Toques da Alma

Capítulo Único


Sentado em uma cadeira na cozinha o homem confortavelmente observava a mesa sem prestar atenção no que havia sobre ela. Os fones em seu ouvido tocavam uma suave melodia no piano. Eram toques gentis que lentamente aumentavam fazendo seu coração bater mais forte. E mesmo que fossem tão alegres a ponto de conforta-lo também eram dolorosos como uma despedida na tarde de primavera.

Sua mão se esticou até a caneca de porcelana a sua frente, seus dedos deslizaram pela alça sentindo o toque morno e liso. Com um impulso levantou o objeto trazendo para perto de seu rosto. Quase tocando os lábios observou o liquido escuro se movimentando e o vapor quente atingindo suas bochechas.

A luz do sol apareceu na janela ao seu lado chamando a atenção e o impedindo de prosseguir. Sua cabeça se inclinou para trás, seus olhos curiosos seguiram a luz encontrando pequenos fragmentos do céu azul aparecendo atrás das nuvens. Seu punho cedeu levemente tocando a caneca em seu peito sobre a blusa o fazendo suspirar. Voltando-se para frente sorriu gentilmente antes de tomar um longo gole.

O liquido quente desceu por sua garganta aquecendo seu peito. O sabor levemente adocicado espalhado em sua língua se misturava ao amargo forte do café. Aproveitando da paz rara naquela casa, fechou os olhos e suspirou mais uma vez.

— Ichi.

Absorto sentiu um dos fones caírem de sua orelha e logo em seguida uma voz tão agradável quanto veludo o chamou calmamente. Ele virou a cabeça encontrando o rosto do amigo inclinado ao seu lado segurando um dos fones em uma das mãos com o mesmo olhar de quem sempre sabia de tudo e o sorriso que raramente saia do canto da boca.

— Eu te chamei três vezes. – Devolvendo o item explicou esticando o corpo.

— Três vezes? – Retirando de vez o aparelho e o colocando na mesa repetiu surpreso com um leve riso na voz. — Talvez eu tenha me empolgado um pouco. – Comentou vendo o amigo rir enquanto puxava a cadeira do outro lado se sentando de frente para ele. — De qualquer forma, o que aconteceu?

— Precisa acontecer algo para que eu queira te ver, Ichi?

— Ren. – Chamou ligeiramente irritado.

— Na verdade, não é nada mesmo. – Intrigado pelo motivo o rapaz levantou as sobrancelhas vendo o outro sorrir.

Ele era bom em disfarçar suas reais intenções confundindo quem não o conhecia, porém para Tokiya aquilo era só uma máscara já decorada. O rapaz pensou em questionar, mas logo desistiu. Deveria dar um tempo para o que quer que o outro quisesse.

— Sei. – Torcendo o nariz comentou desconfiado vendo o outro se espreguiçar despreocupado. — Você sabe que se tiver algum problema, você pode falar comigo.

— Ah, Ichi, é realmente o príncipe perfeito.

— Perfeito... – Um riso sem graça acompanhou a fala deixando vago seus sentimentos. Por alguns instantes eles se calaram apesar de estarem cheios de perguntas em suas mentes. Em seguida os olhares se encontraram. — O que é ser perfeito?

— Conseguir fazer tudo o que te pedem, agradar a todos... Você.

A falta de seriedade na forma como ele se explicava deixou Tokiya ligeiramente incomodado. Ele não conseguia saber se estava falando a verdade ou só tentando provoca-lo com as palavras de flerte comum.

— Você pode não aceitar, mas muitos querem ser como você. – Completou se virando de frente para ele. Não havia graça em seu sorriso e por alguns instantes deu ao entender que falava de si mesmo.

— Ha... Você quer? – A pergunta foi rápida acompanhada de um suspiro inconformado. Contudo não houve resposta apenas um olhar sério seguido de um movimento rápido dos lábios. — Você fala da inveja dos outros, mas sabe o quanto essa perfeição é ridícula. – Cruzando os braços completou o encarando. — Isso não existe.

— Se existisse tudo seria mais fácil. – Ele rebateu mais rápido do que era esperado surpreendendo Tokiya pelo tom de voz cansado.

Não havia mais o que perguntar, os sentimentos eram tão claros quanto o céu daquela tarde e isso era ainda pior do que não o que estava acontecendo. Afinal, como eles poderiam se ajudar se nenhum deles tinha certeza do que fazer? Do que adianta saber daquela dor se não havia uma solução para parar?

Ele assistiu o ruivo abaixar a cabeça olhando para a direita como se tentasse fugir. Seus olhos queria fazer o mesmo, porém não conseguia.

— Às vezes – sem avisar Ichinose começou a falar atraindo a atenção de volta — eu penso que seria melhor se eu fosse perfeito como todos veem. – Não houve sorrisos para disfarçar as intenções ou brincadeiras que atrapalhassem o entendimento da situação. Eles estavam finalmente se encarando, se ouvindo e esperando. — Não teria que me esforçar para alcançar o objetivo deles e nem dar explicações de como me sinto. Seria... perfeito. – O comentário veio seguido de uma pausa onde seus olhos assistiam com atenção a expressão atenta do outro. — Mas se eu fizesse isso, o que seria de mim? O quanto disso seria real? – Seu olhar seguiu para o celular na mesa observando os fios do fone com carinho. — Valeria tanto assim jogar seus sentimentos fora por aquilo que esperam de você? – Sua mão foi até o aparelho pousando levemente sobre o vidro onde o botão de play estava escondido atrás da tela de descanso. — Ser perfeito não faz com que todos te aceitem.

Ren estava ali em silêncio assistindo a cena sem interferir. Não tinha nada que ele pudesse acrescentar, porém haviam duvidas que não podia calar.

— E o que faz? – Perguntou engolindo a saliva amargamente.

— Nada.

A reposta foi dura e rápida como se ele quisesse evitar o sofrimento que aquela palavra poderia causar. Ele não mostrou reação em seu rosto e o mesmo fez Jinguji. Entretanto, era verdade. Não havia nada que podiam fazer para evitar o sofrimento, evitar o olhar alheio que dizia como suas vidas deveriam ser seguidas. Nada.

— A questão é que – Tokiya começou a falar suavemente com um tom consolador — não tem como mudarmos o que eles pensam e mesmo assim ficamos pensando nisso. – Com um leve sorriso continuou. — Não dá pra ser aceito se nós não nos aceitarmos.

Dava para ver no olhar dele que aquela era uma luta que conhecia bem. Algo que valia a pena mais do que suprir as necessidades dos outros. O ruivo não pode conter a reação surpresa por instantes antes de chacoalhar a cabeça rindo em silêncio deixando o outro confuso.

— Eu não vou abandonar quem eu sou. – O comentário seguiu o sorriso de sempre afirmando que estava tudo bem. E afastando o corpo da mesa continuou com uma sobrancelha levantada. — E se quer saber, eu te aceito do jeito que você é.

Tokiya não esperava ouvir aquilo e sem perceber arregalou os olhos levemente surpreso. Ren percebeu, mas preferiu guardar as provocações para outra hora, respondendo com um sorriso.

— Eu também te aceito assim. – Seu olhar desmontou tanto carinho quanto o tom de sua voz na resposta.

— No final, eu estava certo em vir te ver. – Ele sorriu se levantando da cadeira. — Obrigado.

Tokiya assentiu pegando o celular e novamente dando play na música. Sua mão pegou um dos fones o colocando na orelha, mas quando foi pegar o outro sua mão parou surpreso por ver a larga mão do amigo ali antes dele. Ele acompanhou os movimentos com os olhos o vendo pegar o objeto pequeno com a ponta dos dedos e o elevar até a orelha esquerda propositalmente.

Seus rostos estavam bem mais próximos do que era necessário. O rapaz sentado quis dizer algo, mas só conseguiu encarando os olhos azuis que o provocava.

Os toques lentos do piano começaram, nota por nota em um padrão único. No silêncio suas respirações se misturavam a música que timidamente parecia mostrar um leve calor em um dia chuvoso. Ren sorriu olhando o rosto apático do outro que parecia incomodado.

Sentimentos se misturavam aquecendo o peito e o rosto. Eles eram amigos há tempo suficiente para saber como lidar um com o outro, mas ainda assim Ren tinha um jeito único de trazer constrangimento para quem olhasse demais para seus olhos.

— Linda música... – Comentou erguendo levemente uma das sobrancelhas. Tokiya não sorriu, mas correspondeu ao sentimento com o olhar contente. Ele não sabia se tinha ajudado completamente, mas tinha certeza que aquela conversa aliviou não só os ombros de Ren, mas o dele também.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.