Todo o Espaço Entre Nós

Quando sinto “amizade” por você


Capítulo 13: Quando sinto “amizade” por você


O início do jantar não foi tão agradável quanto Spock havia pretendido que fosse, em parte por sua culpa. Ele não conseguia tirar da mente as palavras do pai. Ele percebeu que Jim estava muito quieto e um pouco triste, talvez pela pouca interação que Spock estava oferecendo. Jim estava se esforçando para manter uma conversa neutra e amigável.

Spock se esforçou para bloquear todas as emoções e memórias do diálogo com Sarek e passou a se concentrar inteiramente em Jim.

Spock ainda não conseguia acreditar que Jim Kirk, seu Capitão, havia se declarado para ele. Ele sabia que Jim era sincero sobre seus sentimentos. Spock havia sentido isso durante o beijo. Beijo que ele jamais devia ter permitido.

Às vezes, se ele pensasse naquele momento, ele conseguia sentir a sensação dos lábios de Jim tocando os seus. Então, ele tentava não pensar. E jogava a memória para o fundo de sua mente. Mas a memória teimava em retornar, sempre que ele olhava para Jim, o que era praticamente o tempo todo.

Spock sabia que Jim estava ferido, por mais que Jim insistisse em dizer que estava tudo bem. Se ele não podia retribuir os sentimentos de Jim, pelo menos ele podia dizer que se sentia horado por eles.

Em um dado momento, durante o jantar, quando as coisas ficaram menos estranhas entre eles, Spock se pegou olhando para as mãos de Jim, e sentiu um forte desejo de tocá-las. Lembrou-se imediatamente da voz de seu pai o acusando de traição, também pensou em Uhura e sentiu-se culpado.

James Kirk não é adequado para você. Spock não pensava assim. E se Sarek conhecesse James Kirk, assim como Spock o conhecia, com certeza Sarek pensaria diferente. Mas que diferença fazia o que Spock pensava a esse respeito? Ele não estava em um relacionamento com Jim, ele estava em um relacionamento com Nyota.

Não importava o que Sarek pensava sobre Jim. Assim como não importava o que ele mesmo pensava sobre Jim. Jim não era seu parceiro romântico, portanto toda essa discussão era ilógica. Ainda assim, ele não conseguia parar de pensar sobre o assunto.

Spock se perguntava o que estava acontecendo com ele. Nunca antes ele teve tanta dificuldade para controlar suas emoções como nas últimas semanas. Seria a presença constante de Kirk? Seria a sua nova ligação entre eles? O link de amizade que eles agora partilhavam?

Spock contou a Jim sobre a existência do link, parecia errado não contar, mas ele omitiu como o link havia se formado.

Apesar de todo o seu conflito interno, Spock achou que o jantar com Jim foi certamente uma experiência interessante. Um pouco diferente do jantar que eles tiveram em São Francisco alguns dias antes de partirem para Novo Vulcano e certamente muito diferente das refeições que eles compartilharam a bordo da Enterprise. Pela primeira vez, o jantar não era uma simples refeição compartilhada aleatoriamente, mas uma tentativa de agradar a Jim, um esforço para fazê-lo mais alegre.

E mesmo que a noite não tenha começado muito bem, aqueles momentos em que eles conseguiram conversar como sempre faziam foi recompensador.

No fim, Spock ficou um pouco mais aliviado quando percebeu que o humor de Jim havia melhorado. Mesmo que o seu próprio humor ainda fosse incerto.

— Podemos voltar caminhando? — Jim indagou quando eles saíram do restaurante. — Eu gostaria de apreciar as estrelas do seu planeta.

Spock pensou em corrigir Jim e dizer que o planeta não lhe pertencia, nem era aquele seu planeta natal. Mas não o fez.

— Tem certeza que não há problema para você fazer uma longa caminhada? A casa do meu pai não fica tão perto.

— Estou bem. Me injetei uma dose de Tri-Ox antes de sairmos. E a noite é bem mais fria em comparação ao dia. Eu gostaria de aproveitar.

— Muito bem, então. Eu acompanho você.

Spock ficou ao lado de Jim e logo eles sincronizaram o ritmo das passadas. Caminharam em silêncio. Jim olhando para as estrelas e para os edifícios ao redor. Spock observando Jim pelo canto dos olhos.

— Estou impressionado com a rapidez com que os vulcanos construíram tudo isso.

— De fato. A inteira reconstrução das cidades era de vital importância para que os sobreviventes dessem continuidade a suas vidas o mais rápido possível.

— Sabe o que mais me surpreendeu? — Jim falou depois de um momento. — A garçonete que nos atendeu.

— O que havia de surpreendente nela? — Spock ficou curioso. Ele mesmo não reparou nada que pudesse ser destacado como notável ao recordar a atendente, muito menos surpreendente. Mas era verdade que ele tinha estado meio distraído durante o jantar. E, claro, Jim tinha um olho atento para fêmeas humanoides. Spock ignorou a sensação de desconforto que aquele último pensamento lhe causara.

— Ela era vulcana. — Jim respondeu e sorriu ao ver a sobrancelha de Spock saltar.

— Considerando que este é um planeta habitado por vulcanos, não vejo porque o fato da garçonete ser uma mulher vulcana seja um fato tão surpreendente.

— Eu sei, Spock. É só... — Jim tocou o braço de Spock por instante, ainda rindo, depois retirou a mãos. — Você pode dizer que é meio preconceituoso da minha parte, mas... acho que pensei que todos os vulcanos do planeta eram cientistas ou algo assim. O que, evidentemente, não é lógico. Para uma sociedade funcionar é preciso ter indivíduos trabalhando em todas as áreas. Mas esse raciocínio só me ocorreu quando a moça veio anotar nossos pedidos.

— Felizmente você alcançou a lógica, ainda que tarde. — Spock ironizou.

— Sim. Eu sou capaz de lógica algumas vezes.

Spock olhou para Jim e se perguntou como seria não estar constantemente na companhia de James Kirk, não caminhar mais ao seu lado. E ao fazer isso, pela sexta vez naquela noite, Spock se pegou admirando como Jim parecia bonito naquela roupa vulcana.

— O que foi? Estou muito estranho nessa roupa? — Jim perguntou.

­— Negativo. Como eu disse anteriormente, lhe caiu muito bem. É apenas... diferente, vê-lo vestido assim. Como um vulcano.

— Espero que não um diferente ruim. — Jim falou e acariciou o tecido da roupa. Jim havia adorado a roupa, embora ele mesmo se sentisse um pouco estranho dentro dela. Era como vestir uma roupa do Spock. E talvez por isso Jim tinha gostado tanto. E, claro, foi um presente de Selek. E o velho vulcano tinha acertado o seu tamanho, a roupa ficou perfeita em seu corpo. — Eu percebi que alguns vulcanos ficaram me olhando lá no restaurante. Fiquei em dúvida se era um olhar de aprovação ou desaprovação, vocês não são muito fáceis de ler.

—É curioso ver um humano com nossas vestimentas. Os humanos geralmente não o fazem. É provável que os outros estivessem o admirando em vez de desaprovando. Eu posso dizer que você parece muito agradável aos olhos.

— Oh. Ora, senhor Spock, você também.

Os dois se entreolharam e coraram ao mesmo tempo. Jim desviou os olhos primeiro e se sentiu como um estúpido adolescente.

Jim limpou a garganta e disse:

— Obrigado pelo jantar. Foi muito agradável.

— Eu digo o mesmo. — Spock respondeu.

Eles caíram em silêncio depois disso.

Spock retomou sua postura estoica. As mãos presas atrás das costas. A postura ereta. E novamente, como aconteceu várias vezes durante o jantar, Jim viu Spock se retrair e se fechar. Era óbvio que algo não estava bem.

— Eu percebi que você ficou preocupado depois da conversa com o seu pai.

— Vulcanos não se preocupam. — Spock disse secamente.

— Você não precisa fingir que está bem quando você não está, Spock. Pelo menos não precisa fingir para mim. Você passou a metade do jantar distraído. Você está melhor agora?

Spock não disse nada apenas comprimiu os lábios.

— Quero dizer, eu sei que não é da minha conta, mas... Lembra quando você disse que estava aberto a me escutar se eu precisasse desabafar? Eu digo o mesmo agora. Não estou pressionando nem nada. Apenas se você quiser conversar. É para isso que amigos servem afinal.

Spock continuou em silêncio.

Jim suspirou.

— Você está preocupado que Sarek o obrigue a se casar com uma mulher vulcana em vez da Uhura?

Spock olhou para Jim com uma expressão estranha. Provavelmente se perguntando como Jim sabia daquilo.

— Você ouviu o que Sarek disse. — Spock falou. Não foi uma pergunta.

— Só a parte em que ele diz que a Uhura é incrível e eu sou um caso perdido. Não exatamente com essas palavras. — Você também disse que ama a Uhura, Jim acrescentou apenas em sua mente. — Mas tudo bem, não fiquei ofendido. Na verdade, acho que seu pai tem razão.

Spock encarou Jim por um momento, o rosto sem expressão. Ele desviou os olhos e continuou a andar. Jim se apressou para acompanha-lo.

Spock ficou tanto tempo em silêncio, que Jim se arrependeu de ter tocado no assunto. Jim não queria forçar Spock a pensar na conversa com Sarek, por razões óbvias. Mas ele estava preocupado com Spock. Ele percebeu que Spock tinha estado tenso e distraído a maior parte da noite. E Spock nunca foi do tipo que se distrai com facilidade, então isso era meio preocupante.

Quando Jim já estava certo que tinha estragado o resto da noite por causa de sua boca grande, Spock começou a falar. Jim podia notar o tom de hesitação na voz do amigo.

— As pessoas a minha volta se acostumaram a dizer que eu sou meio-humano e meio-vulcano. Mas essa afirmação não está totalmente correta. Isso implicaria dizer que eu sou 50% humano e 50% Vulcano. Isso não é verdade. Minha constituição biológica é 85% vulcana e 15% humana. Por essa razão, meus pais decidiram que o melhor para mim seria a educação vulcana. Mais tarde, eu mesmo vim a escolher seguir o caminho Vulcano em definitivo. Mas essa pequena porcentagem minha que é humana, me causa mais dificuldade do que você possa imaginar.

Spock continuou:

— Por causa da minha formação e da minha constituição biológica majoritariamente vulcana eu jamais serei como um humano, Jim, mesmo que eu quisesse. Mesmo que eu tentasse muito. E ainda assim, essa pequena parte humana em mim, me torna menos Vulcano e me faz imperfeito em tudo o que eu tente fazer. É um lembrete constante de que eu não sou nem uma coisa, nem outra. — Spock faz uma breve pausa. — Meus companheiros humanos desejam que eu seja mais humano; meus companheiros vulcanos desejam que eu seja mais vulcano, e eu constantemente falho com ambos.

Jim percebeu como aquilo realmente machucava Spock. Jim fechou as mãos em punhos, zangado.

— Sabe de uma coisa, Spock? Porque perder tempo tentando ser uma coisa ou outra quando você pode ser o melhor dos dois mundos? Cara, eu sempre te achei incrível! — os dois pararam de caminhar e Spock olhou surpreso para Kirk. — Você tem todas as qualidades das duas espécies e pode desenvolver isso. Acredite, tem muito humano por aí que adoraria ter o seu controle emocional e a sua lógica. E aposto que tem muito Vulcano que gostaria de ser como você.

— Duvidoso. — Spock respondeu um pouco divertido com o súbito ânimo de Jim.

— O fato é: ninguém é perfeito, Spock. Ninguém. Então você não precisa se preocupar em ser o vulcano perfeito ou o humano perfeito. Você só tem que ser o melhor que você pode ser, eu sei que isso soa meio piegas. Eu posso dizer que eu nunca conheci ninguém tão dedicado quanto você e se as pessoas não percebem isso, problema delas. Você não é obrigado a agradá-las. Você é, na minha opinião, o melhor humano e o melhor vulcano que eu conheço.

— Sua opinião é um tanto suspeita, Jim. Você não acha? — Spock disse. Jim podia notar o quase sorriso do Vulcano.

— Talvez. Mas é o que eu realmente penso. Independentemente de você ser meu amigo ou do que eu sinto por você. E tenho certeza que Uhura também pensa assim.

Spock encarou Jim por alguns segundos, considerando se devia dizer ou não o que tinha em mente. Por fim, ele começou, hesitante:

— Jim, sobre o que Sarek disse sobre você...

— Não se preocupe, eu disse que não...

Spock levantou a mão para que Jim parasse de falar.

— Por favor, deixe-me terminar. Meu pai não tinha a intenção de ofendê-lo ou desmerecer você como pessoa. Eu tenho certeza de que ele está bem ciente de todas as suas habilidades profissionais, no entanto, ele não conhece você pessoalmente. Ele avaliou você como um possível parceiro romântico e o desqualificou. Mas eu digo que a avaliação dele não foi válida por duas razões. Primeiro: ele o conhece apenas superficialmente e profissionalmente, portanto ele não teria como fazer uma avaliação justa entre suas qualidades e as qualidades da Nyota. Por mais que Nyota seja uma profunda conhecedora da cultura vulcana e melhor se adapte aos nossos modos, isso não significa que você também não possua suas próprias características que o torna um companheiro adequado para um vulcano. Segundo: a escolha de meu pai prioriza as fêmeas. Levando em conta o risco de extinção que meu povo sofre no presente momento, é lógico escolher uma parceira que seja capaz de gerar filhos e dar continuidade a nossa espécie. Por isso, para Sarek, uma mulher vulcana seria preferível, pois geraríamos uma criança com mais chances de carregar nossa herança sanguínea. Diante da minha recusa de escolher uma parceira vulcana, Nyota é novamente a escolha mais lógica, visto que machos humanos não são capazes de reprodução. No entanto, meu pai desconsidera o fato de que eu provavelmente seja estéril. A maioria dos seres híbridos são, não vejo porque eu seria uma rara exceção. Portanto, considerando que eu mesmo não seja capaz de reproduzir, eu poderia livremente escolher entre um parceiro macho ou fêmea. Em síntese, meu pai não pretendia ofendê-lo quando disse que você é inadequado para mim, ele apenas estava usando a lógica. No entanto, a lógica dele foi falha, pelos motivos que já apresentei.

Jim encarou Spock sem saber o que dizer. Ele ainda estava tentando filtrar toda aquela informação e seu coração batia tão acelerado em seu peito que ele se sentia um pouco zonzo. Ele nem ao menos se lembra se Spock já havia falado tanto sobre assuntos pessoais antes.

­ — Eu lhe contei todas essas coisas porque eu quero que você entenda que, como Vulcano, minha maior dificuldade está na minha inabilidade em reconhecer e compreender emoções. E isso costuma causar sofrimento as pessoas com quem eu me importo. Minha mãe, Nyota... você. Eu passei tanto tempo aprendendo a ignorar minhas emoções que não aprendi a reconhece-las, nem a lidar com elas. Compreendo agora que essa foi uma grande falha. — Spock parou e olhou para as mãos de Jim. — Eu passei metade da noite desejando segurar a sua mão, Jim. E a outra metade passei me culpando por me permitir ter tal desejo. Quando eu sinto... amizade... por você, Jim, eu sinto vergonha.

— Porque você ama a Uhura. — Jim falou. Ele ainda não tinha certeza se tinha compreendido Spock corretamente. Spock queria segurar sua mão?

— Não, Jim. Porque eu não tenho mais certeza do que eu realmente sinto por ela. Assim como não tenho certeza do que eu realmente sinto por você.

— O que... O que você quer dizer com tudo isso, Spock? — Jim perguntou num fio de voz.

— Se eu já não estivesse engajado em um relacionamento com Nyota, eu ficaria honrado se você me aceitasse como seu parceiro romântico, Jim. — Spock falou olhando para os próprios pés. A face e as pontas de suas orelhas estavam tingidas de verde vibrante. Jim aparentemente havia esquecido de como respirar. — No entanto, eu estou em um relacionamento com Nyota e me recuso a magoá-la. Eu sei que tenho fortes sentimentos por ela, mas também tenho... — Spock se interrompeu e olhou para Jim. — Encontro-me em um profundo conflito emocional.

­— Eu sinto muito — Jim sussurrou. Ele sentia seus olhos marejados. — Jamais quis lhe causar dor.

— Você não me causa dor, Jim. Descontrole, sim.

Naquele momento, duas mulheres vulcanas que se aproximavam olharam para eles curiosas. Ao vê-las, Spock se tornou autoconsciente de seu estado emocional e de tudo o que havia confessado. Spock desviou o rosto do alcance da visão das duas vulcanas, temendo que elas pudessem sentir sua falta de controle, e continuou a andar. Jim ficou parado, olhando para as costas de Spock. As duas mulheres passaram por ele e seguiram no caminho contrário.

Jim correu para alcançar o amigo. Ele queria confortar Spock, ele queria ser confortado. Mas tudo o que ele podia fazer era ficar ao seu lado.

— Ofereço minhas desculpas pelo meu descontrole. — Disse Spock. A vergonha em sua voz era inegável.

Jim já podia sentir Spock se fechando novamente. Ele não fazia ideia de como sabia quando Spock se protegia com seus escudos mentais, ele simplesmente sentia. Depois de alguns minutos, quando eles já entravam na rua da casa de Sarek, Spock falou novamente.

— Tomar qualquer decisão agora seria injusto com Nyota e com você. Eu preciso de tempo e meditação para pensar claramente. Você me concederia esse tempo?

Spock estava dizendo o que Jim achava que ele estava dizendo? Spock estava mesmo pedindo um tempo para decidir se ele escolheria ele ou Uhura? Jim se encheu de esperança. A mesma esperança que ele passara os últimos dias se recusando a ter.

Jim sabia que Spock não estava dando garantia de nada. No fim, Spock poderia escolher lhe dar um pé na bunda e continuar com Uhura, afinal, os dois estavam juntos há tanto tempo.

Jim sabia agora que Spock estava mais confuso em relação a seus sentimentos do que ele mesmo estivera no passado. Jim sabia que havia a possibilidade de Spock perceber que só o queria como amigo. Ainda assim, Jim respondeu:

— É claro, Spock. O tempo que você precisar.

— É muito amável da sua parte, Jim.

Porque mesmo que ele pudesse eventualmente sofrer, Jim arriscaria.

Spock valia a pena.