Perante a situação, o cerimonialista coçava a testa devido ao nervosismo. Jamais orientara uma mulher para um Ritual de Passagem, tampouco achava que um dia teria de orientar. Lábios crispados; os tons serenos das roupas femininas o incomodavam, assim como a face contraída da mulher a sua frente e a petulância que não a abandonara desde a batalha contra os Hunos. Bom, pelo menos não estava, mais uma vez, disfarçada de homem. O que a desobediente Mulan havia feito, em sua opinião, era degradante, nojento… Ah, são tantas as coisas que poderia pensar. Não importava se tinha ajudado a salvar a China. O lugar de uma mulher não era no exército empunhando uma espada, e muito menos em sua sala de cerimônias.

—“E, assim prometo, ser um líder justo para trazer honra a nossa família”.

— E, assim prometo, ser umA líder justA - enfatizou Fa Mulan — para trazer honra a nossa família.

— Está errado! — o cerimonialista vociferou. — Pare de mudar as palavras e repita os votos como falei!

— Mas eu sou uma mulher, senhor. — explicou a moça. — A não ser que o senhor prefira que eu não me pareça com uma. — meneou com a cabeça. — Se for o caso, posso pegar minha armadura em casa, prender meus cabelos e engrossar a voz.

— Silêncio! — o cerimonialista guinchou, irado. — General Shang, não quer dar um jeito nessa sua esposa?!

Os olhos do general, porém, estavam fixos num pergaminho; mesmo que a atenção não estivesse entregue ao mesmo. Shang se divertia quando, em alguma situação, surgia algum homem ou mulher que tentava dizer como Mulan deveria se comportar. Ela derrotara Shan Yu e salvara a China. Não poderia se comportar como bem quisesse?

— Perdão? — disse Shang, fingindo distração. — Oh, vocês ainda continuam a ensaiar?! Estão demorando bastante.

Discretamente, a jovem esposa pôs a mão rente aos lábios a fim de abafar o riso. Quando a face monstruosa do cerimonialista virou para si, Mulan flagrou, por cima do ombro do homem rabugento, o sorriso do marido. Com a face séria voltada para si, a moça abriu ao máximo os olhos miúdos e disse:

— Dou toda a razão a meu marido. — Mulan apontou graciosa para Shang. — E não entendo por que estamos demorando tanto com isso.

— Não entende o motivo, senhora Shang?

— Prefiro Fa Mulan, senhor. — disse a guerreira em vão, o cerimonialista se pôs a atropelar a fala.

— Estamos demorando por que a senhora não quer recitar os votos da cerimônia como devem ser.

— Ah, senhor cerimonialista, não tenho culpa se o senhor quer que eu fale como se me identificasse como um homem. — ela deu de ombros. — Porque estamos insistindo nisso há horas, não? Veja, sou mulher! Por que tenho que falar como se fosse um homem?

— Por que os votos da cerimônia são para homens!

— E o que isso tem a ver comigo? Sou mulher! — insistiu a moça, impaciente.

— Sou filhÁ, sou esposÁ. Veja meu rosto, veja minhas roupas, veja meu ventre. Sou mulher.

Uma lufada de ar escapou entre os dentes frouxos do ancião.

— A senhora nem deveria estar ocupando esta cadeira, só para início de conversa. — o cerimonialista continuou, mesmo que sua vontade fosse de baixar o cajado na cabeça daquela garota abusada. — Por que não tentamos com o senhor Shang?

— Por que o “Senhor Shang” não pode assumir a liderança de minha família. — o tom de voz aumentou. Mulan via como uma atitude necessária, já que havia explicado essa questão três vezes em menos de duas horas. — As escrituras dizem que na ausência de homens ou de filhos, deve-se assumir a filha mais velha. E a filha mais velha sou eu.

— Hum… — resmungou o velho. — Agora consigo entender o porquê da senhora ser tão estranha, senhora Shang. Em toda a China, quando os homens mais velhos deixam as famílias sem varões, o marido da filha mais velha assume. Porém, a sua família faz diferente. Deve ser por isso que a senhora é uma desonra.

— Toda a China se curvou diante de mim, inclusive o imperador. Como posso ser uma desonra para minha família?

— Ah, senhora Shang… Todos estavam apavorados com os Hunos e ao pensarem que a senhora foi a pessoa que os salvou, se curvaram… Mas é claro que, no fundo, todos sabem que uma mulher não consegue fazer nada além do que servir chá e gerar herdeiros. É um milagre que ainda esteja viva.

O estômago de Mulan se contraiu; e não era por conta da gravidez. O olhar severo da jovem pairou sobre a figura do velho cerimonialista, que pouco se importava com o peso das palavras que acabara de proferir. O barulho irado das mãos de Shang contra a mesa reverberou pela velha sala, fazendo os ombros do velho saltarem de forma sutil devido ao susto.

— Mais respeito com a minha esposa, senhor! Acha que eu não posso trazer meus homens e fechar esse casebre?!

— Casebre?! Escute aqui, general…!

Impossível, inadmissível continuar naquele lugar! As mãos pálidas e calejadas da moça levantaram o robe e, como um raio, disparou porta a fora. Aquela não era a primeira vez, segunda vez ou terceira vez que alguém a ofendia, mesmo depois do ocorrido com os Hunos. Mulan não nascera para ser apenas uma esposa que serve chás e fica parada no canto dos cômodos como um objeto de decoração. Desde de que subira o mastro com os dois pesos e agarrara a flecha, Mulan soube que seu destino estava em outro caminho. Mas como segui-lo, se a cada passo havia uma pedra jogada contra si?

O vento gelado passou direto pela garganta, apertando ainda mais o nó angustiado que ali residia. Toda aquela roupa estúpida, maquiagem idiota, regras imbecis! Mulan esfregou as mangas claras da roupa contra o rosto; certamente a ida para casa seria cheia de tinta borrada e lágrimas advindas da fraqueza momentânea. Como poderia assumir o posto do falecido pai se nem ao menos conseguia manter o controle sobre si mesma?

— Mulan! — Shang gritou pela esposa.

— Não me olhe! — avisou cobrindo o rosto. — Afaste-se, por favor!

— Mulan… — o marido disse sereno como a brisa que de repente soprou. Logo, as mãos também calejadas envolviam os ombros da moça. — Você não precisa dele para ser líder de sua família. Podemos fazer a cerimônia de outro jeito.

— Como “de outro jeito”, Shang? — Mulan sussurrou. — A cerimônia deve ser feita no salão dos ancestrais. Com que cara os ancestrais vão me olhar?

— Ouça, Mulan. — com delicadeza, o marido tomou as mãos na esposa, expondo o rosto manchado, pouco confiante e com o lábio inferior que tremia. — Se você é uma mulher, mas conseguiu seguir um caminho diferente do de outras mulheres, significa que seus ancestrais acreditavam que sua vida deveria ser vivida com outro propósito. Não é por um milagre que está viva; seus ancestrais a protegeram e a trouxeram para casa em segurança.

A imagem de Mushu fez os cantos dos lábios de Mulan se elevarem, mesmo que as lágrimas da moça continuassem tão longas quanto a escadaria que levava ao topo da montanha em que o casal se encontrava. Os tons do céu, misturados às nuvens brancas, pareciam desabar em cima da pequenina vila que residia ao pé da montanha. A atmosfera daquele dia lembrava-a de uma batalha específica contra os Hunos, que se encerrou com o exército abandonando a pobre Mulan na neve. A China não passava pelo inverno, mas a humilhação a qual acabara de passar era tão fria quanto o preconceito que fez a maior parte do exército virar as costas para si. Ao abraçar o marido, a jovem mulher sorriu triunfante; se a humilhação havia se transformado em vitória uma vez, poderia muito bem transformar-se em vitória de novo.


***


Mulan não estivera ao lado de tantos soldados se comparado a Shang, mas ainda assim não se recordava de conhecer um soldado que mantivesse o corpo e a mente em perfeita sintonia. Mesmo que o coração batesse ao ponto de doer, tudo o que se passava na cabeça de Mulan era o que seus orbes negros capturavam no salão dos ancestrais. O agudo balanço do chocalho estremecia a pele dos presentes. O Ritual da Passagem não era apenas mais uma entre as inúmeras cerimônias tradicionais chinesas; tratava-se do ritual que tinha como objetivo honrar a memória dos mortos e dar rumo ao caminho dos vivos. Fa Mulan sabia o peso que estava prestes a pôr sobre os ombros, assim como tinha em mente o peso da armadura quando a vestira pela primeira vez. Porém, naquele lugar, lâmina alguma poderia feri-la, inimigo algum podia se avistar, ninguém a abandonaria na neve por ser mulher; o que seria encarar a liderança da família depois de ter sobrevivido a uma guerra? Por um segundo, a mente de Mulan se permitiu divagar. Será que o pai da jovem Mulan um dia pensara o mesmo quando assumiu a liderança da família?

As vestes brancas se harmonizavam com a grossa camada de tinta branca que lhe cobria o rosto, destacando o vermelho nos lábios e os cabelos negros como a noite. Sentada e com as mãos sobre o ventre, a moça avistou o rosto enrugado da avó cujo corpo balançava no mesmo ritmo que o cajado portado pela anciã. Enquanto o som do chocalho cortava o ambiente, o rosto materno surgiu entre a escuridão, enigmático demais para Mulan ter certeza se aquele era um olhar de orgulho ou um pedido de perdão silencioso aos ancestrais. Os músculos do maxilar se contraíram, a espada aos joelhos pareceu sofrer com a ressonância provida do temor momentâneo da moça.

Por um momento, assim como o dia vira noite, o som virou silêncio.

O polegar da avó-cerimonialista mergulhou em um recipiente de tinta vermelha, carregado pela mãe de Mulan pelo salão dos ancestrais. De olhos cerrados, Mulan sentiu na testa cada movimento da avó formar o nome da família Fa, ao passo que a jovem esforçava-se para não permitir que as lágrimas se tornassem o centro das atenções. O perfume do incenso agarrava-se ao ar, Mulan tocava o filho no ventre e a energia dos ancestrais envolvia a moça num abraço embalado. Todos os perigos, rancores e angústias pareciam nunca terem existido, de fato; uma sensação que Mulan jamais pudera imaginar.

As mãos calejadas tomaram a espada, que possuía “Fa Mulan” cravado na lâmina. Conectados estavam os olhares da avó e da neta, análogos a uma conversa entre o passado e o presente. Mesmo com a pele ao redor tão enrugada, os olhos da avó sorriam. O cajado da anciã balançou uma vez; Mulan estava hipnotizada. E sacudiu mais uma vez.

— Menina. — sussurrou a velha.

— Hum?

— Os votos.

— Oh! — ao perceber que dobrada estava a atenção dos espectadores sobre si, Mulan sorriu amarelo na tentativa de aplacar a própria vergonha que quase transpassava a camada de tinta branca. — Hum… Vejamos. — ela sussurrou com a mão no queixo, em busca de recordar os votos. Logo, ergueu o indicador. — Ah, sim, lembrei! Eu, Fa Mulan, hei de erguer esta espada como protetorA de nosso sangue. — e assim fez, erguendo tanto a espada quanto o corpo. — Sob este teto e vossas presenças, prometo dar minha vida pelo clã, se necessário. E, assim prometo, ser umA líder justA para trazer honra a nossa família.

O silêncio pairou no ar mais uma vez. Nessa curta faixa de tempo, a jovem não pode deixar de fazer um bico aborrecido ao ver que o marido punha a mão na boca enquanto gargalhava o mais silencioso que podia. Os outros familiares, por outro lado, ainda tentavam entender o que havia acontecido. A avó soltou um suspiro e cochichou para si:

— Essa menina precisa arrumar um grilo da sorte.

Evaporada parte da vergonha, Mulan, ao ver a avó e a mãe tomando distância, lembrou que aquela era a última parte do Ritual da Passagem. Por cima do ombro a jovem encarou a espada do pai cravada na Pedra dos Fa, lugar onde se depositava a espada do líder do clã. Apertando o cabo da própria arma, a moça concluiu que o peso da liderança o qual carregaria pelo resto de seus dias seria infinitamente menor que tomar a espada do falecido pai em mãos.

Poucos meses atrás, antes do fatídico dia da passagem o qual o pai partiu deste mundo para outro, a moça vira os olhos do pai brilhando de entusiasmo ao saber que a família Fa ganharia mais um membro. Havia dias em que Mulan voltava para casa como se o pai ainda estivesse lá, a postos para depositar um beijo na testa quando a visse. A ficha não parecia cair, mesmo depois de tantos dias corridos após o óbito. Esse cenário deixava as coisas duras de se encarar; a retirada da espada seria como marcar a ferro quente que o pai da jovem Mulan já não pertencia ao mundo dos vivos e que jamais voltaria a dar um beijo na testa, aconselhá-la, ou ver seu bebê quando chegasse a hora.

Mais uma vez o chocalho preso a ponta do cajado da anciã cortou o ar com um agudo som.

— Agora é a hora, Fa Mulan. Faça a Passagem!

Ritmado, o chocalho balançou. Mulan fez questão de retirar todo o ar dos pulmões e, logo em seguida, injetá-lo todo novamente. Os olhos, de forma rápida, passearam pelo salão a fim de verificar se não havia qualquer obstáculo capaz de fazê-la tropeçar ou alguém que pudesse ferir durante os passos de dança, individuais de cada líder, até o momento da fixação da espada na Pedra dos Fa. O estômago cantava; Pedra dos Fa, pai morto, retirar a espada do pai morto. Ele estava morto. Tão morto quanto as flores da primavera que já haviam se transformado em pó.

De acordo com a rústica música tocada pela anciã, Mulan deu os primeiros passos em direção a Pedra dos Fa. A impressão de ser abraçada pela energia dos ancestrais voltou a atingi-la, assim como a sensação de que as estátuas dos guardiões da família rugiam em apoio. Corajosa, a moça ergueu o queixo e executou os dois primeiros giros, a espada com seu nome inscrito reluzia como nunca; assim como as inscrições nas Pedras dos Ancestrais, incluindo a que tinha inscrita o nome do pai da garota.

Frente a frente com a Pedra dos Fa, Mulan encarou a espada do pai com carinho. Ao conectar a palma da mão com o cabo da arma do pai, a mente de Mulan se inundou; vieram à tona todas as vezes em que tomaram chá juntos, todas as manhãs que alimentaram as galinhas e todas as vezes em que o pai de Mulan treinava e a menina, secretamente, o assistia. Retirar aquela espada seria confirmar o fato de que o pai da jovem se fora, mas, em contrapartida, a moça nunca o sentiu tão presente.

O toque se tornou mais intenso, a mão englobou o cabo da espada, forçando a lâmina a deixar a Pedra dos Fa, onde residiu por tantos e tantos anos. No fim, Mulan não empenhou tanta força quanto achava que teria de empenhar. Talvez ele esteja pronto para descansar por saber que cuidarei das coisas por aqui, ela pensou. Mulan encarou o metal opaco, que retribuiu com um olhar fraco e finalmente se apagou. Os lábios pintados tremeram; o peso da angústia lhe esmagava o peito e ainda assim, pensando no pai, suportou a fim de continuar com o Ritual da Passagem. Prosseguir seria o conselho que o pai de Mulan daria se ainda estivesse vivo. Afinal de contas, “prosseguir”, acima de tudo, era o objetivo daquele ritual. Não andar para frente sem recordar os passos dados mais atrás, mas caminhar com sabedoria, honrando as benfeitorias daqueles que já se foram, e reconhecendo os erros que não devem ser cometidos para o bem da família.

Mulan girou com as duas espadas na mão, como uma pétala de rosa que dança pelos ares na primavera chinesa. Aparentando estar tão leve, tão livre, mas na verdade com tanto pesar que o ar mal passava pela garganta. Tomando a distância necessária, Mulan cessou os giros e encaixou a espada na pedra; as costas em arco e o ventre protuberante apontando para o teto. O tempo parecia ter parado, e dentro dessa prisão encontrava-se uma lágrima que corria em liberdade pela camada de tinta branca do rosto da jovem.

Ao se por ereta, a mais nova líder da família Fa segurou a lâmina opaca do pai com as duas mãos. Diante de si, os familiares se curvaram em obediência e respeito. Mulan mordeu o lábio, emocionada, e logo em seguida ouviu um “psiu!”. Ao virar o rosto, deparou-se com a figura de Mushu, que se escondia atrás de uma das estátuas dos guardiões da família, fazendo um sinal positivo com as garras.

Com os próprios olhos, Mulan vira coisas se transformarem nos seus opostos. Vira o dia se tornar noite, o inverno se desabrochar em primavera, a sua derrota no exército se tornar a vitória de toda a China e vira a si mesma: uma mulher com um destino limitado se transformar na salvadora de seu povo e líder do próprio clã. No fim daquele ritual, quando nenhum mortal presente espreitava, as lágrimas de Mulan se transformaram em um sorriso.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.