Trovão Do Leste

A Estrela da Manhã


***

Treze anos depois

***

Darold não costumava acordar tarde. A ele lhe agradava muito o amanhecer. Era alguma coisa mágica que o fazia levantar-se todos os dias, sair de sua casa na periferia de Illiera, subir numa das torres de vigia da muralha próxima e observar o Sol sair preguiçosamente de seu colchão de terra e nuvens.

Mas havia algo de errado naquele dia: Darold dormiu demais.

Fatídico dia escolhido para dormir.

Lentamente, Darold abriu os olhos e encontrou-se encarando o tecido de seu lençol manchado de luz amarela. Arregalou os olhos, percebendo que o Sol já havia nascido e sentou-se, alarmado. Ao olhar pela janela, constatou que o sol já saíra pelo menos um quarto de seu esconderijo noturno.

Na cama ao lado, viu o volume do traseiro de Dae, que dormia sob o cobertor. O tecido subia e descia com a respiração calma de seu irmão, totalmente alheio ao atraso do maior.

Em um pulo, livrou-se do lençol e correu para a outra cama. Sacudiu o ombro do irmão, chamando:

– Dae, acorde! – Darold chamou, mas se não fosse por sua respiração, Dae poderia muito bem estar morto – Vamos, preguiçoso! Levante! – ele recebeu como resposta apenas um grunhido de negação. Dae enterrou-se mais fundo no travesseiro.

Talvez precise clarear os pensamentos..., pensou ao dirigir-se para as cortinas e abri-las com um puxão.

– Aaghhh! – foi o que obteve de Dae quando este escondeu-se da luz repentina no lençol.

– Chega, Dae! Já dormiu demais! – insistiu enquanto fazia questão de abrir as janelas com bastante barulho, mas o menor continuava indiferente, até mais sonolento que antes.

Sem paciência, arrancou com um puxão o cobertor do menor.

Dae encolheu-se sob o ar frio da manhã. Sob os cabelos embaraçados, um olho se abriu. Estava vermelho de sono e contornado por uma olheira escura.

– Acordei – ele rosnou – Feliz?

Darold sorriu.

– Extremamente – ele gesticulou para a porta do quarto – Vamos logo! Senão nunca chegaremos lá!

Ele apressou-se em vestir-se com seu melhor par de calças, sua camisa branca de algodão puro, seu par de botas (que havia engraxado no dia anterior com muito esmero até que seus dedos ficassem lisos) e o colete marrom e azul que seu pai havia emprestado a ele. Em menos de dez minutos ele parecia um perfeito garoto de mensagens, aquele que os lordes e duques faziam questão de contratar em festas para mandar mensagens a pessoas que estavam a menos de vinte passos deles. Em pouco tempo, seu irmão também parecia um garoto de serviços, com a diferença de vinte centímetros de altura.

Olhando no espelho, Darold considerou o que fazer com seu cabelo, este bagunçado e embaraçado, um verdadeiro redemoinho de castanho acima dos olhos cinzentos. Tentou achatá-lo com os dedos para um lado, mas eles simplesmente voltavam à bagunça original. Frustrado, enfiou os dedos no cabelo e bagunçou-os mais ainda. Eles lentamente voltaram ao estado original, nem a mais, nem a menos.

Desistindo, olhou pelo espelho e viu o irmão lutando contra os botões de seu casaco. Dae abotoava o primeiro botão na casa do segundo e o terceiro na casa do quarto, amarrotando toda a camisa. Darold ajoelhou-se na frente do menor e ajeitou os botões do casaco.

– Não é tão difícil assim, certo?

Dae franziu a testa para ele, sem dizer nada.

A mãe de ambos deveria ter ouvido o estardalhaço provocado pelo processo de acordar Dae e a troca de roupa, pois apareceu no batente da porta e disse:

– Ah! Meus meninos! – exclamou. Abriu os braços e capturou a ambos em um aperto de urso – Meus pequenos vão se tornar Cavaleiros!

Dae se remexeu sob o abraço.

– Mãe! – reclamou - Não sou mais criança! – e escapou do aperto, puxando o casaco para baixo com a autoridade que os botões ajeitados lhe concediam – A senhora que se entenda com Darold.

Sua mãe lançou um olhar brincalhão para seu primogênito, que lançou um olhar mortal para o caçula. Dae encolheu os ombros em um gesto inocente. Darold sabia que não havia nada de inocente no irmão. Deu de ombros; não convenceria ninguém naquele momento, não enquanto houvesse um evento como a Seleção prestes a acontecer.

Só saíram de casa depois que sua mãe achatou o cabelo dos irmãos com um pente e um bocado de uma pasta gosmenta que pregou os cabelos de ambos para os dois lados da testa. Dois garotos foram enxotados para fora, atrasados, alisados e um tanto carrancudos.

Quando dobravam a esquina, ouviram a mãe chamá-los:

– Mandem um oi para Rissa por mim!

Sentindo as bochechas esquentarem, Darold respondeu:

– Pode deixar!

Por ser dia de Seleção, vários outros jovens saíam de suas casas em estados parecidos com o de Darold naquela manhã, o que tornou o grito seguinte ainda mais constrangedor:

– Eu sei que ela gosta de você!

Essa ele não respondeu, só abaixou a cabeça e apressou-se pelas ruas de pedra da capital, Dae em seu encalço. Darold enterrou os dedos no cabelo e os bagunçou novamente. Nem a mais, nem a menos.

Ao se aproximarem do centro, encontraram cada vez mais gente dirigindo-se para a cidadela, cujo castelo recebia durante aquela semana os Embaixadores do Leste. A surpresa? Um dragão os acompanhava. Era um Cavaleiro mais novo, humano, vindo, surpreendentemente, de Surda. Ele e seu dragão estavam em Illiera a menos de um dia, descansando da longa jornada das Terras do Leste até a Capital.

No conhecido trajeto até o conjunto de casas no centro de Illiera, Darold observava com atenção os vestidos um tanto bufantes das garotas pretendentes a Cavaleiras, esperando encontrar o rosto sorridente sob os olhos castanhos e cabelo cor de caramelo.

Aconteceu antes que ele percebesse: em um momento, considerava se poderia ser ela mesma sob aquela massa cacheada de cabelos claros precariamente equilibrados no topo da cabeça da garota que atravessava uma ruela à frente dele. No outro, uma voz conhecia perto de sua orelha – perto demais – dizia:

– Bu!

Darold quase deu um pulo para fora da própria pele, somente para virar-se e se deparar com o riso contido de Rissa e Dae combinados. Em um espirro, Dae explodiu em gargalhadas, o que somente tirou de Darold mais uma carranca naquela manhã. Ele olhou feio para a amiga e o irmão, mas logo um sorriso repuxou seus lábios para cima e os três andavam lado a lado até o castelo de Illiera.

Rissa foi a primeira a falar:

– Então, se atrasou hoje, Darold – pelo tom de voz de Rissa, Darold viu que uma piadinha queria se espremer no meio da conversa - Conseguiu dormir mais que o Sol. O que te segurou na cama hoje?

Ela abriu um sorriso, e nem mesmo a piadinha conseguiu impedir que ele sorrisse também.

– De verdade, não sei. Posso ter ido dormir muito tarde ontem – mentiu, pois tinha certeza do motivo. Darold não pregara o olho durante a maior parte da noite, a ansiedade e expectativa do dia seguinte eram muito presentes para que ele conseguisse dormir antes do começo da madrugada. Só conseguiu um pouco de descanso quando o céu começou a clarear em um tom calmante de roxo e a estrela que precede o Sol – Aiedail - pairou sobre a janela da cama de Darold.

Rissa assentiu, o humor momentaneamente esquecido, pois, Darold apostava, ela simpatizava com seu nervosismo.

Rissa franziu a testa e piscou, e Darold percebeu que seus cílios estavam bem maiores que o normal. Ela explicou, percebendo o amigo:

– Mamãe resolveu me arrumar para a Seleção. Acho que ela pensa que serei escolhida se meus cílios forem maiores – reclamou – ou se meu vestido for mais cheio que o normal – disse, e Darold observou com mais atenção o vestido rosa-claro que ela vestia. Realmente era desnecessariamente grande, como se ela estivesse com um bambolê sob a saia. Ao analisar melhor, a cor combinava bem com o cabelo claro de Rissa. Pensando bem, ela fica bonita naquele vestido. Darold pegou-se olhando para a amiga, enquanto ela o encarava de volta. Limpando a garganta, pensou em algo para falar, mas nada lhe veio à mente. Mas veio à de Dae.

– Mamãe bem que disse que vocês ficariam bem juntos – comentou distraído, como quem fala do tempo.

Ambos olharam para o menor. Rissa ficou da cor de seu vestido e desviou o olhar. Sentindo o rubor nas bochechas, Darold rebateu:

– Mais algum recado, mensageiro?

Ele fechou a cara.

– Não é justo, você está exatamente igual a mim!

Em outra ocasião, Darold teria respondido a reclamação do menor, mas a situação já estava constrangedora o suficiente.

– Só vamos logo, sim?

***

Darold não esperava muito da Seleção daquele ano. Evidentemente, em nenhum outro ele tivera sorte o suficiente para tocar um dragão recém-chocado. Era o segundo ano de seu irmão, mas ele também não se mostrara muito mais sortudo que ele.

Rissa também não parecia ser uma Cavaleira muito atrativa para os dragões por nascer. Ela já havia se apresentado a três Seleções, e Darold a quatro delas, mas ninguém na capital parecia muito apto a ser um Cavaleiro. Conforme os anos passavam, alguns perdiam as esperanças e preferiam não ir ao evento.

Por isso Darold se surpreendeu ao encontrar uma multidão barulhenta e desorganizada na frente do castelo de Illiera. Centenas de camadas de tecidos e corpos separavam o trio das portas da frente de madeira entalhada. Nos outros anos, sempre havia uma fila organizada que seguia pela rua em frente ao portão e entrava no salão principal, parando no outro par de portas – as famosas portas douradas de Illiera - que davam para a sala do trono, onde os Embaixadores estariam esperando com os ovos de dragão.

Refazendo mentalmente o caminho até lá, Darold disse:

– Certo, nessa multidão temos que nos manter juntos, senão vamos nos perder – olhou de soslaio para Rissa – Certo?

Ela devolveu o olhar e assentiu de leve.

– Certo.

– Certo, Dae?

Ele esperou a resposta do irmão, que viria de seu lado esquerdo... E nada.

Ao olhar para o lado viu que, no lugar do irmão, um gato grande e peludo estava sentado, lambendo calmamente uma pata. O animal olhou para cima com grandes olhos dourados, como quem diz: Quer alguma coisa?

O primeiro pensamento de Darold foi: meu irmão virou um gato.

Darold olhou para a massa de gente à sua frente. O segundo foi: ele é um irmão morto.

– Não, não, não... Ele não fez isso... – Darold sabia que poderia encontrá-lo depois que a comoção diminuísse, mas temia que ele saísse sozinho pelas intermináveis ruas de Illiera. Quanto tempo levaria até que encontrassem Dae novamente? Darold não esperaria para saber.

– Temos que encontrá-lo – disse Rissa – Eu vou para a direita e você para a esquerda.

Ela já se movia para frente quando Darold segurou seu braço: - Não! Assim vai ser mais difícil nos reunirmos depois; só vem comigo.

E juntos mergulharam na massa em movimento. As portas ainda estavam fechadas e isso parecia deixar a multidão cada vez mais impaciente, pois a cada segundo ficava mais difícil mover-se por entre as pessoas.

Darold procurava a figura baixa de seu irmão em meio aos ombros altos, totalmente ciente da palma macia de Rissa na sua enquanto a guiava por entre a massa.

Um sino alto e vibrante soou no ar. Com um impacto, as portas duplas de madeira se separaram e a multidão avançou para frente. Darold foi empurrado adiante, e, por um segundo, sua mão escorregou da de Rissa. Ele olhou para trás, tentando manter contato visual, mas a mancha rosa-claro de seu vestido sumiu de vista.

Mais forte que ele, pés, mãos, troncos e braços o empurraram para frente, e por um momento seus pés nem mesmo tocaram o chão. Ele foi sendo espremido e prensado por tempo o suficiente para ter certeza que sua camisa recém-passada havia sido arruinada e para ter ideia de como é não possuir pulmões. Então algo fez a multidão exclamar de surpresa e prensá-lo para a direta. Antes que pudesse protestar, foi empurrado para o lado por um cotovelo na altura das costelas. O impacto doeu, mas não tanto quanto aquele que sua cabeça recebeu ao bater na moldura da porta. Darold teve um segundo de pensamento claro antes de apagar, e tudo o que viu foi um rosto levemente borrado, flanqueado por um par de orelhas pontudas.

***

O teto de pedra parecia muito longe de Darold quando ele abriu os olhos. Não... Ele estava muito baixo, isso sim. Espere... Não, estava alto de novo. Uma onda de náusea piorou a vertigem, mas assim que passou, ele pode constatar que o teto finalmente estava parado, não mais que a quatro metros de altura de onde estava deitado.

Mas... Onde ele estava exatamente?

Vagamente ciente da luz crepuscular - pois era muito alaranjada para ser de manhã - que penetrava as janelas envidraçadas do cômodo, Darold tentou situar-se no mundo. Olhando pela janela, retraiu-se com a luz forte, mas conseguiu identificar uma das torres de vigia em forma de cilindro singulares do lado norte da cidade. Estou em Illiera, a frase veio devagar, como se estivesse dormindo ainda. Agora é só descobrir onde...

Darold pôs-se sentado e arrependeu-se amargamente por tê-lo feito. As janelas, paredes e teto – novamente – pareceram girar num eixo frouxo em sua cabeça. O sangue subiu rápido demais e fez sua cabeça pulsar dolorosamente.

– Oh, má ideia – uma voz masculina veio de trás de onde estava. Virando a cabeça devagar, Darold focou os olhos em um homem sentado em uma cadeira perto da cama onde estava. Mesmo sentado ele aparentava ser alto, cabelos escuros e olhos castanhos claros o suficiente para se passarem por dourados – Já tive uma concussão, e a última coisa que deveria fazer é ficar chacoalhando a cabeça; tente manter o que sobrou de seu cérebro aí dentro.

O homem levantou-se e dirigiu-se até Darold, que recuou diante da presença que o outro impunha. A despeito disso, ele sorriu e estendeu uma mão para Darold apertar. Estranhamente, era a esquerda.

– Sou Ivo Ernson – Ivo deve ter percebido que Darold não aceitaria sua mão, então disse - Eka aí fricai un Shur'tugal.

As palavras pareceram desencadear um calafrio na espinha de Darold, que olhou a palma ainda estendida do homem e viu uma marca em espiral atravessar a base do polegar e para cima, na base dos dedos. Seu olhar vagou até o rosto do homem, e ele reconheceu as orelhas pontudas. Apesar disso, suas feições eram muito arredondadas para ser um elfo.

Cavaleiro...

Darold aceitou a mão e apertou-a. Ivo puxou sua cadeira para mais perto da cama e sentou-se.

– Então, você é um dos aspirantes a Cavaleiro que vieram tentar a sorte hoje, certo?

Darold concordou com a cabeça. Limpando a garganta, perguntou ao Cavaleiro:

– Ah, senhor? Onde estamos?

– Oh, no castelo de Illiera, não percebeu? – Ivo respondeu com uma naturalidade que fez o jovem sentir-se meio lerdo.

– Sim, mas... Como eu vim parar aqui? – insistiu.

– Ah, foi aquela correria para entrar. Você é a prova viva que deveriam ter organizado a fila melhor.

– Certo, mas onde estou?

– Em um dos quartos da enfermaria, ala Noroeste, para ser preciso. E eu estou aqui para certificar que você acorde.

Darold olhou em volta e notou uma porta onde antes a cadeira de Ivo estava. Encostada na parede estava uma espada amarelo-dourada.

– Não entendo o porquê de todo esse alvoroço – Ivo comentou, parecendo um tanto irritado com a comoção de mais cedo – Tanta cerimônia para nada... Ninguém foi escolhido mesmo! – Ivo encarava a janela e as ruas mais além. A luz do fim do dia lançava um brilho tenebroso nos olhos do Cavaleiro, que agora brilhavam alaranjados - Como se alguém daqui fosse ser escolhido por um dos ovos - ele olhou de soslaio para Darold, como se lembrasse de sua presença só naquele momento – Sem ofensa, mas ninguém é selecionado nessa cidade há anos.

Para Darold, ele parecia mais aborrecido com o posto de babá que haviam lhe dado.

– Olha, eu realmente tenho que voltar para casa e... - a frase parou abruptamente na garganta. Em casa? Dae! Onde ele estaria? E Rissa? Estariam bem? Ele tinha que encontrá-los.

– Mas não pode! – Ivo Ernson disse, levantando-se. Darold sentiu uma agulhada de medo. Aquele era um Cavaleiro; ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse.

– Não posso? – Darold perguntou em voz pequena.

– Não. Não sem antes ser testado, é claro – ele ergueu uma sobrancelha – É para isso que você veio, certo? Para se apresentar aos ovos de dragão.

Darold tinha se esquecido dessa parte.

– Então, vamos?

Sem esperar uma resposta, Ivo marchou para a porta, recolheu a espada e deixou o quarto, seguido por um Darold um tanto atordoado.

Eles seguiram por um corredor pontilhado de portas de quartos de enfermaria. Todas as portas estavam fechadas, menos a última do corredor, que estava entreaberta. Darold passou muito rapidamente por esta, mas por tempo o suficiente para capturar um brilho dourado pela fresta da porta. Era um olho enorme e brilhante, felino.

Darold reprimiu uma exclamação e apertou o passo.

Depois de uma série de curvas por intermináveis corredores, mais tapeçarias do que podia contar e portas demais para sua mente humana, chegaram a um par de portas duplas. Ivo abriu-as e adentrou o amplo salão por trás delas. Era o salão principal. E, de certo, eram as portas douradas que guardavam a sala do trono.

Ivo Ernson andou confiante até as portas douradas e fez um movimento amplo com a mão, enquanto murmurava mais daquelas palavras que faziam os pelos da nuca de Darold se eriçarem. As portas se destravaram com um clang, mas moveram-se sem ruído, o que tornou a cena dentro da sala seguinte ainda mais sinistra.

Havia um trono no fundo da sala, sobre uma rodada de degraus baixos sobre o piso de mármore polido. Era uma cadeira alta e ampla de estofado vermelho e pintada de dourado.

Porém, o que mais impressionava não era o trono, mas os quatro pedestais ao pé das escadas. Eram quatro suportes de madeira forrados com um acolchoado de veludo vermelho. Sobre cada um deles, descansava um liso e imaculado ovo de dragão.

Hipnotizado pelas belas pedras vivas, Darold olha por cima do ombro para Ivo e faz uma pergunta silenciosa: Posso?

O Cavaleiro estendeu uma mão para os ovos em sinal positivo e Darold se aproximou.

O mais à frente era relativamente grande, de um tom de azul aquático, como luz atravessando a água de um riacho de cima para baixo numa floresta verde.

Ao estender a mão para tocar a casca, Darold surpreendeu-se com o calor que vinha dele. Esperou por alguns segundos, mas nada aconteceu. Muitas vezes ouvira falar que encontrar um ovo de dragão seria como apaixonar-se: você saberia na hora se fosse para ser. E Darold sabia bem como era o não de um dragão. Porém, uma vez ouvira uma história sobre como você saberia que era você o escolhido. Nenhum brilho mágico, nem fogos de artifício. Simplesmente saberia.

E Darold soube que aquele não era seu dragão.

Moveu-se para o próximo, um ovo branco leitoso, de aparência meio doentia. Era cruzado por veias rosadas sob a casca, como a pele pálida de um homem doente. Tocou o ovo, mas não foi como o calor do último, este parecia fraco, como se o filhote dentro dele estivesse resistindo a uma enfermidade. Esperou... E nada.

O ovo mais à esquerda parecia mais promissor. Este era de um bronze brilhante, quase ofuscante sob a luz moribunda do dia findando. Este parecia quase como uma gema feita de cobre e bronze. Darold tocou-o, mas sem resposta.

Foi quando aquele sentimento de decepção abateu-se sobre ele. Mais uma vez. Todo ano, ele sabia, milhares de jovens perdiam as esperanças de mudar sua vida ao tornarem-se Cavaleiros. Somente um ou dois dragões nasciam por ano, e raramente eles escolhiam seus parceiros entre os humanos. Os elfos, claro, eram os favorecidos do acordo. Os mais belos ovos eram mandados para Ellesméra, enquanto os pobres humanos ficariam com os rejeitados e doentes, como o ovo branco no pedestal anterior.

Por um momento, considerou sair do salão, deixando Ivo e o ovo para trás, simplesmente porque não queria participar daquele esquema de subalternação dos elfos e do líder Cavaleiro, mesmo sem saber direito o que subalternação queria dizer.

Mas... Um último raio de luz piscou através da janela envidraçada, refletindo no último ovo no salão. Era prateado, só que em um tom mais sutil, como aço escovado. Sombreados de lilás mui claro dançavam nas bordas arredondadas do ovo. Ele parecia o céu em suas nuanças mais sutis na luz que precede o amanhecer. Angvard o tivesse, parecia a própria Estrela do Amanhã.

Em uma espécie de transe, Darold estendeu os dedos na direção do ovo com uma urgência que não sabia possuir. Ele tocou o ovo, o calor esquentando seus dedos trêmulos... Não houve resposta.

Ele recolheu a mão, o bloco de frustração finalmente assentando-se em seu estômago. Não, ele sabia desde o início que seria assim. Nunca seria escolhido, não ele, Darold Drenanson, o filho do carpinteiro e ex-soldado Drenan Brananson. Ele, que vivia na periferia da capital, sem ao menos conseguir pagar os tributos necessários para que a família seguisse com o humilde comércio no mercado local.

Bem de longe, ouviu a voz de Ivo:

– Desculpe-me, rapaz. Não foi dessa vez.

Ele já conduzia Darold para as portas douradas novamente quando ouviram a voz.

– Não, espere - Darold virou-se rápido, trazendo a dor de cabeça à tona. A voz parecia vir das próprias sombras da sala, mas quando uma figura saiu do canto perto do último ovo, Darold quase preferiu que fosse uma voz desencarnada. Era alta, escura a tal ponto que Darold achou que usava uma capa negra, ou fosse até mesmo um homem das tribos do sul, como era a Rainha. Mas, na verdade, era um homem coberto de pelos.

Um elfo, corrigiu-se ao notar as orelhas pontudas. Isso em nada mudou o fato que a figura assombrosa agora se movia para o pedestal do ovo prateado. Um instinto mais forte do que ele impulsionou suas pernas para frente, fazendo Darold estender uma mão na direção do ovo.

O elfo piscou, surpreso, e simplesmente estendeu uma capa de pano sobre o ovo, fechando-o em uma bolsa.

– Acredito que este seja seu - disse ao estender a bolsa cuidadosamente para Darold - assim como você é dele agora.

A voz de Ivo brotou perto do ombro de Darold sem aviso, a própria com um alerta incutido.

– Não há como ter certeza, Blödhgarm.

Os olhos do elfo faiscaram em fendas oblíquas.

Ele depositou delicadamente o pacote nos braços de Darold.

– É exatamente por isso que teremos que descobrir.

***

O caminho para casa passou como um borrão para Darold, que mal enxergava alguns metros rua à frente para não tropeçar e quebrar o ovo, mesmo sabendo que eles não eram facilmente destruídos. Isso não o impediu de apertar o ovo contra o peito a cada movimento nas sombras.

Caminhar pelas ruas de Illiera depois de anoitecer não era algo exatamente seguro, por mais reforçada que a vigilância fosse, especialmente com a chegada dos Embaixadores e muito menos se você fosse um garoto andando por aí com um ovo de dragão desprotegido. E até mesmo o elfo Blödhgarm e Ivo, que pareciam discordar em muitas coisas, tiveram o bom-senso de concordar em mandar um grupo para proteger o ovo até a casa de Darold. Depois de alguma discussão, Ivo insistiu em escoltar o jovem de cima, sobre a cidade em seu dragão Miremel.

Se olhasse para cima, ainda podia ver a silhueta enorme tampando as estrelas em espirais protetores sobre sua cabeça.

Ao chegar à porta de sua casa, quatro pares de olhos ansiosos e preocupados fixaram-se nele no batente da porta. O abraço de urso daquela manhã voltou a envolvê-lo e ao ovo quando sua mãe o apertou, perguntando o que havia acontecido. Mais perguntas brotaram de todos no local, mas todas as vozes se calaram com a chegada da figura alta na cozinha da casa.

Ivo sorriu para os presentes.

– Só vim deixar o jovem aqui em casa em segurança. Está tarde, é melhor eu ir.

E foi-se embora, somente uma lufada de vento forte marcava sua partida.

Foi quando Rissa o abraçou.

– Darold! Ficamos muito preocupados – ela disse perto de seu ouvido, pouco antes de soltá-lo, percebendo a proximidade excessiva – Onde esteve?

De forma resumida, Darold explicou como se perdera de Rissa e do irmão, como acabara batendo a cabeça e tudo o que se sucedeu desde então.

De repente, todos estavam focados no pacote precioso nos braços de Darold. Fez-se silêncio.

– Posso ver? – É claro que foi Dae, um pouco chateado ainda com a escapada do irmão.

Porém, quando pôs em perspectiva mostrar o ovo para os presentes, percebeu que não queria expô-lo assim.

– Desculpe, mas hoje não – disse, subitamente ciente da dor horrível em sua têmpora. De súbito, todo o mundo pareceu estar se movendo em cera quente, lenta e dolorosamente – Acho que preciso dormir. Posso me retirar?

– Oh, claro, filho – sua mãe foi a mais hábil em perceber a situação – Pode ir para seu quarto.

Sem dizer mais nada, Darold deixou o cômodo e foi até o quarto, seguido por seu irmão, mas quando fecharam a porta atrás de si, ouviu um murmurinho de mãe e filho do outro lado da porta.

Deu de ombros e se ajeitou para dormir. Quando se sentou em sua cama, com o ovo à sua frente, desembrulhou-o com mãos trêmulas. A casca parecia emitir uma luz própria, como se já fosse manhã. Puxando um travesseiro da cama do irmão, ajeitou-o na cadeira e depositou o ovo em cima deste.

Sua cabeça parecia pesar o mesmo que um saco de farinha molhado, por isso deitou-se devagar, virado para o ovo, e adormeceu perdido nos tons de amanhecer.

***

O Toc-Toc parecia vir direto de dentro de seu crânio. Em certo ponto da madrugada, Darold simplesmente não aguentava mais as batidas insistentes do sangue em seu cérebro. Como se as batidas não fossem suficientes, um zunido baixo e insistente brotou do ponto oposto àquele que a dor de cabeça vinha.

Ele se virou na cama, e esta rangeu longamente em seu ouvido, piorando a pulsação na têmpora. Foi quando ouviu o primeiro crack.

Certo... A menos que seu crânio estivesse rachando ao meio, isso não havia sido a dor de cabeça.

A lembrança do dia anterior voltou com força o suficiente para que seus olhos se abrissem em alerta.

Quando olhou para o lado, auxiliado pela levíssima luz do antes do amanhecer, o ovo balançava de um lado para o outro de forma quase temerária. De fato, depois de mais uma sacudida, o ovo caiu no chão com um baque seco.

Contendo uma exclamação, Darold correu para acudir o ovo, mas esse chacoalhou mais uma vez e ficou imóvel.

Silêncio.

Toc.

A rachadura apareceu antes que Darold pudesse impedir. Como o faria, ele não sabia, mas qualquer coisa que desse errado com o ovo seria culpa dele, e ele mesmo não sabia se se perdoaria se algo acontecesse ao ovo.

Nada havia para se fazer enquanto o ovo rachava e se desmanchava. Mas isso lembrou a Darold que o que importava não era o ovo...

O dragão era prateado como a casca que o continha, mas cada pequenina escama parecia infinitamente mais preciosa que o invólucro do filhote. Ele brilhava sob a suave luz das estrelas a morrer sob a chegada do Sol. O pequenino tentava sem muito sucesso livrar-se da membrana que o envolvia. E quando finalmente conseguiu, virou seus olhos lilases para Darold.

Ele se perdeu naqueles globos oculares brilhantes. Por instinto, Darold estendeu sua mão para o filhote, e este encostou o focinho na palma direita do rapaz.

Uma corrente elétrica correu por seu braço acima. Por um momento, a dor em sua têmpora foi excruciante, sua visão ficou borrada e Darold achou que desmaiaria, mas então, assim como a dormência no braço, foi passando até tornar-se pouco mais que um incômodo. Ao colocar-se sentado novamente, encontrou o dragãozinho enroscando-se em seu colo, aconchegando-se para dormir.

Darold hesitou em tocá-lo novamente, mas quando o fez, o que recebeu de volta foi um zunido de satisfação. Ficaram assim por muito tempo, até que o primeiro raio de Sol encontrou com o último brilho da estrela da manhã.

Nesse momento, ele pulou de seu colo, como se esperasse essa deixa por toda a madrugada, e equilibrou-se no parapeito da janela. Acima de ambos, Aiedail brilhava uma última vez para os novos dragão e Cavaleiro da Alagaësia.