Trovão Do Leste

No Campo de Loivissas


O dia raiou mais uma vez em Fell Arget. A luz alaranjada do amanhecer rompeu o horizonte, lançando-se sobre a membrana azul de sua asa esquerda, acordando Saphira com um toque arroxeado gentil.

Movendo a asa, o dragão retirou a cabeça de sua cobertura aquecida e piscou. Debaixo de sua asa, algo se moveu. Eragon, seu parceiro-do-coração-e-da-mente, ainda dormia tranquilamente em seu sono acordado, recostado no encontro de sua asa e seu pescoço. Como gostam de dormir, esses bípedes, pensou com um bocejo. E então deu uma espiada à sua volta.

Estava enrolada estrategicamente com a cauda a um metro e pouco da borda da caverna, formando um cercadinho com seu pescoço para proteger os ovos que estavam no meio. Atrás de sua cabeça, os Eldunarí estavam empilhados contra a parede da caverna numa formação rochosa natural que impedia que os corações dos corações mais velhos da Alagaësia saissem rolando livremente ladeira abaixo da montanha mais alta já descoberta por elfo, urgal, humano ou anão.

Saphira olhou para a formosa pilha de Eldunarí atrás dela, pedras preciosas cintilando à luz laranja da manhã, e tocou de leve as consciencias dor dragões. Eles ainda pareciam estar repousando do árduo trabalho que fora doar energia para ela mesma para carregar mais de cem ovos de dragão e mais de duzentos Eldunarí montanha acima.

Então voltou sua atenção para os ovos sob sua guarda.

Eles possuíam diversos tamanhos e cores, desde a altura de uma de suas garras até tão pequenos que Eragon poderia segurá-los com as palmas das mãos. Suas cores variavam dos de uma cor só, como um vermelho-sangue como Thorn, meio-irmão de Eragon, amarelo dourado como mestre-Glaedr e até azul, como ela mesma (Como ela se orgulhava dessa cor!). Haviam também alguns ovos misturados, como um ovo marrom com reflexos dourados, um preto com veias roxas, um que parecia com um pedaço perdido da lua, e até um verde-claro com manchinhas roxas que lembrava um arbusto de flores na primavera.

Então seu olhar parou em um ovo em especial e seu coração se enxeu de tristeza. Ele era todo verde com veias mais claras, caindo para o amarelo-dourado, quase âmbar. Como os olhos dele... Saphira nunca pensou que algum dia poderia se ligar tão profundamente a alguém quanto a Eragon. Mas quando o barco zarpou, um pedaço de seu coração ficou no cais. E nele, Fírnen se encaixava perfeitamente.

Na saudade profunda que sentia, Saphira fechou os olhos e tentou extender sua mente até Ellesméra, na esperança de encontrar o conforto da mente de Fírnen, mas seu esforço mental caiu a apenas alguns quilômetros de Fell Arget, como se tentasse segurar um tronco de árvore pelas raízes; a copa sempre ia ao chão.

Saphira abriu os olhos e soltou uma baforada de fumaça pelas narinas de frustração.

Abaixou a cabeça e estava quase dormindo novamente quando ouviu um leve toc, como se alguém batesse na porta com luvas. Uma imagem engraçada lhe ocorreu: um alpinista perdido e todo agasalhado, batendo os dentes, batendo na porta da montanha só para descobrir que se tratava da porta para uma caverna com um bando de dragões dentro. Bando de dragões? Trovão, trovão de dragões, se lembrou da Bruxa Angela lhe falar.

Mas espere... Eles estavam numa montanha, não havia porta alguma!

Ela levantou o pescoço, alarmada, apurando os ouvidos e então... Nada. Não haviam intrusos na caverna.

O dragão azul pousou novamente a cabeça, e o sono a ia dominando...

Toc.

Dessa vez não reagiu com alarme, e ignorou o som, olhando para os ovos mais uma vez.

E ficou maravilhada. A luz laranja da manhã passou através dos ovos e revelou a silhueta de cada um dos pequenos dragões dentro das cascas.
Algo se agitou dentro dela naquele momento. Algo mais primitivo e primordial do que o próprio medo da morte, um sentimento mais profundo do que o mais brutal dos instintos de sua própria sobrevivência.

A emoção era tão forte que lhe fugiu dos limites de sua própria mente, se esvaindo para a de Eragon. Algo se remexeu novamente debaixo de sua asa esquerda.

Bom dia, Saphira.

Bom dia, pequenino...

Tudo bem com você?

Ahn?... Ah, sim, claro.

Saphira fêz o que pôde para mascarar sua saudade de Fírnen e aquele sentimento estranho e defensivo em relação aos ovos e seus pequeninos, mas Eragon a conhecia bem demais para não saber. E a conhecia o suficiente para dizer quando ela queria seus próprios pensamentos. O Cavaleiro retirou-se parcialmente da mente de seu dragão.

Então, o que temos para fazer hoje?, perguntou Saphira.

Primeiro podemos contatar Arya e contá-la sobre Fell Arget e como nos instalamos, depois podemos explorar as redondezas para ter uma ideia de tudo: estruturas defensáveis, estoque de comida para os dragões, proximidade do oceano... E por ai vai, disse Eragon.

Bom, então temos um plano. Temos que acordar os elfos, eles também podem nos ajudar procurando nos arredores por comida. Eu não como descentemente desde o banquete de Orik...

Tudo bem, vamos descer. E lançou um feitiço para proteger os ovos e os Eldunarí de qualquer intruso e do clima na montanha.

Quando chegaram ao lago Oromis, os elfos já estavam acordados e juntavam suprimentos para o café da manhã.

Eragon explicou suas intenções para o dia e teve o desjejum com os eles. Logo depois, arrumaram uma pequena bacia com água e chamaram por Arya.
A imagem tremeluziu e Arya Dröttning apareceu na superfície da água. De costas, somente seus longos cabelos eram visíveis, mas quando ela se virou, Saphira sentiu Eragon arfar. Ela estava usando um vestido branco com detalhes verdes espalhados pelas bordas e mangas que caíam longamente a partir do cotovelo. Ela segurava um rolo de pergaminho semiaberto e o estudava profundamente, o cenho franzido sob a tiara de prata com a esmeralda em forma de lágrima que a ostentava, realçando seus olhos verdes. Assim que Arya os notou, se virou em surpresa e, antes que alguém dissesse algo a mais, Eragon iniciou o cumprimento formal dos elfos, o qual foi retribuído por Arya. Pelo elo mental entre eles, Saphira sentiu a dor crescente no peito de seu parceiro, mas viu como este mantinha o rosto neutro. Finalmente, ela falou:

- É bom ter notícias de vocês, e também vê-los vivos.

- Você duvida da nossa capacidade de se defender? – Eragon perguntou.

- Não, só duvido da sua capacidade de se manter longe de problemas – ela retrucou, lançando um olhar para o dragão azul.

Saphira riu baixinho, no fundo da garganta. Eu te disse que era verdade.

- Enfim, vocês conseguiram encontrar um lugar bom para gurdar os ovos e treinar a nova geração?

- Sim, e você não vai acreditar como é. - Então Eragon lhe contou sobre os três novos rios que haviam encontrado, os dois novos lagos e, é claro, Fell Arget.

- Nossa!, isso é ótimo. Mas vocês não têm instalações adequadas para manter mais de cem dragões e vinte e seis cavaleiros, e ainda haverão mais, presumindo que mais ovos vão ser colocados sob os feitiços para serem dragões de Shur'tugalar.

- Sim, nisso você acertou.

- Então posso tentar enviar elfos engenheiros para essa Fell Arget em que está. Podemos fazer um projeto em que os elfos...

- Não - ele a cortou.

- Como?

- Não, tem que ser um trabalho conjunto, senão o feitiço para unir as raças terá sido em vão. Temos de chamar as quatro raças para trabalhar juntas nisso. Entrarei em contato com Orik, Naz Garzvogh e Nasuada para a convocação de engenheiros e construtores. Temos que fazer isso juntos.
Saphira temia que Arya começasse a protestar mas a Rainha somente assentiu e disse:

- Você está certo. Como Líder dos Cavaleiros, agora é sua responsabilidade reunir as raças sob uma só causa e fazê-las trabalharem juntas por ela. Reunirei meus melhores arquitetos e engenheiros e os enviarei até Fell Arget. Onde você acha que pode estar essa montanha em relação a Du Weldenvarden?

A Nordeste de Ellesméra. Eu me lembro do rio Edda se juntando com o Vrangr, mas seguir por ai vocês fariam uma volta desnecessária, então sugiro que sigam de Ellesméra até Sílthrim e sigam de barco até o extremo norte do lago Eldor, atravessem a planície e chegara a uma cordilheira. Sigam-na para nordeste e encontrarão o rio Vindr. Siga-o até o lago Oromis, que é onde fica Fell Arget. Do Oromis não vai ser difícil achar a montanha.

Eragon pareceu surpreso pelo trajeto traçado por seu dragão, que fez um sinal com a cabeça como quem diz "Vá logo", indicando a bacia com água. Ele repetiu as instruções de Saphira para a Rainha dos Elfos, que concordou com o plano do trajeto até o novo ninho dos Skulblakalar.

***

Bem, hoje foi interessante, disse Saphira.

O dia havia sido qualquer coisa, menos entediante.

Eles haviam encontrado, entre muitos outros achados, um rio subterrâneo sob Fell Arget que desembocava em um lago na base da montanha, traçando um riacho por toda a cordilheira, que por sua vez formavam mais dois lagos em seu caminho para fora das montanhas. Seguindo por este rio, encontraram uma passagem que saía da cadeia de montanhas e se encontrava com outro rio, dobrando sua extensão e espalhando-se num delta para o mar, a leste.

Ao norte, encontraram a nascente do segundo rio. Este nascia em uma caverna estranhamente encrustrada na escosta do braço de montanhas a nordeste de Fell Arget. À luz do pôr do sol, a caverna adquiria uma lumnescencia estranhamente familiar para ambos. Como a luz do dia se esvaía rapidamente, resolveram explorá-la no dia seguinte, ou no próximo. Eles tinham a eternidade para fazê-lo.

Mas no momento, tudo o que queriam era uma boa noite de sono.
Um raio de luar se projetava da entrada da caverna pousando suavemente nos ovos de dragão. Saphira se largou no chão da caverna com um estrondo. Ser dragão cansava...

Estava prestes a cair no sono quando...

Toc.

O alpinista resolveu voltar e tentar tocar em sua porta de novo. Saphira levantou a cabeca, alarmada. Novamente aquela emoção estava presente, e dessa vez com toda força.

Saphira, o que foi?, perguntou Eragon, que estava consultando os Eldunarí.

O que ele recebeu de volta foi uma mistura de emoções selvagens e concentradas, fazendo-o recuar com sua mente.

O dragão azul se levantou e andou até os ovos, colocando a língua para fora e provando o ar sobre eles. Algo importante estava acontecendo. Ela cheirou o ar novamente. Algo muito importante estava acontecendo. Apurou os ouvidos e se aproximou de um ovo em especial. Um de tamanho médio, todo uniforme, polido como devia ser, azul escuro como a meia noite, azul como uma...

Seu pensamento morreu com a lembrança de um dos achados do dia, um lugar situado ao sul de Fell Arget, próximo do lago Oromis...

Seu instinto foi maior do que qualquer bom-senso que Eragon ou ela mesma pudesse ter.

Saphira pegou Eragon pela gola de seu pescoço, colocou-o em sua sela e recolheu o ovo azul-escuro com as garras o mais delicadamente que pôde.
Eragon só teve tempo de amarrar as tiras da perna direita antes que Saphira se lançasse no ar noturno mirando o sul do lago Oromis.

Pousaram no extremo do lago, no meio do campo de flores que encontraram durante seu voo de reconhecimento em volta de Fell Arget. Saphira tomou cuidado para não usar a pata do ovo para pousar. Eragon saltou da sela, receando perguntar algo a ela.

A fêmea de dragão depositou cuidadosamente o ovo no meio das flores azuis-escuras, que se mesclavam com o tom do ovo.

Saphira o olhou com tanto carinho, com tanta gentileza, e esses sentimentos preencheram tão profundamente sua mente, que foi difícil para ela até escutar os pensamentos de seu parceiro-do-coração-e-da-mente sendo enviados para os outros elfos, pedindo que eles chegassem lá o mais rápido possível com o barco.

Então... toc.

Dessa vez foi mais alto do que os outros tocs que ouvira antes. Então outro toc, e, de repente, uma fina rachadura se formou na surperfície do ovo, se expandindo para os dois extremos dele. Saphira prendia a respiração, assim como Eragon. Mais uma rachadura apareceu no ovo, formando uma nascente de onde rios partiam pela casca.

A ponta de um pequeno focinho apareceu no meio do encontro das rachaduras. Toc. A cabeça havia saído. Então o pequeno dragão esticou o pescoço, quebrando a borda do ovo, fazendo com que ele mesmo caísse para fore dela. Eragon soltou uma risadinha.

Então aconteceu uma coisa que nenhum deles esperava: Saphira esticou o pescoço e começou a lamber o pequeno filhote azul, retirando a membrana que o envolvia.

Com gentileza, tocou a mente do pequenino, ele era tão pequeno...
Ele? Era uma menina! Era uma pequena dragão fêmea azul! Como ela era quando eclodiu para Eragon... Só que essa dragoazinha era selvagem, ligada a ninguém a não ser ela mesma...

Quando a pequenina estava limpa, ela tentou ficar em pé e esticou o pescoço, tentando tocar a maior. A maior abaixou-se e tocou a pequena com a ponta do focinho e fez um carinho no filhote, que retribuiu com um ronronar prazeroso.

Ouviu atrás de si um barco se aproximando e os elfos saltando dele, mas sendo parados por Eragon, que disse algo como "É algo que ela quer fazer sozinha".

Depois de alguns minutos de carinhos entre filhote e mãe adotiva, Eragon se aproximou um pouco.

Eragon, perguntou com a mente mais em paz do que nunca esteve, como é o nome dessas flores?...

São... Loivissas...

E os elfos fizeram uma reverência conjunta à pequena dragão, a primeira a nascer sob a guarda de Fell Arget, livre de Galbatorix e nas novas terras além da Alagaësia.

À pequena flor a nascer no campo de Loivissas.