Tormenta

Capítulo Único


Chovia. Era uma chuva raivosa, daquelas que enchiam as ruas com poças que as sarjetas, entupidas e imundas demais, não davam conta de escoar. Uma chuva que combinava perfeitamente com aquela noite.

E Jasper odiava a chuva. Odiava de uma maneira visceral, irracional até. Mas agora Jas não podia perder tempo traduzindo em palavras o que sentia em relação àquele temporal maldito. Agora sua preocupação era correr, o mais rápido que conseguisse, para qualquer lugar que oferecesse um mínimo de segurança — algo que ela, sinceramente, duvidava que existisse. Ao menos em relação... àquilo.

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Jasper corria descalça, os pés sujos espalhando água a cada passo largo, mergulhando na lama, numa mistura de esgoto, chuva e urina de rato. Ofegava, e estaria suando, se não fosse o temporal lhe encharcando a camisola colada no corpo. O peito subia e descia, de uma maneira que ela achou que fosse explodir. Seu coração não iria aguentar. Mas ela precisava continuar correndo.

Olhou para trás, vislumbrando apenas a rua vazia e escura. Diminuiu o passo, vacilante. Um misto de alívio e terror. Estava tão alerta e assustada que a sensação era de ter ingerido o dobro da sua dose usual de opioide. Era apenas a adrenalina, no entanto, que a intoxicava.

Viu uma sombra pelo canto do olho que quase a fez cair. Retomou o equilíbrio e a corrida, acelerando novamente pela calçada, cruzando a avenida deserta, quase tropeçando no meio-fio coberto pela enxurrada.

Uma igreja despontou no final da rua. Reconheceu a torre com a cruz no alto, a pequena escada que levava à porta de madeira, a estátua de um santo em uma das pontas. Uma pitada de esperança a atingiu. De todos os lugares, nenhum seria melhor do que uma igreja. Não que Jasper fosse cristã. Sequer havia sido batizada. Mas agora não era hora para rever as suas crenças.

Ela colocou toda a força possível nos pés ao partir rumo ao edifício. O coração parecia ter acelerado na mesma medida. Mesmo de boca aberta tinha dificuldade em respirar, em manter o ar nos pulmões. Os cabelos crespos, agora molhados, caiam pesados em seu rosto, e ela os afastava, afoita, enquanto mantinha o foco afixado no destino que se aproximava.

A sombra entrevista há pouco surgiu novamente. Apareceu pelo canto do olho, uma mancha negra encobrindo parte da iluminação pública. Uma forma física sem forma, tão agourenta quanto simplória. Uma uniformidade rudimentar feita apenas de escuridão. Jasper não sabia explicar, então apenas fugia. Fora apossada de um terror atroz, uma sensação inexplicável de que aquela mancha só poderia significar uma coisa.

Morte.

A igreja agora estava a um braço de distância. Ela subiu aos trancos a pequena escada principal e se jogou em direção à porta. Mas ela não cedeu. Chacoalhou-a mais um pouco e esmurrou a madeira maciça. Nada. Só então notou os grilhões que mantinham a entrada da igreja lacrada.

Gritou em desespero. Se virou com as costas para o portão, colando o corpo na madeira. De alguma forma, acreditava estar em terreno sagrado. De alguma forma, achava que talvez isso fosse suficiente. Girou o rosto para os dois lados, trêmula. A noite e a chuva deixavam a paisagem urbana escura, mas não escura o suficiente. Não tão escura quanto a sombra maldita que mais uma vez surgiu em seu campo de visão.

Ela bradou esganiçada, de horror e exaustão. Tentou procurar outra rota de fuga, mas, torpe, embaralhou-se nos próprios pés. O cansaço e o pânico a transtornaram de tal forma que o corpo demorou-se para reagir. Jasper foi ao chão.

E ali, nos degraus da igreja, Jasper urrou novamente. Tudo ficou preto quando a sombra se aproximou. Não se ouviu mais nada depois disso.

(...)

No hospital, o monitor cardíaco disparou. O alarme indicava uma alteração brusca na pulsação da paciente, uma agitação fora do comum. Os bipes alternados ecoaram por todo o corredor.

As enfermeiras foram as primeiras a chegar. O médico surgiu em seguida. Todos os procedimentos para normalizar os batimentos foram tentados, mas ninguém conseguiu aplacar a súbita arritmia — ou sequer entender sua causa. Aquela era a primeira vez que a paciente, em profundo estado de coma durante os últimos meses, tinha uma variação tão grande em seus sinais vitais. E sem nenhum motivo aparente.

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Mas o monitor enfim cessou o alarme intermitente, tão abrupto quanto como havia começado. O traçado na tela, antes irregular, se transformou em uma linha reta. O som contínuo indicou o óbito.

Jasper morreu na madrugada de uma noite chuvosa, no leito de um CTI que já a abrigava fazia cinco meses. Tinha os olhos vidrados e a boca retorcida.

E debaixo do lençol, pés molhados, sujos de lama.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.