ainda assim a decepção penetra e corta o coração atormentado pela insegurança acerca da ordem recebida. O que o vice-rei pode tanto querer com a Rosa a ponto de manter a busca em segredo?

O verde olhar se volta para o companheiro, o rosto de Faolin permanecendo oculto sob a máscara e a mão firme ao segurar o cajado que pulsa fracamente com o poder do navegador. Um suave movimento da cabeça do cavaleiro serve apenas como mais uma confirmação da ausência de Ileanna para o capitão. Por um momento, Vridhiel permite que os pensamentos sejam levados para o último encontro com a Rosa de Auberon e o coração bate um pouco mais rápido ao recordar do quanto o tempo parece ter apenas aumentado a beleza de Ileanna. Uma beleza que o jovem capitão não deseja ver manchada pela ira de Eredin ou pela desconfiança de Ge’els. É um jogo perigoso, o cavaleiro vermelho sabe, esconder informações daqueles que os comandam, mas a lealdade para com a Rosa e o antigo rei canta com força e desafio criando uma intensa vontade de descobrir a verdade sobre a morte de Auberon e a suposta traição de Ileanna.

— Algum rastro? – Vridhiel questiona, a voz escondendo todas as suspeitas sob o forte tom de comando.

— Para o oeste, senhor. – Faolin responde com prontidão, mas o capitão percebe a leve hesitação que colore a voz do cavaleiro e assente, indicando que o navegador diga o que o preocupa – O que faremos quando a encontrarmos, Vridhiel? – a formalidade deixa a voz do jovem elfo, que retira a máscara, o intenso olhar azul fixo nas írises verdes do comandante.

— Nós decidiremos quando o momento chegar. – o jovem capitão responde, a voz ecoando a incerteza que pesa no coração – Ainda há muitas perguntas a serem respondidas.

— Ela não traiu Auberon. – Faolin diz com certeza na voz e no olhar – Ela nunca faria isso.

— Não, ela não faria. – Vridhiel concorda com a mesma firmeza na voz, o olhar sendo abaixado e a mão acariciando levemente a cabeça da negra égua. A impossibilidade da traição da Rosa é a única certeza na mente e no coração do cavaleiro vermelho. As írises voltam a focar na face do navegador – Vamos seguir a trilha para o oeste. Eu sei que vamos acabar encontrando-a.

Colocando novamente as máscaras nas faces, os cavaleiros seguem a trilha deixada pelo poder da Rosa de Auberon. E quando a tempestade chega, sob os trovões e as sombras, sussurros são trocados entre os habitantes das Ilhas de Skellige, múrmuros de histórias e de visões da Caçada Selvagem no escuro céu, cavalgando em meio a raios e magia.

Kaer Morhen

Algumas velas foram espalhadas pelo aposento, afastando a escuridão trazida pelas escuras nuvens que cobrem o céu e iluminando o corpo adormecido sobre a cama. Írises douradas observando o cadenciado movimento do tórax, a respiração calma e estável servindo de referência para o próprio respirar da feiticeira. Há silêncio na fortaleza, os witchers ocupados em prepararem o edifício para a chegada da tempestade e Yennefer tendo se retirado para os próprios aposentos para aguardar o retorno de Geralt e Zireael. Um discreto suspiro escapa por entre os lábios vermelhos, a mente questionando o motivo que a atraiu até a presença inconsciente de Avallac’h, mesmo que o reencontro fosse algo desejado.

O que você fez com Zireael? A pergunta é mantida em silêncio, junto com a memória do guia invocado para auxiliar o witcher na Ilha da Neblina. O feitiço foi reconhecido, as palavras familiares de dias de estudo sob o atento olhar do Aen Elle adormecido. O que ele vai pensar quando encontrá-la? A respiração falha por um momento, parecendo tropeçar nos lábios do elfo. Ileanna se aproxima com passos calmos, a mão direita brilhando com uma suave luz azulada e sendo colocada sobre o peito de Avallac’h. Sob o quente toque da magia, a respiração do Aen Saevherne volta a se estabilizar e a mente da feiticeira volta a questionar. Você a treinou? Como a mim e a Caranthir? Írises douradas observam a face fina e angulada, desenhada com a imponência que é natural a todos os Aen Elle. O que você quer de nós, Avallac’h?

— Você sempre teve uma mente muito inquieta. – o comentário é feito em um tom de voz baixo, os olhos do Aen Saevherne não se abrindo enquanto as palavras são ditas.

— Então meus pensamentos o acordaram? – Ileanna questiona com divertimento colorindo a voz.

— Sua magia de cura está melhor. – Avallac’h diz como resposta, os olhos se abrindo e revelando as írises aquamarines. Há um peso de cansaço na voz do feiticeiro e as sombras da fraqueza ainda nublam o claro olhar que observa atentamente a face da jovem feiticeira.

— Eu tive a oportunidade de treinar. – Ileanna responde afastando a mão do peito do antigo professor. Com a distanciamento, a luz azulada se apaga e a feiticeira se levanta da cama, a voz perdendo toda cor do divertimento e se tornando mais fria e dura.

— Onde você esteve? – o Aen Saevherne questiona, as írises aquamarines acompanhando os passos que levam a antiga aluna até o banco de madeira colocado próximo à janela do quarto.

— Eu poderia perguntar a mesma coisa a você. – a jovem de olhos dourados responde com um brilho de desafio no intenso olhar.

Por um longo momento, o silêncio domina o aposento. O vento que anuncia a chegada da tempestade em Kaer Morhen assopra com mais força, invadindo o quarto e fazendo as chamas das velas tremularem. As íris aquamarines permanecem conectadas ao dourado olhar no que parece ser uma muda conversa. Em meio a ausência de som, Avallac’h observa a jovem feiticeira com uma intensa atenção que desafia o cansaço e a fraqueza ainda presentes no claro olhar. O Aen Saevherne imagina o que Ileanna pode ter descoberto no tempo em que esteve sozinha e, principalmente, durante o tempo em que passou em meio aos witchers. As írises aquamarines procuram por qualquer pista, qualquer sinal de que a Rosa encontrou a verdade sobre si mesma. Mas Avallac’h encontra no dourado olhar apenas sombras que carregam os ecos de memórias esquecidas. O olhar de Ileanna mudou e o Aen Elle sabe que a antiga aluna está apenas a poucos passos de descobrir o lugar que ocupa nesse mundo.

No outro lado da silenciosa batalha, a mente da jovem feiticeira navega inquieta por um mar de questionamentos e lembranças. Sussurros em uma voz cheia de ressentimento ecoam em meio aos pensamentos, despertando dúvidas há muito adormecidas. Haveria realmente verdade na desconfiança de Caranthir? E mesmo se o antigo colega estivesse certo, o que Avallac’h mantém escondido agora? A influência do Aen Saevherne perdeu a força sobre Ileanna e Caranthir anos atrás, mas e sobre Zireal? A Filha da Gaivota, a última gota do sangue de Lara Dorren, o último eco da filha de Auberon. Você nunca conseguiu largá-la. O pensamento acompanha o ritmo da mente da feiticeira, rápido e inquieto. Você nunca conseguiu perdoá-la. Ou Cregennan. Um trovão treme o céu e o vento se torna mais violento, quase engolindo as chamas das velas que iluminam o quarto. Você não machucará Zireael, mas isso não significa que você não tem planos para ela.

O que você quer de nós, Avallac’h?

— Eu não esperava encontrá-la. – o Aen Saevherne diz, quebrando o pesado silêncio.

— Eu esperava. – Ileanna responde – Achei que pudesse saber como encontrar Zireael. O que eu não esperava era que a estivesse acompanhando todo esse tempo.

— Eredin não pode conseguir o poder que Ciri carrega. – a voz Avallac’h carrega a rouquidão advinda das consequências do Teste das Ervas e logo sucumbe a uma fraca tosse.

E você pode? O pensamento é uma resposta automática na mente da jovem feiticeira, que se levanta e caminha até a mesa de madeira colocada ao lado da cama. Ileanna pega um frasco pequeno, no qual um líquido esverdeado brilha sob a luz das velas. A jovem de olhos dourados abre o frasco e, apoiando a cabeça do Aen Elle com a mão livre, o ajuda a beber o líquido esverdeado. Com o primeiro contato, uma expressão de desconforto surge na face de Avallac’h, denunciando o desagradável sabor da poção.

— A senhora Yennefer fez essa poção para ajudá-lo a regenerar. – a Rosa diz em um baixo e calmo tom de voz.

— O que exatamente aconteceu comigo? – o Aen Saevherne questiona após terminar de beber a poção.

— Para quebrar a maldição em você, eles o fizeram passar pelo Teste das Ervas. – Ileanna explica enquanto coloca o frasco de volta na mesa e retorna a sentar sobre o colchão, ao lado do antigo professor – É o mesmo teste que transforma os witchers no que eles são e isso teve algumas consequências para você. – o brilho de irritação que nasce nas írises aquamarines não passa despercebido pela jovem feiticeira – Você pode continuar com sua aversão a esse mundo, mas foram os witchers que quebraram a sua maldição. – o comentário é colorido com provocação e os lábios vermelhos se esticam em um suave sorriso.

— E o que aconteceu com você? – com a pergunta, o claro olhar de Avallac’h volta a se focar no olhos dourados da feiticeira.

— Eu escapei. – há uma sombra de resignação na voz de Ileanna – Eredin pensou que havia conseguido me matar, mas ele estava errado.

— É claro. – a certeza na voz do Aen Elle faz com que a feiticeira de olhos dourados arqueie a sobrancelha em um mudo questionamento – Você sempre foi poderosa demais e teimosa demais para ser derrotada por Eredin. – provocação e um pouco de divertimento envolvem as palavras do Aen Saevherne e fazem com que um pequeno sorriso nasça nos lábios vermelhos da feiticeira.

— Eu fui bem treinada. – Ileanna diz com o mesmo provocativo divertimento na voz, mas logo a voz da feiticeira adquire uma hesitante seriedade – Você treinou Zireael durante esse tempo?

— Não como treinei você. – Avallac’h responde, a voz ecoando a seriedade da jovem de olhos dourados – Ou Caranthir. Ciri precisa de um tipo diferente de treinamento.

É claro. O pensamento é imediato na mente da feiticeira. Você não usaria a mesma violência que foi usada conosco. Você não ousaria derramar uma gota do sangue de Lara. Os pensamentos permanecem ocultos nas sombras que dançam no dourado olhar e que as írises aquamarines tentam intensamente desvendar. O quanto você esconde no seu silêncio, Rosa de Auberon? O pensamento ecoa na mente do Aen Saevherne mesmo com o tremular das pálpebras ameaçando ocultar as claras írises.

— Você deveria descansar. – a jovem feiticeira diz, percebendo como o cansaço parece começar a ganhar a batalha contra a consciência do Aen Elle – Logo, Zireael estará aqui.

Avallac’h assente lentamente, aceitando a sugestão e permitindo que as pálpebras se fechem sobre as írises aquamarines. Com um movimento da mão da jovem feiticeira, todas as velas se apagam e apenas a luz dos intensos relâmpagos consegue permissão para iluminar o silencioso aposento. Sob o brilho da tempestade, olhos dourados permanecem observando o feiticeiro adormecido, a mente inquieta demais para se deixar levar pelo convite do sono.

Skellige

Frio. Tão frio. Gelo corta a pele e penetra o corpo, envolvendo os músculos em um impiedoso abraço. O sangue treme em uma desesperada tentativa de se manter aquecido, mas o frio permanece e o eco do assobiar da nevasca domina a mente, cegando a visão. Nenhum movimento é permitido na escuridão, nenhum pensamento nasce e nenhum ar chega aos pulmões. Tudo é frio e congelado, o próprio mundo para na ausência de som e calor. Alguns poucos segundos, um minuto, uma eternidade capturada. Apenas um breve momento, um passo dentro do portal, no caminho entre os mundos. E então o empurrão, o tropeço quando o movimento volta e a queda sobre a neve. Os pulmões voltam a respirar e o sangue aquece, os músculos livres do abraço do frio. Írises douradas tentam se focam em meio ao gelado soprar da brisa, a mente logo reconhecendo o nublado céu de Skellige.

O que foi isso? O pensamento acompanha o intenso e inquieto bater do coração enquanto as mãos procuram por um apoio sobre a neve, as pernas trêmulas ao tentarem aguentar o peso do corpo. Por um momento, o witcher permanece imóvel sobre o branco tapete, a mente concentrada em recuperar o controle sobre a ofegante respiração. Nenhum portal jamais ofereceu uma experiência tão intensa. E tão desesperadora. Finalmente conseguindo se colocar de pé, Geralt olha ao redor, tentando reconhecer a ilha na qual se encontra, mas os pensamentos são teimosos e insistem em voltar para o esmagador toque do frio. O Lobo Branco se recorda das palavras de Yennefer sobre o portal aberto por Ileanna ser diferente, mas essa definição não parece ser o suficiente. Por uma breve eternidade, o witcher se sentiu aprisionado em uma tempestade de puro frio, congelado em uma ensurdecedora escuridão. Mas por quê? Por que o portal de Ileanna é tão mais insuportável, tão mais violento do que o de outras feiticeiras? E por que foi diferente dessa vez? O witcher se recorda do último portal aberto por Ileanna enquanto ainda estavam em Skellige e não foi tão intenso.

Sob o sussurro da fria brisa, as palavras de Ileanna em Kaer Trolde ecoam na mente de Geralt. “Eu nasci com uma alta sensibilidade para a magia” É isso? O que o witcher sentiu foi um pouco do verdadeiro poder de Ileanna, o poder guardado no sangue e que a fez tão valiosa para a Caçada Selvagem? Por mais que tente, é impossível para o Lobo deixar de imaginar que tipo de poder o próprio sangue e o de Yennefer podem ter presenteado a jovem feiticeira de olhos dourados. Um profundo suspiro escapa por entre os lábios finos e o claro olhar se foca em um barco abandonado na margem da ilha. Com passos excessivamente firmes, o witcher se aproxima da embarcação, o coração ainda batendo forte e a mente ainda questionando e imaginando enquanto os dedos buscam pelo pequeno e brilhante guia oferecido pelo Aen Saevherne e guardado em uma pequena caixa de madeira, mantida a salvo em um bolso oculto no interior do casaco. Abrindo a caixa e vendo o fraco pulsar da pequena luz, Geralt se pergunta quais outras surpresas se encontram escondidas no futuro, quantas lutas o aguardam até que possa ter as filhas seguras consigo e com Yennefer.

Soltando a pequena bola de luz, o witcher pula para o interior do barco abandonado. Tomando controle do leme, Geralt segue o voar do pequeno vagalume por entre o gelo que cobre o mar de Skellige. O caminho serpenteia em meio as ondas, invadindo a espessa névoa que parece marcar a fronteira do arquipélago. Os pensamentos do Lobo Branco acompanham as curvas do desconhecido labirinto, cada manobra e desvio levando a Ileanna e Ciri. Alguém poderia dizer que é realmente uma brincadeira do Destino que os caminhos de Ciri e Ileanna tenham se cruzado entre os Aen Elle, em meio àqueles que desejam o poder carregado nos sangues das jovens. Entretanto, esse pensamento também traz à mente do witcher o contraste entre as duas filhas.

Geralt pensa na rebeldia de Ciri e no calmo controle de Ileanna, no calor que parece sempre queimar nas írises de esmeralda e nas frias sombras que recentemente nasceram no olhar dourado. Enquanto continua a seguir o caminho traçado pela pequena esfera de luz, o witcher tenta imaginar como deve ter sido a convivência entre as duas no mundo da Caçada Selvagem. Ciri foi sempre indomável, quase uma força da natureza e Ileanna... Ileanna também é assim, o witcher percebe. Tudo que aconteceu, tudo que foi revelado, aconteceu no ritmo colocado por Ileanna, mesmo com a decisão de Geralt e Yennefer de não a forçar a dizer nada do que não estivesse pronta. Ileanna revelou o que quis quando quis e ainda mantém segredos ocultos nas sombras que dançam nas írises douradas. A jovem feiticeira não pode ser controlada ou forçada a fazer algo que não deseje. Geralt se recorda do eco de lealdade na voz de Ileanna ao falar do Rei dos Amieiros e o coração do Lobo se inquieta ao pensar em quão verdadeira e profunda era – ou ainda é— a lealdade da feiticeira para com os Aen Elle.

O impacto do barco contra a areia da praia desperta a mente do witcher e as írises douradas observam o destino alcançado, procurando por alguma sombra de familiaridade, mas a densa névoa cobre a ilha como um pesado cobertor. Pulando para fora do barco, Geralt pensa que o nome da ilha não poderia ser mais apropriado, a fraca luz do guia oferecido por Avallac’h sendo a única real fonte de iluminação a tentar revelar o caminho em meio a névoa. Nem mesmo a distante lua consegue quebrar a barreira que embaça a paisagem da ilha. O eco de gritos quebrados viaja pelo ar, arrepiando a pele protegida pela armadura e fazendo o medalhão na forma da cabeça de um lobo tremer levemente. Atento, o witcher desembainha a espada de prata e, com a mão livre, procura pelo óleo espectral e o passa por toda extensão da lâmina. Parecendo perceber que Geralt está pronto, a pequena esfera volta a voar, indicando a trilha a ser seguida.

Silenciosamente alerta, o Lobo Branco segue o caminho indicado, as írises douradas analisando rapidamente cada sombra que parece dançar em meio a névoa. O medalhão treme mais intensamente e o witcher vira o corpo no momento exato, evitando o ataque da lâmina de uma aparição. Logo, a densa neblina ganha um brilho esverdeado, originado das lanternas carregadas pelas aparições que se aproximam. Geralt dá um salto para trás, os dedos rapidamente fazendo o sinal de Quen, mas antes que o witcher possa preparar o sinal de Yrden, outra aparição ataca, o forçando a desviar com uma meia pirueta para o lado. A pequena esfera de luz permanece sobre Geralt, emprestando sua luz no mar de névoa e brilho espectral. Dando outro pulo, o witcher consegue fazer o sinal de Yrden e runas arroxeadas aparecem no chão, prendendo as duas aparições mais próximas. Com movimentos rápidos, Geralt corta os dois espectros, que se desfazem com um longo gemido, e se posiciona para enfrentar as aparições restantes.

Duas aparições tentam atacar juntas, mas o Lobo desvia dos ataques, rapidamente fazendo o sinal de Yrden e invocando novamente as runas no chão. Os espectros são presos no campo energizado do sinal e derrotados com precisos golpes da espada de prata. Contudo, algo pesado colide com a lateral direita do rosto do witcher, o derrubando na areia. Ao virar o corpo para ver o que ou quem o atacou, Geralt se depara com uma aparição diferente, parecendo ter sido formada a partir da própria névoa. Um véu cobre o rosto do espectro e a neblina dança ao redor do corpo translúcido, quase como um inquieto vestido. Por um momento, o witcher se recorda das aparições noturnas, mas há uma fria calma emanando do estranho espectro que o distancia de todos os outros dessa classe. A aparição ergue a esquelética mão em direção à pequena esfera de luz e um sussurro ecoa em meio a névoa, as palavras soando como a Língua Antiga, mas o witcher não consegue traduzi-las:

Já faz tanto tempo... Desde a última vez que senti essa vida... Esse eco de poder...

Geralt permanece imóvel e em silêncio, o atento olhar observando o estranho comportamento demonstrado pela aparição. A esquelética mão é abaixada e a atenção do espectro parece mudar para o witcher. Írises douradas tentam ver através do branco véu, mas a névoa se mantém como uma armadura ao redor da aparição, ocultando a identidade do espectro e intensificando a fria calma que domina a neblina. A aparição inclina o pescoço para lado, como se estivesse estudando o witcher, e o movimento afasta um pouco o véu e o longo cabelo acinzentado, revelando um pescoço marcado por uma longa tatuagem. Linhas escuras marcam a pele translúcida, tocando o contorno da mandíbula e seguindo sob o vestido de névoa, desenhando galhos e folhas em seu caminho. A imagem desperta a memória de uma tatuagem similar na mente no witcher, pintada no pescoço de um rebelde Aen Seidhe.

Eu pensei que ela dormiria para sempre...

Novamente, Geralt ouve o sussurro na Língua Antiga, mas as palavras soam diferente do que o witcher se recorda, continuando a impedi-lo de traduzi-las. A aparição se aproxima, voando em meio a névoa, e o Lobo Branco ergue a espada de prata, o corpo assumindo um posicionamento defensivo. Contudo, a clara mudança na postura do witcher não parece incomodar a aparição, que para a menos de um passo de distância, a esquelética mão sendo erguida para os olhos dourados. Confusão nubla a mente de Geralt, cada instinto gritando para atacar, para se afastar da aparição, mas, ao mesmo tempo, há algo no estranho espectro que mantém o witcher fincado no lugar, as írises claras procurando pela sombra de um semblante sob o véu, de alguma pista que possa indicar as intenções do espectro. Com um incaracterístico cuidado, a aparição toca o rosto de Geralt, o toque quase tão frio quanto o portal aberto por Ileanna. Por um momento, o witcher tem o ar roubado e a névoa que envolve a ilha se torna novamente iluminada pela esverdeada luz das aparições, o brilho se tornando cada vez mais intenso até quebrar em uma explosão cujo eco parecesse alcançar a própria alma de Geralt.

A intensidade do estouro faz com que as pálpebras se fechem sobre os olhos claros e o corpo do witcher caia sobre a praia. O impacto contra a areia devolve o ar aos pulmões do Lobo e as írises douradas voltam a ser reveladas, a imagem que encontram fazendo o coração acelerar no peito. A espessa névoa desapareceu, dando lugar a um belo pôr-do-sol, a avermelhada luz tocando fracamente a margem junto com o calmo ondular da água. E, sentada sobre a areia, ao lado do caído Lobo Branco, está uma bela elfa. O acinzentado cabelo é como uma cachoeira sobre os ombros, ocultando parcialmente o longo vestido branco e sendo decorado por uma tiara de flores, da qual um branco véu escapa para repousar sobre os lisos fios. A desconhecida elfa vira o rosto, revelando írises intensamente azuis e, quando a suave brisa assopra, Geralt pode ver a tatuagem que adorna o pescoço da bela elfa, agora mais destacada sobre a pele clara.

— Você pode me entender agora? – as palavras soam como um sussurro no ar, lentamente pronunciadas e carregadas com um sotaque que o witcher nunca encontrou em um Aen Seidhe.

Kaer Morhen

A chuva cai tranquilamente sobre a fortaleza, formando pequenas poças entre os muros quebrados do pátio e sob as copas das árvores, que são lentamente embaladas pela fria brisa. Na entrada parcialmente aberta do lar dos witchers, uma jovem feiticeira permanece sentada, a perna esquerda dobrada de modo a se tornar apoio para o braço. Pequenas gotas d’água caem sobre o chão de pedra, se desfazendo nas diminutas poças e ricocheteando no corpo que permanece próximo demais da chuva. Írises douradas observam o calmo ritmo da chuva, o som ecoando na mente junto com a memória de belas cachoeiras. O distraído olhar encontra uma pequena goteira próxima a alta porta e cada gota é como um chamado para a lembrança de uma goteira similar, escondida em uma silenciosa cripta. Um suspiro escapa por entre os lábios vermelhos, o coração dói com a saudade do que foi perdido e do que foi deixado para trás.

No salão da fortaleza, experientes olhos dourados observam a jovem feiticeira, a mente perdida em lembranças de uma menina que corria cheia de energia pelos corredores de Kaer Morhen, sempre parando nos braços de um Lobo Branco ou de uma feiticeira de olhos violetas. Mas agora a pequena menina cresceu e se tornou uma feiticeira tão bela e poderosa quanto a mãe, as írises douradas herdadas do pai carregadas com sombras de um passado que ainda não foi inteiramente revelado. Respirando fundo, Vesemir se aproxima da distraída feiticeira, tomando um cuidado extra para se fazer notar através dos passos firmes que ecoam no salão. Durante a curta caminhada até a porta de entrada, o mestre dos witchers observa o perfil da jovem de olhos dourados, percebendo como nenhum músculo se mexe sob a pele, mesmo que as írises douradas notem que a aproximação foi percebida.

— Geralt encontrará Ciri. – Vesemir comenta com uma velada hesitação na voz, incerto em como começar a conversa. O witcher se senta no chão, as pernas cruzadas a poucos centímetros do ponto onde a feiticeira se encontra.

— Eu sei. – Ileanna responde, as írises douradas sendo dirigidas ao mais velho – Pelo modo como Zireael falava sobre ele, tenho certeza de que ele a encontrará.

O veterano witcher permanece em silêncio, o atento olhar observando a face da feiticeira de olhos dourados. Ela realmente ficou parecida com Yennefer. O pensamento acompanha o caminho que as írises fazem pelo rosto jovem, notando as linhas que se assemelham a sombras dos traços que compõem a face da feiticeira de olhos violetas, a mesma afiada beleza, a mesma poderosa imponência, mas os olhos... Ileanna tem os olhos de Geralt. Não somente a cor das írises e o formato das pupilas, mas a força no olhar, a mesma intensa e rebelde teimosia. E há algo que Ileanna herdou dos dois: um poder capaz de transformá-la em uma indomável tempestade. O poderoso witcher pode ver por que a jovem feiticeira se tornou um valioso recurso para a Caçada Selvagem. Mesmo que nunca a tenha visto no campo de batalha, Vesemir sabe que Ileanna é um poderoso e perigoso oponente.

— Deve ser estranho para vocês, witchers. – Ileanna começa, quebrando o silêncio sob a chuva, um fraco sorriso nos lábios vermelhos – Ter a mim e a Avallac’h aqui. Lembretes da Caçada Selvagem, do que Zireael está fugindo. – as palavras da jovem feiticeira arrancam uma fraca risada dos lábios do experiente witcher.

Você diz isso porque não sabe o quanto estamos felizes por tê-la de volta. Vesemir mantém o pensamento silenciado na língua, mesmo que o coração deseje poder vocalizá-lo. As írises douradas do witcher se focam nos olhos de mesma cor, percebendo como a chuva parece ter diluído um pouco as sombras que Ileanna carregava no olhar e permitido que uma inocente curiosidade nasça nas írises de witcher. É exatamente essa curiosidade que formiga na mente da jovem feiticeira. Na presença do mestre dos witchers, Ileanna sente uma calma segurança, como se a própria figura do mais velho fosse uma promessa de proteção contra qualquer inimigo que possa aparecer. Por um momento, o olhar dourado caí para o medalhão na forma da cabeça de um lobo que permanece ao redor do pescoço do mais velho, igual aquele usado por Geralt e pelos outros witchers. Sem pensar, os dedos da jovem feiticeira tocam o próprio medalhão, a mente retornando para um passeio feito em um sonho, na companhia de um lobo, em uma fortaleza tão parecida com o lar dos witchers.

— Deve ser estranho para você. – Vesemir diz, o experiente e calmo olhar procurando pelas írises douradas da feiticeira – Estar nesse mundo. – as palavras do witcher fortalecem o sorriso nos lábios vermelhos.

— Esse mundo é estranho. – Ileanna responde, o olhar se voltando para a fraca chuva que continua a cair sobre a fortaleza – É tão rígido e bruto, como uma espada quebrada que foi esquecida em um abandonado campo de batalha. Sinto falta da beleza e da leveza de Tir Ná Lia. – o quase imperceptível tremor que nasce na voz da jovem feiticeira não passa despercebido pelo atento witcher – Sinto falta dos jardins do Palácio da Lua e do som das cachoeiras. – Vesemir percebe o peso que ecoa na voz de Ileanna, a saudade de um lar abandonado não por escolha, e a amarga e fraca risada que escapa por entre os lábios finos – Mas esse mundo também é tão familiar. – as últimas palavras são um sussurro tão baixo que quase se perde no murmuro da chuva.

E eu não entendo por quê. O pensamento permanece como um eco da chuva na mente da feiticeira, o olhar dourado retornando para o medalhão ao redor do pescoço do veterano witcher. A segurança passada pela presença de Vesemir traz consigo a memória da proteção encontrada nesse mundo, no silêncio de uma cripta e na companhia de um witcher de cabelos brancos e de uma feiticeira de olhos violetas. O quanto do que vivo agora, eu vivi antes? O olhar da jovem feiticeira é elevado para as írises douradas do witcher. Todos vocês... Eu os conhecia antes da Caçada? Sob a suave música da chuva e na vulnerabilidade revelada pelas pequenas gotas d’água, os questionamentos que assombram a mente de Ileanna e permanecem envoltos em um pesado cobertor de sombras nos olhos dourados encontram um pouco de luz para se revelarem e serem decifrados pelo treinado olhar de Vesemir.

O experiente witcher lê as perguntas no sombreado olhar, o desejo de respondê-las nascendo no veterano coração. Mas Vesemir silencia a vontade, sabendo que esse privilégio pertence apenas a Geralt e Yennefer. Sob o atento olhar da jovem feiticeira, o witcher estica a mão, os dedos tocando o medalhão na forma da cabeça de um lobo que permanece no pescoço de Ileanna. A curiosidade se intensifica no dourado olhar e um pequeno sorriso nasce nos lábios do mestre dos witchers. Por um momento, Vesemir permanece apenas tocando a face do lobo, a mente perdida na lembrança do dia em que o medalhão foi dado, no largo sorriso que foi oferecido como agradecimento. É impossível para o witcher não sentir uma onda de orgulho e satisfação com o fato de que Ileanna, mesmo não se recordando, não se desfez do presente.

— Você sabe o que esse medalhão significa? – Vesemir questiona olhando diretamente nas írises douradas da feiticeira.

— É o símbolo da Escola do Lobo, a marca de um witcher dessa escola. – Ileanna responde devagar, se recordando de uma conversa tida sob uma árvore em Kaer Trolde – Mas eu não sei por que tenho um. – hesitação nasce na voz da feiticeira, uma insegurança que reflete a incerteza que morde a mente – Não me lembro de como o consegui.

— E você sabe o que mais ele significa? – o veterano witcher pergunta, a voz pesando com a força das palavras que serão repetidas. Diante da silenciosa negação dos olhos dourados, Vesemir continua – Significa que você sempre terá um lugar entre os witchers, entre nós.

O toque abandona o medalhão e o experiente olhar vê as sombras tremerem nas írises douradas. As palavras do witcher são como o golpe de uma maça para a feiticeira, o eco do pancada reverberando na mente com a mesma força com que um sonho assombra a memória. O peso da familiaridade cai sobre Ileanna como a chuva sobre a fortaleza, um toque frio que convida para viajar, para sonhar com o que o mundo um dia já foi, com o que foi esquecido e deixado para trás. Sentindo os músculos tremerem sob a pele e o coração batendo mais forte do que o mais poderoso trovão, a feiticeira de olhos dourados deixa que a mente escolha uma resposta, mesmo que a consciência não consiga encontrar um sentido por trás da palavra sussurrada que faz um sorriso nascer nos lábios do witcher.

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— Obrigada...

Com a atenção focada na jovem feiticeira, o veterano witcher falha em perceber as írises violetas que observam a cena com curiosa atenção. A familiaridade da quieta conversa observada não passa despercebida pela feiticeira, o coração se inquietando com as memórias que são despertadas na mente. Yennefer se recorda do modo como, quando criança, Ileanna era próxima de Vesemir, sempre disposta a ouvir as longas histórias sobre witchers e monstros. Nesse aspecto, a jovem feiticeira se torna um contraste com Ciri, que sempre teve mais interesse em agir, em treinar, do que paciência para apenas sentar e ouvir. Por um momento, a poderosa feiticeira se encontra imaginando como Ciri e Ileanna devem ser juntas, a contraposição de ambas tendo o potencial de formar uma bela imagem. A fúria e o calor de Ciri, a calma e o frio de Ileanna. Opostos não tão opostos. Crianças nascidas com sangues cheios de poder e, por isso, caçadas por aqueles com o desejo de ter esse poder para si. O vento assopra, úmido e gelado com a chuva, e a feiticeira cruza os braços sobre o peito para se proteger, mas o que o coração realmente deseja segurar são as duas meninas que estão finalmente encontrando o caminho de volta para casa.

Sob o suave sussurro da chuva, o coração de Yennefer bate intensamente com a vontade de manter as filhas consigo, seguras e longe de qualquer perigo ou ameaça. Retorne logo. O pensamento traz a imagem de um habilidoso witcher de cabelos brancos, a figura sendo o suficiente para acalmar a mente e aquecer o coração.

Ilha da Neblina

O choque ainda marca a face do witcher, a brusca mudança de cenário não tendo sido completamente registrada pela consciência. O olhar dourado permanece fixo na face da bela desconhecida, a calma nas írises azuis parecendo refletir a serenidade das lentas ondas a beijarem a areia. A voz da estranha elfa é como um sussurro na brisa, carregando um tom diferente daquele presente nas vozes de todos os Aen Seidhe que já cruzaram o caminho do Lobo Branco. A atenção das claras írises cai para a tatuagem desenhada no pálido pescoço, a mente imediatamente retornando para a lembrança do mesmo desenho na pele de um comandante Scoia’tael. Os lábios finos e tão acinzentados quanto os longos fios do liso cabelo se esticam em um suave sorriso, as palavras sendo repetidas pacientemente e coloridas com um fraco tom de divertimento.

— Você pode me entender agora?

Quem... O que é você? – a pergunta deixa os lábios de Geralt de modo distraído, a mente quase inconsciente ao fazê-la, as írises douradas procurando o olhar intensamente azul. As palavras fazem com que uma breve risada deixe os lábios da bela desconhecida.

— Meu nome é Inis. – a elfa responde, parecendo sussurrar com a voz do vento – Quem eu era já foi há muito esquecido, minha presença é apenas um distante sonho nas mentes daqueles que um dia me conheceram.

O olhar dourado observa ao redor, o belo pôr-do-sol não combinando com a sombria e pesada atmosfera que o recepcionou ao chegar na Ilha da Neblina. Distraído, o witcher brinca com a quente areia, os grãos envolvendo os dedos enluvados com uma presença forte demais para ser um sonho. Írises azuis observam os movimentos de Geralt com paciente divertimento, os lábios acinzentados ainda esticados em um calmo e suave sorriso. Em silêncio, a bela elfa pega a mão do Lobo e a posiciona com a palma para cima. O witcher permite o toque, o atento olhar acompanhando quando Inis apoia a própria mão, unindo as palmas em um toque quase fantasmagórico. Não demora para que Geralt comece a sentir uma pontada de calor nos pontos em que a mão se une à da bela elfa e, quando Inis afasta a mão, os olhos dourados encontram a pequena esfera de luz oferecida como guia por Avallac’h.

— Meu nome e minha história podem ter sido apagados desse mundo. – a misteriosa elfa diz, o olhar azul procurando as írises douradas – Mas meu poder permanece nessa ilha, é a única parte de mim que continua a existir. – a tristeza que colore as últimas palavras não passa despercebida pelo witcher, que volta a atenção completamente para a face da bela elfa.

— O que aconteceu com você? – Geralt questiona, a curiosidade de witcher sendo despertada pela melancolia que nasce na voz de Inis e nas sombras que surgem nas írises azuis, mesmo sob o toque do sol.

— Você está aqui por causa dela, não está? – Inis questiona enquanto pega a pequena orbe de luz com a palma da mão – A jovem cujo sangue e alma carregam o eco do poder da Gaivota. – a última palavra captura a atenção do witcher, fornecendo a resposta para a questão que rodeia o modo de falar da bela elfa.

— Você é uma Aen Elle. – a afirmação do Lobo faz com que o sorriso nos lábios acinzentados se intensifique.

— Você é esperto, vatth’ger. – diante da surpresa que nasce nas írises douradas, Inis continua – O distorcido eco que seu sangue carrega é antigo, witcher. Mais antigo do que você imagina. – o olhar azul cai para o pequeno círculo de luz, despertando a mente de Geralt para o que foi dito apenas alguns momentos antes.

— Ela realmente está aqui? – a voz do poderoso witcher treme levemente com a esperança que acelera o coração e é refletida no brilho das írises douradas – Ciri está nesse ilha?

— Sim. – a bela elfa responde – Ela está dormindo, assim como ele a deixou.

— Avallac’h? – Geralt questiona, o nome carregando toda desconfiança sentida com relação ao Aen Saevherne.

— Sim.

Sem dizer mais nenhuma palavra, Inis se levanta, o longo vestido se arrastando pela areia quente e a mão segurando gentilmente a pequena esfera de luz. Confuso com o súbito movimento e ainda curioso sobre de o modo como Avallac’h deixou Ciri na ilha, Geralt também se coloca de pé, os finos grãos de areia grudando na pesada armadura e carregando o calor do sol a cada passo dado pelo witcher. Lábios finos se abrem na intenção de questionar, de dar voz as perguntas que inquietam o coração, mas quando a atenção das írises douradas cai sobre o belo perfil da calma elfa, as palavras tropeçam, caindo em uma prisão na garganta. Há algo na beleza de Inis, uma sombra que remete a uma perda, a uma memória esquecida, a aparição que se mostrou diante do witcher em meio a névoa. Por um momento, Geralt imagina se Avallac’h sabia da presença de Inis na Ilha da Neblina, se a misteriosa Aen Elle fazia parte do plano do Aen Saevherne para deixar Ciri segura e protegida da Caçada Selvagem.

— Você o conhece? – o witcher questiona quase em um sussurro, a voz adquirindo um leve tom de hesitação e insegurança – Avallac’h?

— Eu o conheci. – Inis responde, o verbo soando como a mordida de uma tempestade – Lara era minha amiga. – a revelação, um fraco sussurro na brisa, faz com que o witcher pare sobre a areia e se torne o foco do olhar azul.

Lara? – o nome deixa os lábios de Geralt carregado com toda surpresa sentida, mas a confusão que nubla a mente somente aumenta diante do suave sorriso que o witcher recebe como resposta.

— Ela era bela, uma verdadeira princesa. – o eco de saudade pesa na voz da misteriosa elfa, colorindo as palavras com as sombras de um passado denso como a névoa. Um travesso sorriso nasce nos lábios acinzentados e as írises azuis brilham como divertida desconfiança – Você não conhece, não é mesmo? A história que une a Gaivota e a Raposa.

A surpresa que inicialmente nasce na mente do witcher aos poucos cede espaço para as lembranças de uma trilha feita em meio a ruínas élficas marcadas pela passagem da Caçada Selvagem. Geralt se recorda do altar que encontrou com Keira, um simples memorial em homenagem a Lara Dorren, que tudo indicava que havia sido montado pelo elfo que buscavam... Avallac’h. A desconfiança sentida com relação ao Aen Saevherne queima com energia renovada no peito do Lobo Branco. O interesse e a conexão com Lara por parte do feiticeiro Aen Elle, o que poderiam significar para Ciri? Que objetivo Avallac’h poderia manter escondido enquanto ajuda e mantém Ciri longe dos Cavaleiros Vermelhos? As írises douradas são dirigidas para os olhos azuis e, no olhar de Inis, o witcher vê um reflexo da própria desconfiança e o conhecimento da natureza dúbia do Aen Saevherne.

— Não, não conheço. – Geralt responde, a rigidez na voz se tornando mais evidente – Você poderia me contar?

— É claro. – a bela elfa responde, o olhar azul caindo brevemente para a pequena esfera de luz que carrega carinhosamente na palma da mão – Se você se importa com a última a carregar o sangue de Lara, então tem que conhecer a história. Desse modo, saberá o que esperar. – com um breve olhar para o witcher, Inis retoma a caminhada.

No silêncio que preludia o início da narrativa, Geralt acompanha os passos da elfa de cabelo acinzentado sobre a areia, o olhar dourado se voltando para o avermelhado pôr-do-sol. As cores do firmamento já começam a se transformar, o vermelho e o laranja se diluindo sob o toque do azul arroxeado até se transformarem no suave rosa que acompanha a descida do sol. A amarela estrela parece roubar a cor e o brilho dos olhos do witcher enquanto caminha para seu descanso abaixo da linha que une o mar e o horizonte. Um profundo suspiro escapa por entre os lábios do Lobo Branco enquanto o olhar muda de foco para poder observar a bela praia, tão diferente daquela que o recepcionou envolta em neblina. O coração do witcher bate intensamente no peito, energizado pela vontade de encontrar Ciri e mantê-la longe não somente da Caçada Selvagem, mas também de Avallac’h. Há algo no modo como Inis age ante a menção do Aen Saevherne que apenas intensifica a desconfiança de Geralt. Voltando a atenção para a silenciosa acompanhante, o witcher se surpreende ao perceber que, se questionado ou pressionado, não hesitaria em depositar a confiança na bela e misteriosa elfa ao invés de no poderoso feiticeiro.

Tir Ná Lia

A taça de vinho permanece esquecida sobre a mesa, a trêmula sombra dançando sobre as palavras escritas em um pergaminho. Írises douradas observam a imóvel mensagem, a expressão pensativa endurecendo as linhas do rosto do vice-rei. As poucas e breves palavras, fracamente iluminadas pelas chamas da lareira, ecoam de novo e de novo na mente de Ge’els, causando um inquieto despertar na desconfiança que por muitos anos permaneceu adormecida. O que você quer com os soldados de Vridhiel? Mesmo através do papel, o poderoso Aen Elle pode ouvir o ríspido e autoritário tom de Eredin, atrevido como uma criança a quem foi dado poder demais para administrar. A falta de talento do cavaleiro vermelho para governar não é ignorada pelo vice-rei. Eredin pode ser um excelente soldado, um bom general, mas não nasceu para ser um rei.

Não como Auberon. O pensamento acompanha o profundo e discreto suspiro que escapa por entre os lábios finos enquanto Ge’els se levanta da poltrona, os passos firmes e lentos o conduzindo até uma mesa posicionada sob a janela, o forte brilho da lua cheia iluminando a rosa de gelo deixada sobre a escura superfície. Com as pontas dos dedos, o vice-rei segue o contorno da fria flor, a mente navegando pelas memórias da jovem feiticeira que conjurou a rosa com o poder herdado de uma tempestade. Uma lembrança, contudo, se destaca no mar que domina a mente. A recordação da noite em que uma sentença foi dada e a feiticeira – tão leal ao último rei – se tornou uma traidora. Caçada e morta. Linhas profundas surgem na face de Ge’els, marcando o rosto que se fecha com as sombras da desconfiança. Eredin realmente acredita ter conseguido matar Ileanna ou foi uma mentira contada de modo consciente?

“Ileanna? Uma traidora?!”

“Ela traiu o rei, Ge’els. Passado e presente”

A conversa ecoa em meio aos pensamentos do vice-rei, o tom presunçoso e petulante de Eredin se assemelhando demais aquele impregnado na breve carta. Sem evidências de conspiração ou de qualquer ato ilícito, o general da Caçada Selvagem ainda é o legítimo rei, mas Ge’els encontra cada vez mais dificuldade em afastar os sussurros de suspeita que arranham a mente e fazem com que antigas questões ressurjam. Há perguntas que rodeiam a condenação de Ileanna que foram deixadas sem respostas e cada silêncio parece retornar para a morte de Auberon. O ponto onde tudo mudou. Ge’els afasta o toque da rosa congelada e cruza os braços firmemente nas costas, o olhar dourado se erguendo para a brilhante lua a iluminar a noite e a mente mais inquieta do que as chamas da lareira. Os pensamentos do vice-rei se afastam do passado e retornam para o presente, para o nome citado na carta de Eredin.

Vridhiel.

Ge’els confia que o jovem capitão cumprirá a missão dada e encontrará Ileanna sem muita dificuldade. A verdadeira incógnita é o que acontecerá depois. O vice-rei conhece muito bem a lealdade que Vridhiel guarda para com a Rosa, uma que não foi abalada nem por um segundo quando a condenação por traição foi dada. Uma lealdade eterna. Assim como aquela que fazia com que Ileanna se ajoelhasse sem hesitação perante Auberon. Entretanto, há algo a mais na lealdade de Vridhiel, um carinho que o jovem soldado tenta tanto esconder, mas que é tão claro quanto o dia no verde olhar. E esse foi o motivo pelo qual Ge’els o mandou para rastrear Ileanna depois que o recado da rosa congelada foi dado. Não é um teste para a lealdade de Vridhiel, mas sim para a da jovem feiticeira. Com o frio presente, Ileanna reafirmou a lealdade para com Auberon, para um dos raros Aen Elle que conheciam o segredo guardado no sangue da feiticeira. Mas agora o vice-rei deseja saber até onde essa lealdade vai, se restou algum resquício para com a vida que Ileanna deixou para trás, para com o mundo que foi abandonado.

Com passos lentos, Ge’els retorna para o bilhete abandonado, o olhar dourado observando as palavras por um breve momento antes da mão pegar a taça de vinho. Eredin pode esperar por um resposta do mesmo modo que o vice-rei aguarda o próximo passo de Vridhiel.

Ilha da Neblina

Quando o sol se perde sob o toque do horizonte e as sombras se espalham, esfriando a areia da praia e a suave brisa que acompanha a tranquila caminhada, o silêncio ainda pesa entre a elfa e o witcher, mas Geralt não consegue encontrar em si a vontade ou a coragem de quebrá-lo. Sob o cuidadoso olhar das estrelas, as írises douradas observam o leve balançar do longo cabelo acinzentado sob o branco véu, a mente imaginando que história poderia existir por trás da beleza e do poder de Inis. A misteriosa Aen Elle não se assemelha a nenhuma aparição encontrada pelo Lobo Branco no Caminho. Todos os encontros tidos com espectros foram marcados por batalhas, por maldições quebradas e espíritos colocados para finalmente descansarem em paz. Nenhum mostrou a lucidez de Inis ou a habilidade de mudar o ambiente ao redor. Nesse momento, o witcher percebe que a areia foi deixada para trás e a grama começa a quebrar sob os passos dados.

Olhando ao redor, Geralt vê as árvores que, antes, eram mantidas escondidas sob o toque da neblina. As atentas írises douradas percebem os contornos que se destacam em meio as sombras da noite, as altas e cheias copas sendo balançadas pelo vento que se torna cada vez mais gelado. Mesmo que nada possa ser distinguido sob a escuridão e entre os fortes troncos, o witcher sente como se estivesse sendo observado a cada passo dado, olhares invisíveis que fazem o medalhão na forma da cabeça de um lobo tremer sobre a armadura, quase como um constante murmuro, um eco do mar deixado para trás. O olhar do Lobo Branco cai para a acompanhante, o coração batendo inquieto no peito, curioso e receoso com a história que será contada e com o caminho que é seguido tão calmamente pela elfa de olhos azuis. Sob a fraca luz da lua minguante, a imagem de Inis se aproxima mais daquela de um espectro, mas não como a aparição que primeiro se apresentou para o witcher. Sob as estrelas, Geralt tem a certeza de estar caminhando com um fantasma. E isso não o incomoda.

— Tudo aconteceu há tanto tempo, que é quase como falar sobre um sonho. – a voz da bela Aen Elle, baixa e suave como a brisa, captura a atenção do witcher – Eu conheci Lara quando éramos crianças. Meu pai era conselheiro do pai dela, o rei Auberon.

Auberon. O nome ecoa na mente de Geralt, despertando a lembrança de uma noite de tempestade em Kaer Trolde, de uma conversa onde o mesmo nome foi dito. O mesmo rei citado em uma conversa com um cavaleiro vermelho, o soberano a quem Ileanna ainda demonstra uma intensa lealdade. A bela Aen Elle ergue a mão de modo quase distraído, os longos dedos tocando uma pequena flor escondida sob a escuridão que cai sobre os galhos da alta árvore. As pequenas e ovaladas pétalas se abrem sob o toque de Inis, revelando uma palidez quase tão intensa quanto a exibida pela fantasmagórica elfa.

— Ela era uma poderosa Aen Saevherne. – a bela elfa continua, o olhar azul parecendo estar completamente hipnotizado pela pequena flor – Desde criança, o poder nela a destacou dos outros, ainda mais do que ser a filha do rei. – o toque é abaixado e os passos sobre a grama são retomados – Eu mesma era uma poderosa feiticeira, a magia no meu sangue me fazia sensível aos toques entre os mundos, aos caminhos escondidos na neblina. – uma fraca risada deixa os lábios acinzentados – Mas isso foi antes de os navegadores serem tão comuns.

Geralt segue a companheira de caminhada em silêncio, o olhar dourado acompanhado cada movimento feito e cada sombra que passa pelo perfil da bela elfa. A voz de Inis pesa com uma saudade distante, mas são as últimas palavras que capturam a atenção do witcher. Inis era uma navegadora. Isso explica por que a Aen Elle é uma aparição tão peculiar, navegadores são poderosos feiticeiros, tendendo a terem uma relação ainda mais natural com a magia do que outros usuários dessa força da natureza. Ainda assim, algumas perguntas permanecem inquietas na mente do Lobo. O que aconteceu com Inis? Como ela se tornou uma aparição? E como tudo isso está conectado com Ciri? A atenção das írises douradas cai, por um momento, sobre a pequena e pálida flor. Curioso, Geralt ergue a mão e toca levemente as brancas pétalas. Imediatamente, o constante tremor do medalhão se intensifica e o claro olhar é erguido, encontrando o suave sorriso da bela elfa.

— O nome delas é a’baeth. – Inis explica, a voz pintada com um indisfarçado divertimento – Um beijo. Elas costumavam ser trocadas entre amantes, eram um símbolo do amor sentido, uma promessa de fidelidade. – a cor no suave sorriso dos lábios acinzentados se torna opaca, um sombra de melancolia desbotando a diversão antes presente – Cregennan sempre aparecia com uma para Lara. E meu marido trazia uma para mim toda manhã, junto com um beijo para me acordar.

— Seu marido? – Geralt questiona sem pensar, os pensamentos borbulhando com a curiosidade sentida.

— Ele dorme pacificamente nessa ilha. – a Aen Elle responde, retomando a caminhada sobre a grama – Mas eu não consigo. Por mais que eu tente, algo sempre me desperta. – as írises azuis se voltam para a face do witcher – Principalmente quando alguém ancora na praia.

— Então você acordou quando Avallac’h trouxe Ciri para cá? – a pergunta escapa por entre os lábios do Lobo Branco com mais urgência do que era pretendido.

— Sim, mas minha presença, se sentida, foi ignorada. – a sombra de um riso passa pelos lábios acinzentados – Mesmo que tanto tempo tenha se passado, ele não mudou. O eco da raiva e do ressentimento, do ódio, ainda é forte no coração de Avallac’h.

— Ódio? – Geralt questiona, a voz carregando a curiosidade e a desconfiança sentidas – Contra quem?

— Esse mundo. – Inis responde com calma e simplicidade, a leveza da resposta surpreendendo e desequilibrando o witcher por um momento. As írises azuis procuram o dourado olhar e, nos olhos da bela elfa, o Lobo Branco vê as sombras de um tempestuoso passado, de batalhas e de perdas – Lara estava prometida a ele. E Avallac’h a amava intensamente, mas quando Lara escolheu Cregennan, ele não foi capaz de perdoar.

— Ele não perdoou Lara? – o witcher pergunta, começando a compreender o objetivo de Inis ao contar a história da ancestral de Ciri – Ou Cregennan?

Ambos. – a resposta deixa os lábios finos na forma de um pesado suspiro – Quando a promessa foi feita, nós não nos encontrávamos tão próximos dos humanos e Lara aceitou o enlace mais como um dever do que como um desejo pessoal. E então, Cregennan apareceu. Um poderoso feiticeiro, confiante e corajoso, mas uma incógnita tanto quanto nosso conhecimento dos humanos. – uma fraca risada escapa da bela elfa – Bastou um momento para que Lara fosse conquistada. E eu acredito que isso foi recíproco, mas Avallac’h não pode aceitar. Não apenas perder Lara, mas perdê-la para um humano.

— Então, agora, Avallac’h odeia todos os humanos? – Geralt questiona desviando do galho baixo de uma árvore, os pensamentos se voltando para o Aen Elle enfraquecido deixado em Kaer Morhen.

— Ele odeia a memória que os humanos carregam, a lembrança da perda de Lara. – Inis explica, o olhar azul repousando por um momento na face do witcher – Ele odeia esse mundo, pois o homem que o roubou nasceu aqui. – os passos param sobre a grama e o bela elfa se volta completamente para o acompanhante – Ódio e ressentimento são como veneno, corrompendo o sangue e o coração e marcando a mente. E, no caso de Lara e Cregennan, foi também contagioso. Não demorou para que humanos e elfos se encontrassem presos em teias de sussurros, de suspeitas e calúnias sopradas no vento com objetivo de jogar um lado contra o outro e quebrar o laço que unia Lara e Cregennan. O rei tentou silenciá-los para proteger a filha, mas... Foi inútil.

As írises azuis são desviadas para o horizonte, mas o movimento não é rápido o suficiente para impedir que Geralt note as sombras de tristeza que pintam o intenso olhar. O olhar do witcher segue o caminho feito pelas claras írises e a visão da escura linha do horizonte faz com que Geralt perceba que a trilha tomada por Inis os levou para o ponto mais alto da ilha, oferecendo um panorama da praia e da longa extensão do mar sob as estrelas e a fraca lua minguante. A imagem, para o Lobo Branco, é como uma antiga pintura, desbotada pela ação do tempo, mas ainda paralisada em um momento há muito passado. O olhar dourado retorna para a face da bela elfa e, por um breve instante, o witcher pode ver a aparição que o encontrou em meio a névoa. O fantasma de um passado há muito tempo esquecido e ignorado.

— Uma caçada começou. – Inis retoma a história, mas o eco de melancolia que colore a voz se intensifica, pesando em cada palavra e em cada batida do coração do witcher que acompanha o conto com intensa atenção – Eu e meu marido lutamos para ajudar Lara e Cregennan. Minha amiga estava tão feliz com a criança que esperava, mas tudo se quebrou em um instante, como um sonho feito de vidro. – um trêmulo suspiro escapa por entre os lábios acinzentados – No fim, Cregennan morreu para proteger a família que ele pensou que pudesse ter e Lara foi perdida. Minha amiga morreu sozinha sem ter a chance de conhecer o bebê que tanto amava. – as írises azuis, brilhantes como as estrelas com as lágrimas contidas, se voltam para o witcher – Eu fugi com meu marido, éramos caçados pela ajuda que oferecemos aos nossos amigos. Eu usei minha magia para achar um lugar seguro e, então, chegamos a essa ilha. Mas nossos caçadores foram quase tão rápidos e tão poderosos quanto nós. – as lágrimas escapam dos olhos claros, marcando com finas linhas a face pálida e bela – Meu marido morreu na praia, com a espada na mão e o último suspiro dado contra meu coração. Eu sabia que não escaparia, mas não esperava ficar presa a essa ilha.

— O que aconteceu? – Geralt questiona, os dedos coçando para secarem as lágrimas que caem dos olhos azuis, mas sendo mantidos firmes ao lado do corpo – Por que seu marido dorme enquanto você acorda?

— Eu não sei. – Inis responde, uma das mãos repousando sobre o coração, a outra mantendo a pequena esfera segura no carinhoso toque – Talvez... Quando estava morrendo, meu colar foi roubado. A lágrima de uma safira. Era a âncora da minha magia, do meu poder. Talvez quem o roubou o tenha perdido enquanto estava aqui e minha magia foi... Despedaçada na ilha.

Uma âncora. O modo como Inis descreve a joia perdida captura a atenção do witcher e faz com uma lembrança desperte na mente, um comentário feito por outra feiticeira. “Não existem navegadores iguais, mas todos carregam consigo algo para servir como uma âncora” A recordação da explicação de Ileanna faz com que Geralt tenha ainda mais certeza de que a acompanhante foi realmente uma navegadora. Mas algo mais também emerge na mente do Lobo Branco, nascido do conhecimento e do treinamento adquiridos durante a vida inteira. A suspeita de que o colar de Inis se tornou uma âncora em mais uma sentido, a impedindo de dormir o sono dos mortos. Contudo, antes que o witcher possa dar voz aos pensamentos, o olhar azul volta a procurar as írises douradas e um fraco sorriso nasce nos lábios acinzentados, ainda levemente molhados pelas lágrimas derramadas.

— Mas apesar de todo sofrimento enfrentado, de toda morte e todo sangue derramado, o amor de Lara e Cregennan sobreviveu, ainda pulsa no sangue daquela que dorme e que você busca.

— Ciri. – o nome deixa os lábios do witcher sem que a mente possa impedir e as sombras voltam a apagar as cores da bela elfa.

— Eu posso sentir os ecos desse mundo, os desdobramentos do passado que participei. O poder de Lara é forte nas veias da Andorinha, mas aquele que a guiou até aqui ainda persegue o fantasma do passado prometido. Avallac’h ainda é incapaz de deixar Lara ir, de deixar a memória dela descansar. – a bela elfa dá um passo em direção ao acompanhante, o olhar azul tão intenso que ameaça capturar Geralt em um feitiço – Então, guie a última a carregar o sangue de minha amiga para longe do caminho que ele tenta traçar. Eu não quero que o que resta de Lara seja corrompido pelo passado.

Geralt assente, concordando com o pedido de Inis. O coração do witcher há muito tempo fez uma promessa a si mesmo de manter Ciri longe de Avallac’h. E Ileanna também. Agora, mais do que nunca, o witcher sente a desconfiança sentida com relação ao Aen Elle validada e justificada. Ao mesmo tempo, Geralt não consegue deixar de imaginar o que a importância de Lara, e o peso de perdê-la, para Avallac’h podem significar para Ciri. O Aen Saevherne pode ter ajudado e protegido Ciri da Caçada Selvagem até agora, mas que objetivos podem se esconder por trás desses atos? O que Avallac’h pode esperar conseguir conquistando a confiança de Ciri?

— O que Avallac’h fez? – o witcher questiona, a voz adquirindo um tom mais tenso e firme – Enquanto Lara estava sendo caçada?

— Ele permaneceu em silêncio. – Inis responde, as palavras soando como o sussurro das ondas na praia – Acredito que ele esperava que Cregennan fosse morto e, então, Lara retornaria para o pai, para ele. Não acho que Avallac’h desejasse a morte de Lara, mas ainda assim ele coloca a culpa pela morte dela em Cregennan, ele a vê em todos os humanos que o fazem lembrar daquele que roubou Lara dele, no mundo que, um dia, foi o lar de Cregennan.

Respirando fundo e oferecendo um suave sorriso para o acompanhante, a bela elfa retoma a caminhada. Ainda que a mente navegue no turbilhão de pensamentos acerca da história contada, os olhos dourados não falham em notarem a silhueta de uma casa, escondida em meio as sombras da direção tomada por Inis. A visão faz com que o coração do Lobo Branco acelere sob a armadura, cada batida fortalecendo a esperança de ver Ciri novamente. Parecendo notar o que acontece com Geralt, o sorriso nos lábios acinzentados aumenta e o intenso olhar azul volta a exibir o brilho das estrelas, mas, dessa vez, sem a presença das lágrimas. Há algo na melodia que pulsa no sangue do witcher que se assemelha a memória do passado antes da guerra, das batalhas e das mortes. E essa suave música faz com que a certeza da segurança do sangue de Lara floresça no coração de Inis.

Levando as mãos até os lábios, a bela Aen Elle assopra a pequena esfera de luz, que voa na brisa iluminando o caminho a ser tomado e revelando os detalhes da edificação antes apenas vislumbrada. A opaca simplicidade da casa captura a atenção das írises douradas, que reparam como a antiga e branca pintura se tornou acinzentada sob o toque do tempo. Há apenas um andar e as poucas janelas de madeira são mantidas fechadas, quase como uma proteção contra o mundo exterior. O diminuto guia oferecido por Avallac’h para acima dos poucos degraus que oferecem entrada para o modesto alpendre, onde uma cadeira de balanço e um banco de madeira permanecem abandonados e esquecidos. O cenário causa no witcher a impressão de estar diante de uma pintura inacabada, interrompida durante os primeiros traços do rascunho e nunca mais retomada. Um suave toque sobre o braço faz com que a atenção de Geralt retorne para a dona dos intensos olhos azuis.

— Ela dorme no primeiro andar. – uma sombra de despedida começa a colorir a voz de Inis – Siga seu guia e ele o levará até o despertar dela.

— O que acontecerá com você? – Geralt questiona, não encontrando em si a vontade de deixar a companhia da intrigante Aen Elle.

— Eu retornarei para onde nossos corpos foram enterrados, para o coração da névoa. – os dedos longos e pálidos tocam o rosto do witcher e o frio retorna, como o suave sopro da brisa, fazendo o coração tremer e as estrelas fraquejarem. Por um momento, Geralt fecha os olhos e, quando as írises voltam a ser reveladas, encontram novamente a face oculta da aparição, o intenso e azul olhar escondido e perdido atrás do branco véu – Boa sorte, vatth’ger.

Mais uma vez, as palavras do espectro se transformam na língua que, agora, Geralt suspeita ser a falada pelos Aen Elle, uma transformação daquela falada pelos Aen Seidhe. O frio toque se afasta e, por um breve momento, o olhar dourado apenas observa o balançar do véu sobre a face cuja beleza o witcher já havia se acostumado. O Lobo Branco quer questionar, pedir para Inis ficar, oferecer ajuda para que a bela elfa possa finalmente dormir, mas as palavras permanecem aprisionadas na garganta, sob o peso do silêncio que se estende sob as estrelas. A aparição inclina um pouco o pescoço para o lado e Geralt tem a exata sensação de que Inis está sorrindo, o mesmo suave e calmo sorriso. Quando a aparição começa a se afastar, o witcher tenta pará-la com um toque sobre o braço, mas a aparição é rápida e desvia antes que Geralt possa alcançá-la, continuando calmamente o caminho para o coração da ilha.

Sentindo o peso da ausência de Inis, o Lobo Branco respira fundo, a atenção retornando para a silenciosa casa. No peito, o coração do witcher bate em um misto de temor e excitação, a vontade de encontrar a filha novamente impulsionando o primeiro passo em direção ao pequeno e brilhante guia.

Vizima

— Ela não está aqui.

As palavras são ouvidas, mas a mente do jovem capitão não as registra, o verde olhar observando o imponente palácio marcado pelo eco da presença da Rosa de Auberon. Um discreto suspiro escapa por entre os lábios de Vridhiel, o coração pesado com o fracasso em encontrar a feiticeira buscada. Há uma ânsia no forte coração que deixa a mente inquieta e os pensamentos acelerados, um anseio por reencontrar a feiticeira cuja morte presumida por muito tempo assombrou os sonhos do jovem soldado. A Rosa e o Vice-Rei parecem jogar um jogo desconhecido para o capitão, mas essa percepção apenas aumenta a vontade de Vridhiel de encontrar de Ileanna, o desejo de vê-la novamente, de mantê-la segura e longe de qualquer punição que possa surgir por parte dos soberanos dos Aen Elle. É um jogo perigoso para ele, pois um movimento em falso é o suficiente para levá-lo diretamente para os braços da Morte. Ainda assim, o jovem capitão guarda a esperança de encontrar uma resposta em olhos intensamente dourados.

Puxando o capuz de modo a ocultar ainda mais o rosto, Vridhiel guia a negra égua para longe do castelo, a mão livre sinalizando que Faolin o siga. Em silêncio, os soldados se afastam da morada tomada por Emhyr em Vizima, as escuras armaduras ocultadas por pesados casacos e as faces mantidas escondidas sob as sombras dos capuzes, os elmos e as máscaras guardados em prol da discrição. Nenhum humano precisa saber que Aen Elle caminham na capital imperial. Contudo, o agudo som de um grito captura a atenção dos jovens cavaleiros, o frio que nasce no ar arrepiando a pele com o eco da familiaridade. Írises verdes procuram pelo azul olhar e, nos olhos de Faolin, Vridhiel encontra o reflexo da própria tensão. Cavaleiros Vermelhos. Por um momento, a mente do jovem capitão questiona o que poderia estar por trás da presença da Caçada em Vizima. Talvez Eredin tenha descoberto que falhou ao tentar assassinar Ileanna e agora a esteja procurando. Ou talvez o rei esteja simplesmente procurando pela Andorinha no lar do pai.

Balançando levemente a cabeça para espantar os pensamentos e as suspeitas, Vridhiel guia a negra égua para a direção paralela a da origem do frio. Mais gritos começam a nascer, ganhando liberdade das gargantas daqueles que fogem carregando consigo o conhecimento do significado por trás da súbita queda de temperatura. O coração do jovem capitão bate no ritmo da veloz cavalgada e o capuz escorrega pelo curto cabelo de bronze, revelando a face marcada pela cicatriz de batalha e as írises verdes que brilham com intensa determinação. Com a visão periférica, o cavaleiro vermelho percebe que Faolin cavalga ao lado, o cabelo dourado e os olhos azuis revelados com a queda do capuz sob o toque do vento. Quando a fronteira da cidade é ultrapassada e a origem do frio se encontra a apenas poucos metros de distância, o navegador sinaliza para que parem e o capitão aquiesce. As montarias são deixadas sobre a grama e, com cuidado, os soldados seguem o ruído de vozes entre as árvores.

— Espere. – Faolin pede, uma mão repousando sobre o braço do capitão, a outra carregando o cajado.

Vridhiel aceita o pedido, parando a caminhada e esperando o próximo movimento do companheiro. Com um suspiro, palavras são murmuradas pelo jovem navegador e uma luz azulada começa a envolver o cristal na ponta do cajado. O brilho se espalha e se intensifica até envolver completamente os dois soldados, o tênue toque afastando o frio familiar e aquecendo a pele. O verde olhar procura as írises azuis e as encontra brilhando com o poder que corre nas veias do navegador. A mente do capitão logo reconhece a natureza do feitiço sendo invocado, uma proteção contra os sentidos dos cavaleiros vermelhos entre as árvores, um modo de se manterem ocultos e seguros. Faolin assente e solta o braço do comandante, uma silenciosa indicação de que a proteção está pronta. Retribuindo o movimento, Vridhiel guia o caminho até o frio familiar que denuncia a presença dos companheiros de Caçada.

Sob a grama, os passos dos soldados são silenciosos, qualquer som sendo roubado pelo feitiço do navegador. Pouco a pouco, o eco de vozes começa a recepcionar a aproximação dos jovens elfos, mas uma se destaca no som cada vez mais alto e faz com que Vridhiel e Faolin parem e se escondam atrás dos largos troncos das árvores. Írises azuis e verdes trocam um receoso olhar quando a voz, colorida com deboche, é reconhecida. Imlerith. A presença do conhecido general denuncia o objetivo por trás da presença dos cavaleiros vermelhos, uma vez que tanto o capitão quanto o navegador sabem que Imlerith é o braço esquerdo do rei na busca pela Andorinha. O direito sendo Caranthir. Com um movimento da mão, Vridhiel indica que Faolin permaneça no lugar. Após ver o soldado assentir, o jovem capitão se movimenta com discreta rapidez para um ponto mais próximo dos companheiros, duas árvores à frente do ponto onde o navegador permanece.

— Aquela raposa a escondeu bem dessa vez. – o general comenta para os soldados reunidos enquanto retira a maça de um humano destroçado em meio a grama.

Raposa? A palavra captura a atenção do jovem capitão, que logo a relaciona com o antigo conselheiro do trono, amaldiçoado pelo atual soberano. Avallac’h conseguiu esconder Zireael antes de ser tomado pela maldição? O pensamento faz com que profundas linhas nasçam entre os olhos verdes, a mente não demorando a pular para outro questionamento. Ileanna está procurando pela Andorinha? Por isso estava com o witcher e a feiticeira? Por esse motivo Ge’els pediu para ser avisado se ambas se encontrarem novamente. A conclusão faz com que um baixo suspiro escape por entre os lábios finos do cavaleiro, a cabeça repousando contra o áspero tronco da árvore e a imagem de intensos olhos dourados invadindo a mente. O que eu estou fazendo? O que vou decidir quando encontrar você de novo? O estrondo de uma árvore sendo partida retira o capitão dos próprios pensamentos e atrai as írises verdes para o tronco destruído no chão, a arma de Imlerith ainda apoiada na madeira.

— Esse mundo é tedioso. Frágil demais. – o general diz com desgosto na voz – Vamos para o próximo ponto. Para onde a trilha da Andorinha aponta dessa vez?

— Para o noroeste, meu senhor. – o navegador da unidade de Imlerith responde.

Vridhiel observa enquanto, sob a ordem de Imlerith, um portal é aberto para que os cavaleiros vermelhos possam continuar a busca pela Andorinha. Somente quando o último soldado passa pelo portal e a energia se fecha em uma aguda explosão, o capitão se move do precário esconderijo, o movimento sendo imitado por Faolin, que se aproxima com rapidez. Por um longo momento, o silêncio permanece como um pesado cobertor sobre os soldados, os claros olhares seguindo os rastros de morte e sangue deixados pelos cavaleiros vermelhos. Sob o frio tão familiar, a mente do jovem capitão retorna para as lembranças de um olhar dourado emoldurado pelo negro elmo da Caçada Selvagem, de lábios tão vermelhos quanto sangue, suaves ao sorrirem e firmes ao ordenarem, de um toque frio ao invocar uma tempestade, mas quente ao curar um ferimento. De uma mente afiada e inteligente e um coração corajoso e intensamente leal.

— Para onde o rastro de Ileanna aponta? – Vridhiel questiona, quebrando o pesado silêncio e falhando em esconder o leve tremor que domina a voz.

— Para o norte. – Faolin responde e um suspiro escapa por entre os lábios finos e pálidos – Eles estão chegando perto. Se o rei descobrir que ela está viva, irá caçá-la com tanta paixão quanto caça Zireael.

— Eu sei. – o jovem capitão diz, a voz soando tão pesada quanto o coração que bate fortemente no peito. As írises verdes procuram pelo olhar azul do navegador, encontrando a mesma prontidão para defender aquela que um dia os comandou, mas ainda assim, há algo que falta. Nos olhos de Faolin, Vridhiel falha em encontrar a inquietação que assola a mente e assombra o coração, os fantasmas de lembranças cujos ecos parecem acompanhar cada passo e pensamento. Há respeito, admiração e lealdade nos olhos da cor do céu, uma amizade nascida de anos lutando lado a lado com a Rosa de Auberon, mas falta o agridoce sentimento que colore cada memória de Ileanna na mente do capitão, que faz o coração doer com uma saudade que não possui conexão com a lealdade de um soldado para com o comandante. Um sentimento que há muito tempo Vridhiel se recusa a nomear – Vamos seguir para o norte e encontrá-la antes que os outros tenham alguma chance.

Os soldados retornam para as montarias sem saber que, nas horas que seguem, Vizima é dominada pelos ecos de sussurros compartilhados com as Ilhas de Skellige. Histórias sobre a Caçada Selvagem são murmuradas dentro da segurança de janelas e portas fechadas, entre suspiros trêmulos e lágrimas de medo e perda. Por toda capital, até mesmo entre as paredes do palácio de Emhyr, as afirmações acerca da caçada empreendida pelas cavaleiros vermelhos voam como os primeiros cristais de gelo a anunciarem a chegada da tempestade.

Ilha da Neblina

O impacto do primeiro passo contra o solo é como um despertar para a mente do Lobo Branco. Só então Geralt toma consciência da quebra da ilusão de Inis e o retorno da sombria beleza da ilha, envolta no intenso abraço da névoa. Por um momento, o witcher permanece imóvel sobre a grama, o olhar dourado velejando através da neblina até a entrada guardada pelo pequeno guia dado por Avallac’h. A brilhante esfera permanece suspensa no ar, tão leve quanto a brisa, aguardando a aproximação daquele que deve guiar. Respirando fundo, Geralt dá o segundo passo. Logo, o terceiro segue e não demora para que a pequena e brilhante esfera esteja brilhando diante das írises douradas. O diminuto guia rodeia rapidamente o corpo do witcher e então segue para a porta de entrada da casa, parando sobre a soleira como se aguardasse um convidado.

Sentindo o coração batendo com toda força no peito, o Lobo Branco sobe os baixos degraus que oferecem entrada para o alpendre e segue até a porta. Toda ansiedade sentida se torna um forte nó na garganta, impossível de ser engolido e sendo refletido na força do toque que envolve e destranca o maçaneta. A imagem que recepciona o witcher é a de uma abandonada sala de estar. A mesa, colocada no canto esquerdo, se encontra coberta por uma densa camada de poeira, assim como a lareira, apagada e esquecida. Uma estante repleta de livros permanece quase como um fantasma ao lado da lareira, um guardião espectral de um passado que já não é mais lembrado. O luminoso condutor sobrevoa o silencioso Lobo Branco, indicando a escada escondida sob as sombras, ao lado do móvel empoeirado. Dando as costas para a sala desbotada, Geralt segue a brilhante esfera para o primeiro andar, o coração batendo com mais intensidade a cada passo dado.

Os degraus levam diretamente para uma porta entalhada com o desenho de uma bela e desabrochada rosa. A inquieta esfera de luz parece seguir as linhas desenhadas na madeira, tamanha a inquietação que invade o pequeno guia. A mão do witcher é espalmada contra a superfície entalhada e o coração parece querer quebrar a barreira de ossos e músculos e saltar do peito para então invadir o quarto onde uma Andorinha dorme. Respirando fundo, Geralt abre a porta, o pequeno guia aproveitando a mínima abertura para invadir o aposento e jogar uma fonte de luz a afastar as sombras. Sob a luz da pequena esfera, os olhos dourados logo reconhecem a silhueta sobre a cama, o cabelo acinzentado sendo parcialmente iluminado pelo brilho do guia, que para sobre a figura de Ciri como se aguardasse pacientemente a aproximação de Geralt. O witcher se aproxima com a cautela nascida do temor de que a realidade seja um sonho prestes a desmoronar, o coração batendo desesperado e temeroso. Quando a pouca distância é vencida, o witcher se senta sobre o colchão e toca o braço da jovem adormecida, mas o frio que recepciona o toque faz com que o coração pare de bater por um segundo.

Dormindo. A palavra ecoa na mente de Geralt com a lembrança da história contada por Inis. Dormindo como os mortos. Sentindo o peso do fracasso cair como um desmoronamento sobre o peito, o witcher deixa que o corpo se curve sobre o de Ciri, os braços envolvendo a forma da Andorinha e a puxando para um carinhoso abraço. As írises douradas ardem com as lágrimas contidas e o rosto do witcher repousa sobre os fios acinzentados. Cada batida do coração é uma agulhada no peito para o Lobo Branco, a dor se tornando um eco que embaralha e entrelaça os limites entre sonho e realidade. O pequeno e brilhante guia permanece como uma estrela perdida em meio as sombras e o silêncio, lentamente perdendo altitude até se desfazer sobre o corpo de Ciri e mergulhar o quarto novamente em escuridão. Perdido na própria dor, Geralt falha em perceber o hesitante toque que treme ao se apoiar nas costas do witcher ou a respiração que, pouco a pouco, preenche os pulmões da sonolenta Andorinha.

Somente quando um forte tremor percorre o corpo que segura, o Lobo Branco toma consciência do despertar de Ciri. Com o coração batendo desesperado no peito, o witcher se afasta o suficiente para ver as írises da cor de esmeraldas serem reveladas em um olhar ainda nublado pelo sono. Com um largo sorriso nos lábios, Geralt aumenta a força do abraço com o qual envolve a filha sem se importar com a confusão que cruza o verde olhar. Logo, a Andorinha responde ao carinho com a mesma intensidade, os lábios finos se esticando em um sorriso que brilha com alívio e felicidade. O tempo passa e o witcher não é capaz de dizer se foram minutos, horas ou dias, mas cada segundo sentindo o calor da vida em Ciri é aproveitado ao máximo, como um bálsamo colocado sobre um ferimento há muito tempo dolorido.

Geralt. – Ciri diz como se não acreditasse, os dedos quase afundando da armadura que cobre o corpo do witcher em uma tentativa de confirmar a presença que tanto foi procurada.

— Eu encontrei você. – o Lobo Branco responde, os braços envolvendo a filha com a força da calmaria que envolve a tempestade do coração.

Velen

Írises palidamente azuis observam o destruído altar, o quebrado desenho da gaivota coberto por um fina camada de gelo, com uma sombra de desprezo no olhar. Uma tola obsessão. O pensamento acompanha os passos do rei de volta para o laboratório escondido, a mente retornando às lembranças do feiticeiro amaldiçoado. Os dedos cobertos pela negra manopla tocam um caderno abandonado sobre a mesa, quase oculto na sombra de uma pequena caixa de madeira. Passando as amareladas páginas de modo distraído, Eredin para em um desenho feito no centro de uma das folhas. Uma Andorinha envolta pelo espinhento caule de uma rosa. A imagem faz com que os lábios finos se estiquem em um divertido sorriso e uma fraca e baixa risada escape da garganta do soberano dos Aen Elle.

Você perdeu as duas, Avallac’h. O pensamento acompanha o toque que segue as linhas que formam o desenho sobre a página. A Rosa está morta e a Andorinha logo estará sob meu poder. Sua inútil obsessão não encontrará um caminho no sangue das protegidas de Auberon. Satisfação colore o fino sorriso e o caderno é fechado de modo abrupto e descuidado, os fortes passos do rei ecoando pelo silencioso laboratório. O rastro do Aen Saevherne há muito se tornou frio, mas a descoberta do laboratório por Caranthir despertou a curiosidade do líder da Caçada Selvagem. Contudo, a única coisa que o esconderijo de Avallac’h oferece é a prova de que o passado ainda assombra a mente do feiticeiro, a perda da princesa prometida ainda sendo um ferimento aberto no coração da raposa. Uma obsessão tão tola que nem mesmo os alunos de Avallac’h a encaravam com seriedade, tomando sempre a forma de uma provocação nos lábios de Ileanna e Caranthir.

O som de passos se aproximando atrai a atenção do pálido olhar azul e Eredin observa em silêncio a chegada do principal navegador entre os cavaleiros vermelhos. Os passos de Caranthir são firmes e decididos, sendo em todos movimentos um soldado e um general, o braço esquerdo do rei. Tão diferente da colega de treinamento. O soberano se recorda das acusações de Ileanna, das corajosas exigências por explicações para suspeitas encorajadas pela desconfiança compartilhada pela Andorinha. A lealdade da Rosa para com Auberon era inabalável, mas a que caminhou a levou? Para um mundo congelado pela Geada Branca, caída sobre a neve, sangrando nos portões da Morte. Se Ileanna tivesse apenas se ajoelhado e jurado lealdade ao novo rei, como Caranthir fez, então a Rosa também poderia ter se tornado uma general da Caçada. Mas ninguém podia fazê-la se ajoelhar, a não ser Auberon. Então deixe-a descansar em um túmulo de gelo ou seja lá onde tenha caído para morrer.

— Alguma resposta de Ge’els? – Eredin questiona, afastando os pensamentos acerca do passado.

— Não, senhor. – o navegador responde retirando o pesado elmo e revelando o olhar intensamente azul – Mas encontrei rastros recentes de Faolin nesse mundo.

— Faolin? – o rei repete, a mente rapidamente reconhecendo o nome – Então, Vridhiel está aqui. Sob as ordens de Ge’els. – um eco de raiva e desconfiança colore as últimas palavras a deixarem os lábios finos.

— Provavelmente, meu rei. – Caranthir concorda – Uma vez que ele pediu pelo esquadrão de Vridhiel.

Que jogo está jogando, Ge’els? O questionamento acompanha o acelerar do coração sob a armadura, a mente de Eredin se perdendo em suspeitas acerca do motivo pelo qual um vice-rei tão leal ao trono quanto Ge’els mentiria sobre as próprias intenções e tentaria manter as ordens dadas em segredo. Uma traição nunca foi considerada como podendo ser originada do vice-rei, mas agora o líder da Caçada Selvagem não tem tanta certeza. A lealdade de Ge’els para consigo nunca foi tão grande ou forte quanto aquela oferecida a Auberon.

— Para onde eles seguiram? – a irritação sentida permanece como um fraco eco na voz de Eredin, uma sombra sobre o pálido olhar.

— Para o norte, senhor.

— Siga-os. Em silêncio e com discrição. – o rei ordena com firme autoridade – Descubra o que Vridhiel procura nesse mundo e então reporte a mim. Não entre em conflito com ele, não quero que Ge’els tenha tempo para arrumar uma desculpa.

— Como ordenar, meu rei. – o navegador diz fazendo uma curta mesura, o braço direito cruzado sobre o peito.

Embora a ordem tenha sido aceita com a intenção de ser completamente cumprida, Caranthir deixa que os pensamentos permaneçam em silêncio, assim como o conhecimento do outro rastro encontrado, extremamente familiar, mas cuja existência não foi compartilhada com ninguém. O poderoso navegador tem quase certeza de que é esse rastro que Vridhiel busca sob a ordem de Ge’els, um rastro que, se provado verdadeiro, pode ser um pesado fato a desequilibrar a balança de poder controlada por Eredin.

Ileanna.

Ilha da Neblina

As chamas dançam na lareira jogando sombras sobre o empoeirado chão e iluminando a lâmina que é cuidada pelo toque habilidoso da Andorinha. Há uma calma leveza no silêncio que domina a antiga casa, agora liberta do peso da ansiedade e do medo. Um pequeno sorriso brinca nos lábios do witcher, encontrando reflexo no distraído sorriso que marca o rosto de Ciri. Após a longa estrada percorrida para encontrá-la, Geralt sente como se um peso fosse levantado dos ombros, a presença da filha, sã e salva, sendo a maior e mais valiosa das recompensas. A mesma sensação de alívio pode ser encontrada nas írises da cor de esmeraldas, uma felicidade por finalmente ter encontrado o caminho de volta para casa. A atenção dos olhos dourados cai para a lâmina sob o toque da Andorinha e o witcher não pode controlar o comentário que deixa os lábios, as palavras coloridas com divertimento:

— Vejo que não esqueceu os ensinamentos de Vesemir.

— “Um witcher pode esquecer de comer, de beber, até mesmo de respirar, mas um witcher nunca esquece de cuidar de sua espada” – Ciri recita com o mesmo eco de divertimento, o verde olhar se voltando para o witcher. Entretanto, uma sombra de dúvida logo cai sobre as írises claras – Como me encontrou? Eu nem sei exatamente onde estamos.

— Avallac’h. – o Lobo Branco responde, o nome arranhando a garganta com a força de tudo que foi descoberto sobre o Aen Saevherne – Ele nos disse onde você estava e me deu um guia para achar você.

— Então ele... Ele está bem?

Com a pergunta, o verde olhar é desviado para as chamas da lareira, mas mesmo sob a luz do fogo, Geralt consegue perceber o prazer que colore o rosto de Ciri com a noção do bem-estar de Avallac’h e uma brisa fria envolve o coração do witcher em um sufocante abraço. Se antes o feiticeiro Aen Elle era visto com desconfiança, após a conversa com Inis, o Aen Saevherne se tornou sinônimo de perigo. E nesse momento, sob a dança das chamas, o witcher pode ver a confiança e o carinho que a filha nutre por Avallac’h. A realização faz com que um discreto suspiro escape por entre os lábios finos.

— Ele está bem. – tensão se entrelaça na voz e nas palavras do Lobo, que se tornam duras e ásperas como uma corda puxada ao limite – Yen conseguiu quebrar a maldição. Ela está cuidando dele em Kaer Morhen. Vesemir, Eskel e Lambert também estão lá.

— Fico feliz. – Ciri responde, o verde olhar retornando para as írises douradas – Ele me ajudou muito. Não apenas a aprender sobre meus poderes e a controlá-los, mas também a escapar da Caçada Selvagem. – Geralt assente, aceitando as palavras, mas a mente não deixa de questionar qual seria o motivo por trás do auxílio de Avallac’h – Eu estava procurando por você e Yennefer. – as últimas palavras deixam os lábios da Andorinha em um hesitante sussurro.

— E nós estávamos procurando por você.

O sorriso nos lábios de Ciri aumenta com a resposta recebida e traz a lembrança de outra pessoa para a mente do witcher. Por um momento, Geralt permanece em silêncio, as írises douradas observando as chamas dançarem no rosto da filha enquanto os pensamentos se voltam para a filha deixada em Kaer Morhen. Ileanna não contou muito sobre a amizade com Ciri e o Lobo Branco não consegue deixar de imaginar como será o reencontro entre as duas, o que o Destino pode manter guardado para as filhas, ainda assombradas pelo espectro dos Cavaleiros Vermelhos. E pela presença de um poderoso e ambíguo Aen Saevherne.

— Ciri... – Geralt começa, a fraca hesitação na voz do witcher fazendo com que a curiosidade nasça na mente da Andorinha – Tem mais alguém em Kaer Morhen. Alguém que estava procurando por você.

— Quem? – a pergunta é feita com as cores da diversão e da provocação.

— Ileanna.

Em um único momento, toda luz deixa a expressão de Ciri, assim como qualquer traço da divertida calma até então presente nas írises verdes. Por um momento, o witcher teme que a menção do nome foi um erro, que a amizade contada por Ileanna não existe realmente, mas então o sorriso retorna para os lábios da Andorinha, brilhando com a luz das chamas dançando na lareira e com um alívio quase tão intenso quanto aquele mostrado ao saber do bem-estar e da segurança de Avallac’h.

— Eu sabia que ele estava certo, que ela estava viva. – as palavras deixam os lábios de Ciri com uma energia até então ausente na postura da Andorinha.

— Ele? – Geralt questiona, a confusão se revelando nas írises douradas.

— Avallac’h! – a neta de Calanthe responde como se fosse algo óbvio – Avallac’h disse que Eredin alegou ter matado Ileanna, mas ele não acreditava. Eu também não.

— Por que não? – a pergunta do witcher faz com que a energia em Ciri perca um pouco a intensidade e uma sombra de seriedade caia sobre as írises verdes. O Lobo Branco observa enquanto o olhar da filha retorna para as chamas e a voz adquire um suave tom de nostalgia.

— Eu senti o poder dela, Geralt. – Ciri responde, a mente retornando para um jardim escondido sob as sombras de um palácio e guardado por uma estátua de um passado que assombra o presente – Há uma tempestade nela, uma que eu acredito que nem mesmo Eredin seja capaz de conter. Ela é forte e poderosa. – uma fraca risada escapa por entre os lábios da Andorinha – Ela é mais do que o sangue que carrega.

— Mais do que o sangue que carrega? – Geralt repete, a confusão e a curiosidade sentidas ecoando na voz e nos pensamentos. A mente do witcher divaga para o sangue que corre nas veias de Ileanna, uma mistura nascida de um witcher e uma feiticeira, capaz de dar a ela uma intensa sensibilidade a magia.

— Ela é um Truque do Destino. – Ciri diz, as írises verdes procurando pelo dourado olhar, e o witcher assente, concordando – Mas ela se tornou mais do que isso. Ela é uma feiticeira, uma soldada, uma navegadora... – o quase orgulho e a admiração na voz da filha fazem com que Geralt se recorde do forte orgulho presente na voz de Ileanna durante uma conversa em Kaer Trolde, da certeza do caminho escolhido e das conquistas alcançadas.

— Você parece respeitá-la. – o witcher comenta com uma pontada de provocação na voz – Ela disse que vocês eram amigas.

— Amigas? – surpresa nasce nas írises verdes, mas logo se desfaz em uma baixa e breve risada – Acho que éramos. Ela me fazia companhia em Tir Ná Lia, cuidava de mim, mas... Eu nunca a entendi. – um sorriso estica os lábios de Ciri – Acho que tinha um pouco de inveja dela, do poder e do status que ela tinha. Mas ao mesmo tempo... Eu nunca consegui entender por que ela era tão leal ao rei, aos elfos. Ela foi roubada, por que ela seria leal a eles? O interesse dos Aen Elle estava no sangue dela, no poder que ela carrega... – ressentimento colore as últimas palavras da Andorinha, o verde olhar caindo para a lâmina apoiada sobre as pernas.

A resposta de Ciri ecoa na mente de Geralt, despertando uma dúvida similar sentida desde um encontro com um cavaleiro vermelho em Hindar. A origem da lealdade de Ileanna para com Auberon e os Aen Elle, uma lealdade tão intensa que foi o ponto de início de uma aposta que, até o momento, permanece sem resposta. O witcher não saber dizer qual das opções dadas por Ileanna o cavaleiro decidiu, mas nenhuma oferece uma sensação de segurança. Somente a ideia de que a Caçada Selvagem possa descobrir o rastro da feiticeira de olhos dourados e começar a caçá-la como a Ciri faz com que um tenso arrepio corra pela pele de Geralt e o coração bata com mais força no peito.

— Eu pedi para ela vir comigo. – Ciri diz em um tom de voz tão baixo que quase se perde no barulho dos pensamentos do Lobo Branco – Para esse mundo. – percebendo o silencioso questionamento nas írises douradas, a Andorinha continua – Depois que Auberon morreu, Ileanna me ajudou a sair de Tir Ná Lia. – um eco de tristeza invade as palavras quase murmuradas – Ela levou a mim e a Kelpie até a ponte no centro da cidade e me mostrou o caminho para escapar. Eu contei a ela sobre o que Eredin tentou me convencer a fazer, a dar ao rei algo suspeito para beber. Acho que foi isso que a fez confrontá-lo e, então, ser caçada. – um pesado suspiro escapa por entre os lábios finos – Eu pedi a ela para ir comigo, mas ela não aceitou. Mesmo na morte, Ileanna não abandonaria Auberon.

— Ela te ajudou. – Geralt diz de modo desajeitado, tentando diminuir o peso que as palavras parecem ter sobre ambos.

— Sim. – Ciri concorda, um sorriso mais forte e natural se desenhando nos lábios – Eu estou feliz que ela está viva, que ela está nesse mundo. – o witcher assente, concordando mais do que se permite mostrar, a felicidade pelo reencontro com Ileanna tão grande quanto a sentida ao achar Ciri – Mas e Yen? – provocação colore a voz da Andorinha, arrancando uma risada dos lábios do Lobo Branco – Vocês estão bem?

— Estamos. – Geralt responde, a mente retornando para a fuga feita durante o banquete em homenagem ao rei Bran, ao amor que ainda queima tão intenso quanto no primeiro beijo trocado – Estamos bem.

Melhores agora que você e Ileanna estão conosco. O pensamento permanece em silêncio na mente, somente um fraco reflexo encontrando liberdade no sorriso que marca o rosto do witcher e que apenas se intensifica ao receber um sorriso semelhante em troca. Sentindo todo o peso da jornada enfrentada e das palavras de Inis e Ciri escaparem em um profundo e lento suspiro, Geralt permite que o olhar dance de modo distraído pela sala empoeirada e fracamente iluminada pelas chamas na lareira. As írises douradas, acostumadas com as sombras, encontram as silhuetas dos livros esquecidos na estante e cobertos com o pó da passagem do tempo. Entretanto, o tremular das chamas revela um brilho entre os livros, um fraco pulsar de luz que segue o ritmo da dança do fogo. Intrigado, o witcher se levanta do chão, os passos firmes em direção a estante e sob o curioso olhar da Andorinha.

— O que foi, Geralt? – Ciri questiona, mas não obtém resposta.

Tocando as espinhas dos livros, o Lobo Branco segue o tremular das chamas, perseguindo o fraco brilho até encontrar o vão que marca a divisão da estante pela metade. Tocando os dois lados da fina linha e impondo um pouco de força, o witcher consegue abrir o esconderijo oculto, o ranger da madeira ecoando no aposento silencioso e fazendo com que Ciri também se coloque de pé, a curiosidade inquietando a mente. Atrás dos livros, Geralt encontra um estreito compartimento, profundo o suficiente para guardar um solitário baú de madeira. O witcher se coloca de joelhos para inspecionar melhor a descoberta, mas não deixa de perceber a aproximação de Ciri, que também se abaixa, as írises verdes observando os detalhes que cobrem o pequeno baú de modo intrigado e curioso.

— O que acha que tem dentro? – a Andorinha questiona.

— Eu não sei.

Com cuidado e um pouco de força, Geralt consegue quebrar a trava e levantar a tampa do baú. O movimento revela alguns livros e pergaminhos guardados de modo bagunçado e uma pequena caixa de madeira, que se torna o alvo do rápido toque da Andorinha. Oferecendo um sorriso cheio de divertimento para o witcher, Ciri abre a pequena caixa enquanto o Lobo Branco mexe nos livros e pergaminhos abandonados. Contudo, o brilho que escapa do objeto descoberto pela filha logo atrai a atenção de Geralt. Na mão erguida de Ciri há um belo colar, a corrente de prata emanando um fraco brilho sob o toque da luz das chamas e envolvendo um pingente na forma de gota, a coloração o relevando como uma safira e fazendo algo estalar na mente do witcher.

A lágrima de uma safira.

— Inis. – o nome escapa sem que a mente possa controlar.

— Quem?

O questionamento de Ciri não é registrado pela mente de Geralt, os pensamentos rapidamente encaixando as peças do quebra-cabeça da existência da intrigante aparição, o centro do mistério sendo a bela joia segurada pela Andorinha. Rapidamente, o witcher se coloca de pé e retorna para o ponto onde estava sentado, as mãos ágeis ao pegarem as espadas e as amarrarem nas costas. Com confusão e curiosidade no verde olhar, Ciri imita o movimento com a própria lâmina, o colar de safira firmemente enrolado na mão esquerda. As írises claras da Andorinha observam o quase frenesi que toma conta do witcher como se algo extremamente importante e urgente tivesse sido descoberto no baú escondido. A mudança é tão súbita e tão contrastante com a calma até então presente no Lobo Branco que desequilibra Ciri por um momento.

— Nós temos que ir. – Geralt diz, a inquietação presente até mesmo no tom em que as palavras são ditas.

— Por quê? Geralt, o que está acontecendo? – Ciri questiona, a mão repousando sobre o ombro do witcher em uma tentativa de retirá-lo do estado de agitação e acalmá-lo por um momento.

O resultado é imediato, o toque da filha aquietando a mente do witcher e fazendo com que um profundo suspiro escape por entre os lábios finos, os pensamentos ainda envoltos pela névoa da lembrança de uma bela elfa transformada em um espectro da ilha. As írises douradas são dirigidas para o verde olhar e no curioso e confuso olhar de Ciri, Geralt não consegue encontrar um motivo para não ajudar Inis. Avallac’h ofereceu uma direção e um guia, mas Inis ofertou orientação e o compartilhamento de uma história que o tempo encobriu com segredos e interesses, em muitos pontos de vista para saber qual diz a verdade. Eu não quero que o que resta de Lara seja corrompido pelo passado. O pedido da bela Aen Elle ecoa na mente do Lobo Branco, ganhando forma e vida no olhar de Ciri, que o fita com um começo de preocupação nas írises verdes.

— Há uma aparição nessa ilha. – o witcher começa, o tom de voz baixo, quase um sussurro em meio ao pesado e inquieto silêncio – Ela me guiou até aqui, até você. Ela é... Ela era uma Aen Elle, amiga de Lara Dorren. Esse colar pertenceu a ela e acredito que é o que a mantém presa nessa ilha.

Pouco a pouco, a compreensão nasce na face da Andorinha e o verde olhar cai para a lágrima de safira enrolada nos dedos. Lara. O nome é como um fantasma para Ciri, a perseguindo e a assombrando a cada passo dado, a cada caminho encontrado e percorrido. E mesmo agora, nessa estranha ilha, a memória de Lara está presente, a envolvendo com uma conexão que parece ser impossível de ser quebrada.

— Ela me ajudou a encontrar você. – Geralt diz percebendo a dúvida que nasce na mente da filha, o peso do sangue de Lara – E eu quero ajudá-la a encontrar paz.

Ciri assente, compreendendo a vontade do witcher em retribuir o favor recebido, mas a Andorinha não consegue evitar a agulhada no peito ao perceber a impossibilidade de fugir do espectro de Lara Dorren. Um suave beijo na testa desperta a mente de Ciri e faz com um sorriso nasça nos lábios finos, afastando as sombras da dúvida da face jovem e bela. Sem uma palavra, o colar é entregue para o witcher, que o guarda com cuidado em um dos bolsos escondidos do casaco. O olhar dourado procura pelas írises verdes, tentando confirmar que a jovem Andorinha está de acordo e, ao receber uma silenciosa confirmação, o witcher sorri e caminha em direção à porta da abandonada casa.

Contudo, quando a porta é aberta, o instinto faz com que a mão do witcher voe rapidamente para o cabo da espada. Uma fila de aparições recepciona Geralt e Ciri, a densa névoa ao redor dos espectros sendo colorida com o fantasmagórico brilho verde das lanternas. O witcher dá um passo à frente, pronto para lutar, mas nenhum movimento é feito entre as aparições. Lentamente, Geralt solta a espada, a mão caindo para o lado do corpo e, com um movimento, chamando para que Ciri permaneça perto. Por um longo momento, o Lobo e a Andorinha permanecem imóveis e em silêncio, os olhares estudando os espectros atentamente. Em meio ao sufocante toque da névoa, as írises douradas percebem o padrão escondido no posicionamento das aparições. Não é apenas uma fila, mas uma trilha de lanternas, um caminho a ser seguido.

Não deixando a guarda abaixar, Geralt segue o caminho proposto pelos espectros, cada passo firme sobre a grama e o atento olhar focado no mínimo movimento feito pelas aparições. Ciri segue perto, as írises verdes observando os silenciosos guardas com intrigada curiosidade. A trilha das fantasmagóricas lanternas segue por vários metros, que são percorridos sob um pesado e tenso silêncio. Entretanto, quando a sensível audição do witcher capta o fraco eco das ondas, o destino intencionado pelo caminho oferecido é compreendido. A praia. Geralt para subitamente, fazendo com que Ciri quase tropece ao ser forçada a parar também. As írises douradas observam os espectros por um momento antes que um colar seja retirado do bolso oculto e deixado a mostra para as silenciosas aparições. O Lobo e a Andorinha sentem a mudança causada pela revelação da joia, o ar se tornando mais pesado e a neblina mais densa.

— Eu quero falar com Inis. – o witcher diz, o tom de voz forte e autoritário – Vou devolver o colar para ela.

Por longos segundos, nada acontece e quando as aparições começam a se movimentar, Geralt teme que irão atacar e logo assume uma postura defensiva. Contudo, os espectros param em um novo padrão, um novo caminho sendo desenhado em meio a névoa. Esperando um momento mais para garantir a segurança da nova trilha, o Lobo Branco volta a caminhar, dessa vez, por um caminho que parece levar ao centro da ilha. Ao coração da névoa. A cada passo dado, as írises douradas percebem a névoa se tornando mais densa e pesada, tanto que não demora para que o witcher sinta o toque de Ciri nas costas, as mãos da Andorinha segurando com força para não perder Geralt de vista. Em meio a neblina, o witcher perde a noção de tempo, mas quando os últimos espectros são vistos, a mente deduz ter chegado ao destino.

Por um momento, as lanternas brilham com mais intensidade, parecendo empurrar a névoa, revelando duas lápides sem nome colocadas lado a lado em meio a um branco jardim, o witcher imediatamente reconhecendo as flores que envolvem as pedras. A’baeth. E, entre as lápides, uma aparição vestida em branco se encontra ajoelhada, a face oculta sob um pálido véu. Ao perceber a chegada dos recém-chegados, a aparição se levanta e dá um passo à frente, o que faz com que Ciri dê um passo inconsciente para trás. Percebendo o movimento da filha, Geralt se vira e oferece um reconfortante sorriso, a mão segurando o punho da Andorinha em um toque de segurança. O movimento, contudo, parece capturar a atenção de Inis, que continua a se aproximar e, mesmo escondidos sob o véu, os olhos da aparição parecem estar completamente focados em Ciri.

Filha da Gaivota. – a Aen Elle diz na língua materna, as palavras parecendo ecoar na neblina que contorna a pequena clareira como uma densa e enganosa cerca – Você tem a beleza de Lara.

As palavras fazem com que um arrepio corra pela pele de Ciri, a língua usada pela aparição familiar para a Andorinha, a mesma que foi ouvida tanto em Tir Ná Lia. Contudo, há algo no espectro além da língua falada que inquieta a herdeira de Lara Dorren, algo perto de um certeza, uma materialização de um passado que sempre foi evitado e cuja única confrontação foi guardada na memória, longe da consciência mesmo sob a constante ameaça da Caçada Selvagem, um pedaço pertencente a esse passado tanto quanto a pálida aparição. Por um momento, Ciri se sente retornar ao Palácio da Lua, presa sob o peso das fortes presenças de Eredin, Avallac’h, Auberon e Ileanna. Sem pensar, a Andorinha segura a mão do witcher com força, o toque sendo uma âncora a afastar a mente do passado.

— Eu vim devolver isso a você. – Geralt diz, percebendo o desconforto de Ciri e atraindo a atenção de Inis para si. O Lobo Branco ergue a mão, deixando que o pingente escorregue pelos dedos, a corrente de prata permanecendo enrolada na mão.

Meu colar. – surpresa colore a voz do espectro, que se aproxima do witcher com rapidez, os esqueléticos dedos tocando o pingente de safira.

— Acredito que é o seu colar que a mantém acordada. – Geralt explica, não se deixando afetar pela incompreensão das palavras ditas pela aparição – Era a âncora para seu poder como navegadora e permaneceu assim, mesmo após a sua morte. Seu poder, ancorado no seu colar, a mantém acordada. – mesmo sem poder vê-las, o witcher sente a intensa atenção das írises azuis – Permita que eu destrua seu colar e então poderá dormir. Como seu marido. – com um leve movimento da cabeça, o Lobo indica as lápides entre as flores.

A atenção da aparição segue o caminho indicado pelo movimento do witcher, os passos lentos a fazendo retornar para perto das flores. Írises douradas e verdes acompanham o retorno com silenciosa atenção, os corações batendo tão rápidos quanto os pensamentos a cruzarem as mentes. Enquanto Ciri tenta se afastar da atração ao passado que a presença de Inis parece exercer sobre si, Geralt se pega questionando um pequeno detalhe, a pergunta sendo vocalizada antes que a mente possa perceber que a resposta não será entendida:

— Quem enterrou vocês?

Aqueles que nos mataram.— Inis responde sem olhar para o witcher – Eles eram caçadores, mas nós ainda éramos nobres. Eles nos enterraram por um respeito que parecia não possuir mais sentido ou valor.

— Quem matou eles. – Ciri traduz, percebendo a incompreensão de Geralt com relação a língua dos Aen Elle e encontrando algo para se concentrar além das lembranças evocadas pela forte presença da aparição – Eles eram nobres, mesmo quando caçados, ainda foram oferecidos um enterro. – lendo a pergunta nas írises douradas, a Andorinha completa, os lábios esticados em um divertido sorriso – Eu sei a língua dos Aen Elle. Fiquei entre eles, lembra?

Você carrega mais de nós do que imagina, Zireael. — o espectro da Aen Elle diz, se voltando para a Andorinha – Eu ouvi como Avallac’h a chamou. Zireael, filha de Lara. — Inis volta a se aproximar, a mão sendo erguida e tocando levemente os fios acinzentados a emoldurarem a face bela e jovem – Há muito no seu sangue, em você, que você ainda não percebe. Você é mais do que pode ver, então abra suas asas e voe, Zireael.

Geralt observa a conversa com confusa incompreensão no dourado olhar, o coração desejando poder entender as palavras de Inis tão claramente quanto quando estava sob a ilusão da aparição. Ciri, por sua vez, sente cada palavra ecoar dentro de si, causando tremores nos músculos e na mente, que cai uma vez mais nas lembranças. Dessa vez, na memória de sensações similares causadas pelas palavras de uma feiticeira com olhos de witcher. Quem você deseja se tornar, Zireael? Uma pergunta antiga, feita anos atrás, mas que ainda é capaz de causar uma tempestade no coração da Andorinha. Sem dizer outra palavra, a atenção de Inis se volta para o witcher e o colar oferecido junto com uma promessa de sono e de liberdade da ilha. O toque esquelético segue o contorno da lágrima de safira com uma suavidade nostálgica, mas logo os ocultos olhos azuis parecem novamente capturar as írises douradas do Lobo Branco.

Permita-me retribuir esse gesto tão gentil.— as palavras do espectro são sussurradas como o vento enquanto os dedos se afastam da bela joia para que as mãos sejam unidas em um toque que logo começa a brilhar com a mesma verde luz que ilumina as lanternas das aparições. Inis mantém a energia presa por alguns segundos e, quando as mãos são afastadas, um esfera de luz, parecida com aquela oferecida por Avallac’h, plana no ar, sendo prontamente oferecida ao witcher – Os espectros os levarão de volta a praia. No mar, siga essa luz e ela os guiará para além das fronteiras dessa ilha. Quando estiver em segurança, pense em um lugar para o qual gostariam de ir e então quebre a esfera. Um portal os levará para o destino que desejarem.

— É um presente. – Ciri diz antes que Geralt possa questionar, a voz ecoando a surpresa sentida com o presente oferecido – Um guia para além da ilha e um portal para onde quisermos ir.

— Obrigado. – as írises douradas procuram pelo olhar azul mesmo com o véu a ocultá-los, a solitária palavra carregando um agradecimento não somente pelo presente, mas também por toda ajuda que foi oferecida.

A aparição toca o rosto do witcher brevemente, o toque tão frio quanto a primeira vez que foi sentido. Inis, então, caminha de volta para o túmulo de brancas flores, parando no mesmo ponto em que foi encontrada, entre as duas lápides de pedra. Por um longo momento, o silêncio reina na pequena clareira, pesado com palavras que permanecem presas nas gargantas do Lobo e da Andorinha, desconhecidas, mas ainda assim desejosas de liberdade, ainda que o caminho para a conseguir se mantenha oculto da mente. A aparição, por um segundo, parece oferecer um sorriso sob o véu e, então, a voz como o vento é ouvida, um breve, mas intenso pedido:

Faça-me dormir, vatth’ger.

— Ela pediu para fazê-la dormir, Geralt. – Ciri traduz em um murmuro.

Respirando fundo e assentindo, o witcher aumenta a força com que segura o colar de safira, o poder sendo evocado e fazendo com que chamas nasçam entre os dedos enluvados, engolindo a joia com uma poderosa fome. Os olhares do Lobo e da Andorinha retornam para a aparição a tempo de verem o branco vestido começar a se despedaçar como um quebra-cabeça jogado no chão. Pouco a pouco, as peças que compõem a imagem de Inis se desfazem, o véu sumindo sob o soprar do vento e revelando írises tão intensamente azuis quanto o céu acima e tão brilhantes quanto todas as estrelas do firmamento. Belos olhos iluminados com uma gratidão que também se desfaz como uma última peça a cair.

— E agora? – Ciri questiona sentindo os olhos arderem com as lágrimas contidas, o peso da morte de Inis sendo sentido mesmo que a convivência tenha sido extremamente breve.

— Nós vamos para casa. – Geralt responde, aumentando a força com que segura a mão de Ciri e a guiando pelo caminho iluminado pelas aparições.

Kaer Morhen

Frio. Tão frio. O ar parece congelar mesmo que o corpo corra com toda rapidez por entre os corredores tomados pela neve. Gelo invade os pulmões, os envolvendo com o mesmo forte abraço com que cobre o chão da fortaleza, transformando-o em uma escorregadia armadilha que faz os passos derraparem e os braços colidirem com a pedra em uma tentativa de proteger o corpo contra o impacto. Gritos cortam o vento, ecoando com o tilintar de lâminas colidindo e o corpo se esforça para encontrar equilíbrio sobre o gelo e continuar a correr. Negros fantasmas cruzam a visão, mas feitiços de fogo e impacto os afastam, abrindo caminho para que o pátio seja alcançado. A velocidade falha na neve que cobre o exterior da fortaleza e o impacto contra o branco tapete é friamente dolorido.

Outra voz grita e fantasmas voltam a aparecer, a visão lentamente conquistando foco o suficiente para reconhecê-los. Não são fantasmas, mas soldados. Cavaleiros Vermelhos. Um feitiço atinge os soldados, os empurrando para longe. A mesma voz grita novamente. “Continue correndo!” Medo invade o sangue e a mente, acelerando o coração e a retomada de equilíbrio. A corrida é continuada, mas por pouco tempo, um forte braço envolvendo a cintura e a puxando contra um corpo coberto por uma dura e fria armadura. Por mais tentativas que sejam feitas, a liberdade não é conseguida, a força do toque que prende somente aumentando. “Não!” a voz grita parecendo chorar. A origem da voz é procurada e encontrada em meio a neve. Longos cabelos negros e olhos violetas, um pingente em forma de estrela que brilha com o poder que pulsa no ar, mas é bloqueado pela magia de outro.

“Solte-a!”

O corpo tenta ajudar a ordem, se contorcendo sob o toque que aprisiona, mas nada é conseguido. Olhos violetas brilham como os relâmpagos de uma tempestade e raios caem sobre a neve, mas os soldados são bem protegidos e bem treinados. O braço que envolve a cintura não solta, a força nem ao menos enfraquecendo sob a demonstração de poder. Os braços são esticados, tentando alcançar a dona da voz que grita e chora, que ordena e invoca a tempestade. A neve começa a cair e a cobrir o poder dos raios, assim com as írises violetas. O corpo se contorce, mas o braço que segura é forte demais para ser combatido.

Eredin.

O olhar se foca nos olhos violetas, na estrela que brilha com toda força. Por mais que as pernas chutem e os braços tentem alcançar, a imagem se torna cada vez mais distante. “Não!” Os gritos ecoam na mente, o choro das írises violetas encontrando reflexo nas lágrimas que queimam a face. A mulher grita, de novo e de novo, os raios tentando quebrar a barreira da nevasca e atingir os cavaleiros vermelhos, mas nada acontece. A pressão na cintura se torna cada vez mais forte, arrastando para longe, roubando. Os olhos violetas choram e a mulher grita.

E ela chama. De novo. De novo. E de novo. Sob a força que prende e arrasta, ela chama pela mulher de olhos violetas, mas não pelo nome que é conhecido pela mente.

Ileanna desperta com um pulo sobre o colchão, o coração batendo desesperado no peito e o corpo ainda tremendo com o eco da força sentida o prendendo no sonho. Lágrimas caem dos olhos dourados, marcando a face jovem com as trilhas que desenham sobre a pele clara. Mas nada disso é registrado pela mente inquieta, todo pensamento se voltando para uma única palavra, gritada com toda força e usada para chamar a mulher de olhos violetas. Para chamar Yennefer.

Mãe!