Capítulo 5: Mesa Para Dois

Jim saiu da sala literalmente correndo. A reunião com o Almirante Nogura demorou mais do que ele imaginou. Parecia até que o homem estava atrasando as coisas de propósito. Felizmente, Jim conseguiu enviar uma mensagem para Spock e Leonard avisando que se atrasaria.

Entrou em seu apartamento largando tudo pelo caminho e correu para seu guarda-roupas. Praticamente arrancou o uniforme do próprio corpo e vestiu algo mais informal. Seu comunicador tocou. Ele atendeu e colocou o aparelho entre a orelha e o ombro. Saiu pulando em um pé só, tentando calçar um sapato.

― Capitão James Tiberius Kirk?

― Está falando com ele ― Jim caiu no sofá e finalmente conseguiu enfiar o pé no sapato.

― Capitão Kirk, aqui é Joshua Carson, piloto do cargueiro Ameris III. Estou tentando entrar em contato com a Frota Estelar. Tenho alguém aqui que precisa falar com o senhor.

― Não podemos falar outra hora? ― Kirk checou o horário, ele já estava mais que atrasado.

― É realmente muito importante, senhor.

Jim parou. Um instinto de alerta cresceu em seu peito.

― Ok. Certo. Estou ouvindo.

― Vou passar a ligação, senhor.

Jim ouviu uma movimentação e a respiração de alguém.

― Capitão Kirk ― veio a voz de um menino. ― Sou eu, Peter.

― Que Peter? ― Jim indagou sem saber porque começava a sentir medo.

― Peter Kirk... ― o menino fungou. Parecia estar chorando. ― Lembra de mim, tio James?

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McCoy saiu da festa para tentar contato com Jim logo depois de Spock e Uhura terem se afastado. O vulcano estava malditamente certo. Já passava das dez da noite, que inferno de reunião era essa? Jim não poderia mais estar em uma reunião a essa hora. Em outras épocas, McCoy apostaria todas as suas fichas na hipótese de que Jim estaria se enrolando com alguma mulher ou alguma alienígena fêmea, talvez duas. Mas, agora, ele achava muito improvável Jim trocar a festa de despedida do Spock, festa que ele mesmo preparara, por algum rabo de saia.

Jim não respondeu nenhuma de suas malditas ligações. McCoy começou a ficar inquieto e a andar de um lado para o outro. Inesperadamente, seu PADD tocou, e ele quase deixa o aparelho cair no chão. Era Jim retornando. Finalmente!

McCoy atendeu muito furioso.

― James Tiberius Kirk, se você estiver se divertindo com alguma garota neste momento, eu juro que te esfolo vivo. Que raios de ideia é essa de não vir para a maldita festa que você planejou? Não reclamo por mim, mas por Spock. Ele não diz nada, mas o bastardo não me engana. O cara está conferindo a cada 15 minutos se você chegou. E acho que ele já concluiu que você não vem. Que ideia é essa de me largar aqui com o duende? O que houve?

McCoy terminou sua bronca e não gostou do silêncio de Jim. Nada da resposta na ponta da língua. Sem palavras e desculpas brincalhonas. Algo estava errado.

― Jim... aconteceu alguma coisa?

― V-Você pode... pode vir aqui, Len?

― Meu deus, Jim, o que aconteceu? ― Jim parecia estar chorando. ― Você está ferido? Jim? Fale, pelo amor de deus!

― Não estou ferido, Leonard. Só venha, ok?

― Certo. Vou chamar o Spoc...

― Não! Não precisa incomodá-lo com isso. É a noite dele. Deixa ele se divertir.

McCoy olhou na direção da festa, lembrando-se do comportamento do vulcano, e franziu a testa.

― Eu não diria que ele está exatamente se divertindo...

― Não quero que ele me veja assim ― a voz de Jim soou tão baixa, que Leonard quase não ouviu.

― Tudo bem. Já chego aí.

Leonard encontrou Jim sentado no chão da sala, encostado no sofá, com a cabeça entre as mãos. Havia duas garrafas vazias de cerveja romulana ao lado dele. Como se duas taças daquele veneno azul não fossem suficientes para proporcionar uma dor de cabeça dos infernos por um dia inteiro. Excluindo a aparência miserável e o rosto inchado de tanto chorar, Jim não parecia ferido ou machucado. Pelo menos não externamente.

Jim contou a Leonard o que tinha acontecido. Não havia nada que um médico pudesse fazer naquela situação, mas um amigo poderia ao menos oferecer um ombro. Leonard o abraçou e ficou com ele até o sol atravessar as persianas das janelas.

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― Doutor McCoy?! ― Spock ficou surpreso ao ver o humano parado em sua porta. Nunca recebera qualquer visita do médico em todo o tempo em que se conheciam.

Dois dias tinham passado desde a festa, a ligação estranha de Jim e o convite inesperado para jantar. Spock não tivera mais contato com Jim depois disso, e agora o médico estava em sua porta.

― Eu sei. Também estou surpreso que eu tenha vindo até aqui. Posso entrar, não é?

Spock concordou com um aceno de cabeça e guiou Leonard até a sala.

― A que se deve essa visita? ― Spock indagou por curiosidade, embora suspeitasse a resposta.

― É sobre o Jim. ― McCoy sentou-se no sofá e Spock de frente para ele. ― Jim te contou o porquê de ele não ter ido à festa no sábado?

― Não.

― É. Imaginei que ele não fosse contar. Aquele cabeça-dura.

― Devo concluir que ele revelou o motivo a você? ― Spock reprimiu a irritação ilógica por Jim revelar algo a Leonard e ter se recusado a revelar a ele.

― É claro. Certo, senta aí que eu vou te dizer.

Spock arqueou uma sobrancelha.

― Já estou sentado. ― McCoy abriu a boca para dizer algo, mas Spock o interrompeu. ― Doutor, acredito que você não deve fazer isso. Se o Capitão decidiu não me contar, é porque, obviamente, ele não deseja que eu saiba.

― A única coisa obvia aqui, Spock, é que você entendeu tudo errado. Não é nenhum segredo, e provavelmente você ficaria sabendo em breve. Então, antes que você acabe falando alguma merda insensível sem querer que vai magoar Jim, eu vou lhe dizer.

― Eu ainda acho que...

― Eu tentei convencer Jim a te contar, ok? Mas ele não queria que você ficasse preocupado. Ele acha que isso poderia distrair você de suas tarefas com o novo navio. E ele tem essa ideia besta de não querer que você o veja fragilizado. Eu tenho uma teoria para esse comportamento dele: você é vulcano e está sempre por aí dizendo como o emocionalismo humano é desagradável e ilógico, e toda essa merda; Jim acaba achando que se você o ver em uma crise emocional, você vai abominá-lo ou algo assim. Talvez abominar seja uma palavra muito forte, mas você entendeu. Já ouviu falar de Deneva?

― É um Planeta Classe-M, o terceiro planeta do Sistema Beta Darius. É também uma colônia humana bem sucedida estabelecida desde meados do século 22. O planeta serve como base na linha de frente no setor...

― Spock! ― Leonard ergueu a mão para interrompê-lo. ― Não quero saber a ficha do planeta, Senhor Enciclopédia. Quero saber se ouviu as notícias recentes sobre ele.

― Admito que estive concentrado apenas nos preparativos para a partida da T’Saura.

― Eu imaginei... Bem, Deneva acaba de se tornar a mais recente prova de que eu estou certo quando digo que o lugar dos humanos é na Terra e não espalhados pelo Espaço. ― Uma pausa. Leonard suspirou e continuou em um tom mais profissional. ―Naves que vinham de Ingraham B trouxeram para Deneva uma infestação de parasitas alienígenas. Eles são extremamente mortais e se alastram rapidamente. Toda a população de Ingraham B está morta. Até onde se sabe, dois terços da população de Deneva já foi dizimada... O irmão mais velho de Jim, Sam, morava em Deneva com esposa e filho.

― Eles estão mortos.

― Sam e a esposa sim. Mas o sobrinho de Jim conseguiu fugir do planeta. O garoto e outros sobreviventes estão sob a custódia da Frota Estelar, em uma Nave Médica, bem próxima de Nova Vulcano pelo que ouvi dizer. Ficarão lá até terem certeza de que eles não estão infectados.

― Como Jim está?

― Ele diz que está bem. Mas não está coisa nenhuma. Então... quando encontrá-lo, tente demonstrar um pouco de empatia e não seja uma pedra de gelo completa.

― Doutor, se me permite perguntar, por que se deu ao trabalho de vir aqui me revelar isso?

― Você considera Jim seu amigo, não é?

― Certamente.

― Muito bem, ser amigo também envolve oferecer apoio e consolo em momentos difíceis. Se fosse com você, eu sei que Jim não mediria esforços para estar ao seu lado. ― Leonard observou o vulcano por um momento. ― Sabe, Spock, Jim já passou por mais merda nessa vida do que você pode imaginar. Ele está cheio de cicatrizes invisíveis, essas são as piores. Ninguém as nota, porque um capitão não pode vacilar diante da sua tripulação ou de seu Primeiro Oficial. Jim não pode ser “O Capitão” o tempo todo, não é saudável, mas ele tenta. Jim é humano. Humanos costumam ser mais frágeis por dentro do que são por fora. Lembre-se disso.

McCoy se levantou e caminhou até a porta. Spock continuou onde estava. Antes de sair, o médico acrescentou:

― Jim está sempre rodeado por muitas pessoas, ele as atrai, é uma coisa. Mas nós dois sabemos que ele tem bem poucos amigos de verdade. Ele vai precisar de nós.

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― Você se segura tanto, Spock, que me pergunto se você ao menos sente algum prazer.

Nyota saiu de cima dele, puxou o lençol e o enrolou em seu próprio corpo para cobrir sua nudez. Ela se sentou na ponta da cama, de costas para Spock. Spock ficou olhando para as costas dela. Uma gota de suor deslizou pela pele negra do pescoço de Nyota e sumiu no tecido, logo abaixo das omoplatas.

― Devo entender que está desapontada com minha atuação esta noite?

Nyota virou-se para ele com uma expressão condescendente. Ela suspirou pesadamente.

― Não é isso. Eu estou satisfeita. Mas não sei se você está. Você não deixa suas emoções transparecerem. Não sei se você está gostando ou não.

― A experiência foi agradável, assim como nas vezes anteriores. Devo lembrar-lhe que os vulcanos não precisam de sexo tanto quanto os humanos. Além disso, para nós, atividades sexuais não são uma desculpa para abandonar o caminho da lógica.

Nyota suspirou.

― Mas esse é o problema, Spock. O sexo é para ser sentido. É uma entrega completa de ambas as partes. Mas você parece mais distante a cada vez que fazemos isso. ― Spock não disse nada, também não olhou para ela. ― Percebi também que você tem evitado uma fusão mental quando fazemos amor. Você não tinha dito que, para os vulcanos, manter as mentes unidas durante o ato sexual tornava a experiência mais prazerosa?

― Correto.

― Então qual é o problema? Por que tem evitado isso?

― Estabelecer uma fusão mental durante o ato sexual torna mais difícil a tarefa de manter meus escudos mentais. Sem a fusão mental posso controlar perfeitamente minhas próprias emoções e impedir que as suas me afetem enquanto estamos em contato pele a pele.

― Então você realmente está se controlando. E me bloqueando.

― Desde que meu objetivo é proporcionar a você prazer e satisfação necessária, não entendo o porquê de sua preocupação com o que eu sinto ou deixo de sentir durante nossos congressos sexuais, se você afirmou estar satisfeita. Preocupação desnecessária, devo dizer, uma vez que já lhe expliquei que tal prazer não é tão necessário para mim quanto é para os humanos. Como membro de uma espécie que evita o contato físico o máximo possível, sexo costuma ser uma atividade pouco cômoda. Pensei que você tivesse compreendido isso.

Spock falou como se estivesse fazendo um discurso sobre Astrofísica. Nyota se irritou.

― Falando assim, até parece que você só tranza comigo porque eu insisto.

Nyota levantou da cama rispidamente. Arrastou o lençol consigo e puxou as pontas para não tropeçar nelas. Ela seguiu para o banheiro sussurrando palavrões em suaíli. Spock observou toda a cena atônito.

― Você está aborrecida.

― O que te fez achar isso?

Ela bateu a porta do banheiro com força. Fervia de raiva. Frustração. Por que era sempre tão difícil lidar com Spock?

Nyota lembrou-se da primeira vez que ela e Spock fizeram amor. Daquela vez, Spock mostrara alguma emoção. Foi perfeito e foi adorável. Spock era virgem e talvez a emoção que ele deixou transparecer na época tenha sido consequência da surpresa. A descoberta da sexualidade. A expectativa da primeira vez.

Quando Nyota sugeriu que eles deveriam começar a se relacionar sexualmente, ela acreditou que isso os aproximaria mais. Os tornaria mais íntimos. O relacionamento deles era bem sucedido e eles estavam juntos há bastante tempo, por que não dar o próximo passo? Spock foi reticente no começo, mas acabou concordando.

Ela convencera Spock a fazer sexo. Era estranho... na época ela estava tão certa, parecia ser tão romântico, o melhor para o relacionamento deles. Agora, ela se sentia um pouco culpada. Spock não queria aquilo. Cedeu por ela. E em vez de se aproximarem, eles estavam se afastando. Talvez tamanha intimidade fosse realmente muita coisa para Spock suportar.

Uhura tomou as palavras de Spock como sendo a verdade sobre a sexualidade dos vulcanos, ou pelos o que Spock acreditava ser a verdade. Ela sabia que Spock nunca se relacionou romanticamente, muito menos sexualmente com ninguém de sua própria espécie, então, como poderia ele afirmar com tanta certeza que um casal vulcano não se permitia sentir prazer sem qualquer tipo de barreira mental?

Talvez ela estivesse sendo egoísta e injusta com Spock. Ele pertencia a outra cultura, a outra espécie. E talvez ele estivesse lhe dando o máximo que ele podia oferecer.

Nyota voltou e encontrou Spock recolocando suas roupas. Ela se aproximou dele e o beijou. Spock a olhou confuso.

― Eu vou passar duas semanas fora e depois disso teremos pouco tempo antes de partimos para lugares diferentes do Espaço Profundo. Não quero desperdiçar nosso tempo juntos brigando, nem quero passar o natal com raiva de você.

― Isso parece lógico.

Nyota sorriu.

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Spock tinha acabado de se despedir de Nyota. Ela passaria o final do ano fora do país com sua família. Ela tinha o convidado para acompanha-la, mas Spock teria que ir a Novo Vulcano em alguns dias. Naquela mesma tarde, ele recebeu uma mensagem de Jim.

Jim: O jantar ainda está de pé?

Spock: Creio que não entendi. Sua pergunta não tem lógica.

Jim: Eu quis dizer se você ainda concorda com a ideia do jantar.

Jim: O jantar, lembra?

Spock: Lembro-me bem. Não mudei de ideia.

Jim: Amanhã está bom pra você?

Spock: Certamente.

Jim: Ótimo! :D

Jim: Você pode vir para meu apartamento às 1930. Sairemos daqui.

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Se fosse sincero consigo mesmo, Spock poderia admitir que estava nervoso ou talvez ansioso. Ele não conseguia definir o sentimento com precisão. Talvez fosse uma mistura dos dois. O fato é que o sentimento, ou sentimentos, estava ali, atrapalhando sua execução de deveres rotineiros, perturbando sua meditação e até mesmo dificultando tarefas simples, como a escolha de uma roupa adequada para o jantar com Jim.

Spock escolheu algo simples. Uma camisa azul claro e uma calça preta. Achou que o conjunto lembrava vagamente seu uniforme de ciência da Enterprise e ficou confortável com isso. Pegou uma jaqueta preta, as noites costumavam ser mais frias em San Francisco, e saiu.

Spock localizou prédio e o apartamento que Jim tinha lhe indicado. Ele parou em frente à porta, ajeitou sua postura e pressionou o botão da campainha no terminal da parede ao lado. Esperou o terminal reproduzir a voz de Jim, indagando quem era o visitante e dando-lhe permissão para entrar, como tantas vezes aconteceu a bordo da Enterprise. Mas isso não aconteceu. A porta abriu imediatamente sem solicitar qualquer identificação.

― E aí, Spock. ― Spock não conseguiu esconder sua surpresa e confusão, não esperava encontrar o Dr. McCoy aqui. ― Não, você não errou de número. Este é o apartamento do Jim. Você chegou cedo.

Spock recuperou sua postura e sua máscara fria imediatamente. Tentou afastar qualquer emoção. Uma sensação estranha brotava em seu interior.

― Fui informado de que devia vir às 1930. São 1933. Tecnicamente, estou atrasado.

McCoy girou os olhos.

― E o mundo não acabou por isso? ― o médico falou com sarcasmo.

― Quem é, Magro? ― a voz de Jim soou de algum lugar dentro do apartamento.

― Seu amigo vulcano ― McCoy gritou sobre o ombro.

Nosso amigo vulcano.

― Que seja! ― McCoy empurrou a porta para trás e deu um passo para o lado. ― Entra aí, Spock. Jim está terminando de se arrumar. ― O médico guiou Spock até um sofá. ― Nunca vi demorar tanto, pior que minha ex-esposa.

― Eu ouvi isso! ­ ― Jim gritou do quarto.

― Era pra ouvir mesmo! ― McCoy balançou a cabeça sorrindo e finalmente se virou para o vulcano. ― Ansioso para o jantar?

― Vulcanos não ficam ansiosos. ― Ouviu-se mentindo. Mas era notável que a sensação de expectativa, que lhe acompanhara o dia inteiro, não estava mais presente. Então, pelo menos naquele exato momento, não era uma mentira de todo. A ansiedade foi embora. Mais precisamente, foi substituída por outro sentimento. Este era mais complexo, mais indesejável. Spock tentou entendê-lo, tentou interpretá-lo. Essa emoção incômoda surgiu no momento em que Leonard abriu a porta. Estava ele descontente em ver o médico? Não. Não era isso. Não era tão simples assim.

Quando Jim o convidou para jantar, por alguma razão, Spock entendeu que o pedido estendia-se somente a ele. Jim não mencionou, em nenhum outro momento, que também havia convidado o médico. Por essa razão, Spock continuou achando que ele e Jim teriam um tempo a sós. Percebeu seu engano no momento em que viu o médico. Ele tinha de admitir, ficara desapontado.

Desapontamento.

Essa é a emoção que sentia. Desapontamento: estado daquele que se desapontou, que se sentiu logrado em seus desejos e/ou expectativas. Spock conhecia muito bem a definição das palavras que davam nome aos sentimentos e as emoções. Ele estudara a Língua Padrão da Federação com afinco. Era a língua falada em seu trabalho, era a língua de sua mãe. Embora conhecesse bem os nomes e suas definições, Spock falhava em compreender e identificar essas emoções quando as sentia. Era muito mais fácil ignorá-las ou rejeitá-las, em vez de tentar compreendê-las, se aprofundar. Emoções normalmente vinham seguidas de outras. Sinônimos de desapontamento: insatisfação, desilusão, desencanto, decepção, frustração de desejos e/ou expectativas. Desejos e expectativas. Desejos...? Não havia lógica naquilo.

Desapontamento. Uma emoção que não tinha razão para existir. Não para ele. Ele cometera um erro de interpretação. Não era a primeira vez que compreendia mal uma intenção humana, então porque isso parecia importar tanto? Era natural Jim convidar o médico também, os dois eram amigos a mais tempo do que Spock conhecia qualquer um deles. Amigos muito próximos.

Anular as emoções era melhor do que tentar entendê-las. Era mais seguro.

― Sua mente está para lá de Orion, não é, Spock? ― Spock ouviu Leonard dizer.

― Perdão, Doutor, não prestei atenção ao que disse. ― Admitiu vergonhosamente.

― Mas é justamente disso que estou falando. Você não ouviu nada do que eu falei. O Irritante é que eu nem tenho certeza se você estava mesmo distraído ou se estava me ignorando de propósito.

― Era algo realmente importante? ― Spock não disfarçou seu tom provocador. O médico ficou imediatamente irritado, como se isso fosse algo difícil de acontecer.

― Não, eu só estava fazendo barulho. Você ficou aí imóvel como estátua. Esqueça. Olha o Jim aí.

― Então, Spock, você gostou? ― Jim sorriu para ele.

Jim estava parado na entrada da sala. Enrolava um cachecol no pescoço. Seu cabelo estava impecavelmente penteado para trás. Ele usava jeans, uma camiseta branca e uma jaqueta caramelo. Seu sorriso era cativante.

Spock estava prestes a responder que Jim parecia esteticamente agradável quando Leonard explicou:

― Ele está falando do apartamento novo.

Outro erro de interpretação.

Leonard, Spock fingiu não notar, olhava para ele com uma expressão jocosa bem diferente da que ele costumava ter quando provocava o vulcano. Teria Leonard percebido que Spock interpretara a pergunta de Jim erroneamente?

Jim gesticulou para o espaço em volta, ele não percebera o deslize de Spock. O vulcano ficou aliviado.

― Não é alugado. Eu comprei. Foi o conselho do Leonard, na verdade.

Spock aproveitou a oportunidade de fugir do escrutínio do médico e observou em volta. Uma enorme janela na sala permitia admirar a baia de San Francisco e a ponte Golden Gate ao fundo. Havia uma estante com vários objetos terráqueos antigos: armas de fogo a base de pólvora, uma câmera fotográfica do começo século XX e uma câmera digital do começo do século XXI; alguns objetos que eram presentes de embaixadores alienígenas e lembranças de suas missões no espaço; alguns modelos em miniatura de veículos terrestres antigos e de naves espaciais, incluindo sua tão amada Enterprise. Jim também possuía uma estante cheia de livros antigos, provavelmente todos da Era Pré-Dobra. Excetuando os itens decorativos que remetiam a um passado distante da Terra, o restante do apartamento era fresco, limpo e jovial. Tudo ali combinava bem com a personalidade dinâmica e versátil de James Kirk.

― É agradável. ― Spock respondeu finalmente.

― Eu também gostei ― os olhos de Jim brilhavam. ― Eu não planejava comprar um apartamento porque, você sabe, estamos a maior parte do tempo no Espaço. Mas o Magro me convenceu de que é bom ter uma garantia, uma segurança. Não dá pra ser capitão a vida inteira.

― É um pensamento sensato, devo dizer.

― É um pensamento mais que sensato ― Leonard interrompeu. ― É bom sempre ter uma segunda opção para tudo. Um plano B, porque nunca se sabe o dia de amanhã. Quando me separei da minha ex-esposa, não tive alternativa senão entrar na Frota Estelar, você sabe, cama e comida de graça. Pena que vem com a possibilidade de morte no Espaço.

― Olha pelo lado bom, Magro, você nos conheceu ― Jim sorriu quando Leonard bufou. Jim desviou os olhos para o vulcano. ― Você também não pensa em ter um lugar só seu, Spock?

― Há a propriedade de meu pai em Novo Vulcano, que também pertence a mim.

― Pois é... Nem todo mundo é filho de embaixador ― Leonard bufou novamente, desta vez Jim lhe deu um olhar repreendedor.

Spock ignorou o médico e se voltou para Jim. ― Sua família também não tem uma propriedade em Iowa, Capitão?

Jim coçou a parte de trás do pescoço. ― Bem, sim. Mas lá é meio que só da minha mãe e... E fica muito longe da base da Frota Estelar. Além disso, há um certo prazer em ter um canto só meu. Mais uma coisa ilógica e humana, não é?

― Pelo contrário, acredito que entendo. Vulcanos apreciam a privacidade. E, se me permite usar uma expressão que os humanos costumam dizer, este apartamento é a sua cara, Capitão.

― Obrigado, Spock. Mas não me chame de Capitão. Não estamos de serviço e eu não sou mais seu capitão.

― Entendido.

― Ele não consegue parar ― McCoy reclamou do modo automático como Spock respondeu. ― É um maldito robô.

― Magro! ― Jim advertiu.

― Quê? ― Leonard fingiu desentendimento.

― Não se preocupe, Jim. As ofensas do Doutor não me afetam.

― O “Doutor” aqui tem nome. É Leonard. Le-o-nard!

Jim colocou as mãos no quadril e sorriu balançando a cabeça para os lados.

­― Rapazes ― ele falou apaziguadoramente, se colocou entre os dois amigos e jogou os braços sobre os ombros deles. ―Hoje é a noite dos caras. Nada de brigas. Por mim, ok?

Os três tinham chegado a um acordo, pegaram o elevador e seguiram conversando sobre trivialidades. Leonard e Spock evitavam tocar em qualquer tema que por ventura lembrasse Deneva, queriam manter Jim feliz o máximo de tempo possível.

Quando chegaram ao térreo do prédio, Leonard pediu licença para atender uma ligação. Jim e Spock esperaram próximo a porta de saída e logo ouviram o médico discutindo. Leonard voltou para eles, exasperado.

― Desculpe crianças, vou ter de deixar vocês se divertirem sozinhos.

― O que houve? ― Jim indagou com preocupação.

― Nada grave, realmente. Minha “adorável” ex-esposa mandou Joana para cá um dia antes do combinado e só lembrou de me avisar agora. Aquela bruxa fez de propósito, eu aposto. Minha pequena deve estar quase chegando.

― Quer que a gente vá com você? ― Jim ofereceu.

― Não, não. Vão para o jantar. Eu cuido de Joana. Além disso, ela não se dá bem com estranhos, o orelhudo verde aí só a assustaria.

Spock se empertigou, desta vez visivelmente ofendido.

― Tudo bem ― disse Jim. ― Dê um abraço em Joana por mim.

Quando estavam no hovercarro, indo para o restaurante, Spock se virou para Jim.

― Jim... Você acha que minha aparência poderia assustar uma criança humana?

Jim olhou para ele surpreso e depois riu. Um sorriso condescendente, cheio de carinho.

― Não ligue para as besteiras que o Magro diz, Spock. Não há nada de assustador em sua aparência, pelo contrário, acho bastante agradável. Tenho certeza que Joana adoraria conhecer você. Quem não iria?

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― Mesa para dois, por favor ― Jim pediu à garçonete. A mulher olhou de Kirk para Spock e depois sorriu.

― Sigam-me. ― Ela os levou a um lugar mais ao fundo do restaurante. Havia uma janela com vista para um jardim e uma fonte iluminada. ― O lugar mais reservado e aconchegante da casa.

― Ah, obrigado! ― Jim abriu um de seus sorrisos galantes. A mulher entregou o menu para eles quando se sentaram.

― Deixe-me saber quando tiverem decidido o que pedir ― a mulher voltou a sorrir, com alegria exagerada e sem motivo, na opinião de Spock, e se afastou para outra mesa.

Spock deu uma olhada no cardápio, havia uma grande variedade de comidas vegetarianas e veganas. Jim sugeriu um prato tipicamente terráqueo, mas numa versão que não levava em sua composição nenhum ingrediente de origem animal. Jim lhe disse que era comida italiana. Bem simples, na verdade. Macarrão com molho. Spock atendeu a sugestão de Jim, por que não?

― Que tal? ― Jim olhava para Spock com expectativa, depois que o vulcano engoliu a primeira garfada.

― É bastante agradável.

Jim abriu um enorme sorriso.

― Viu? Você não precisa se alimentar só de folhas.

― Eu não me alimento de folhas, Jim. Minha dieta é composta de cereais, frutas, hortaliças, legumes, proteínas de origem não animal...

― Certo, certo. Para mim ainda parece com comida de coelho. ― Spock arqueou a sobrancelha um tanto contrariado. Jim riu. ― Eu te invejo um pouco, sabia? Eu não conseguiria parar em pé comendo só o que você come e em tão pouca quantidade. Ainda assim, você continua forte, saudável e com uma musculatura boa.

― Acredito que isso se deve a minha genética vulcana.

― Maravilhosa genética vulcana! E que droga de genética humana! Eu amo comer. Carne principalmente. Leonard vive dizendo que serei gordo algum dia, mas não consigo evitar. Acho até que engordei meio quilo nesses últimos meses.

― Dois.

― O quê?

― Você engordou dois quilos.

Jim deu um sorriso intrigado e olhou para Spock.

― Ok. Como você sabe disso?

― Chequei os relatórios médicos do Dr. McCoy antes de encaminhar para a Frota Estelar.

― Sério? Dois? ― Jim olhou para sua própria barriga, tocando a cintura. Spock já tinha visto Nyota fazer o gesto estranho uma vez; segundo ela, estava verificando se tinha culotes. Nyota tinha um pavor ilógico em ter os tais culotes.

― Não se preocupe. Não vejo alterações negativas a sua aparência. Pelo contrário, diria até que está com um aspecto mais saudável. ― Jim levantou os olhos para o vulcano, Spock parecia tão sério como sempre. ― No entanto, seria sábio ouvir o Doutor de vez em quando e se alimentar mais adequadamente.

― Vou me lembrar disso. Quem me dera ter sua disciplina alimentar. Talvez fosse mais fácil se eu fosse vulcano. ― Jim sorriu com a própria ideia. ― Você com certeza adoraria que eu fosse vulcano, não é? Menos ilogicidade para lidar e essas coisas.

Spock considerou a ideia de um James Kirk vulcano. O conceito parecia muito absurdo. Spock já tinha, várias vezes, sugerido a Jim agir com lógica. Ele muitas vezes desejou que Jim fosse mais lógico, principalmente em situações de perigo, mas nunca desejou que Jim fosse vulcano.

― Pelo contrário, Jim. Jamais desejaria que você fosse vulcano.

― Por que não?

― Embora eu aprove veementemente os ensinamentos de Surak e acredite que qualquer ser possa se beneficiar deles, o modo de vida vulcano e tudo o mais que nos torna vulcanos, se adéqua melhor aos vulcanos. Pois vivemos assim por eras e eras. É assim que meu povo é. Lógico, prudente, equilibrado, comedido... contido. Não é um caminho fácil, mesmo para os vulcanos. Você é impulsivo, emocional, rebelde, dinâmico, tenaz, eloquente e demasiadamente tátil. ― Jim sentiu-se encolher a cada palavra de Spock. É claro que Jim sabia que estava longe de ser remotamente parecido com um vulcano. ― Todas essas características são o que fazem você ser quem você é, e eu jamais ousaria imaginar um James T. Kirk que não fosse todas essas coisas. Que não fosse humano. Se você fosse um de minha própria espécie, devo admitir, você seria muito... comum.

Os olhos azuis de Jim eram enormes. Ele sorriu para Spock. Um sorriso diferente. Um sorriso tímido, contido. Sua face estava corada e ele escolheu evitar os olhos de Spock ou dar qualquer resposta ao que tinha sido dito. Jim se fixou em seu prato de macarrão, em silêncio por alguns minutos.

Spock podia captar uma emoção emanando de Jim. Contentamento. Contentamento: satisfação, alegria, júbilo, felicidade. Contentamento e algo mais. Carinho, afeto. Mas ele não tinha certeza se esses últimos vinham de Jim ou dele mesmo. Pelo bem da verdade, Spock tinha de admitir a si mesmo, a emoção era muito... agradável. Fascinante!

Depois de um tempo, Jim falou novamente.

― Já conheceu sua tripulação?

― Sim. É uma boa equipe.

― Seu Primeiro Oficial?

― É vulcano também. Chama-se T’Kiha.

Jim fez uma expressão que Spock não conseguiu compreender.

― T’Kiha? É uma mulher?

― Uma fêmea vulcana ― Spock corrigiu. ― Sim. Por quê?

― Por nada. Curiosidade, apenas.

Jean deu de ombros e voltou a fazer perguntas sobre a nova tripulação de Spock. Por um momento, foi como estar novamente aos últimos dias antes da Enterprise partir para a missão de cinco anos. Jim tinha mil perguntas sobre tudo e estava muito curioso pela nova aventura. Só que, agora, ambos seguiriam a aventura em naves diferentes. Os dois tinham consciência disso, mas evitavam expor em voz alta, e continuaram a compartilhar informações, como se ainda fossem seguir juntos.

― Me faça um favor, Spock ― Jim pousou seu terceiro copo de conhaque sauriano sobre a mesa. Eles tinham terminado o jantar há uma hora, mas continuaram conversando e bebendo, Jim, o seu conhaque, e Spock, um chá gelado. ― Tenha cuidado estudando aquela singularidade. A última nos trouxe Nero e uma distorção na vida de todos nós.

Spock pensou um pouco no pedido.

Eles tinham alcançado um estado de calmaria e lentidão, como as últimas horas das noites em que eles compartilhavam uma partida de xadrez. Quando tudo ficava mais tranquilo, quando eles se sentiam mais relaxados, mais íntimos.

― Neste caso, tenho que lhe pedir um favor também, Jim. Abstenha-se de descer para qualquer planeta perigoso sem uma escolta devidamente armada. É uma orientação básica do manual de normas da Frota Estelar.

― Eu sei. Uso-o como peso de porta. Qual é Spock, não há diversão sem riscos.

― Jim! Isso é uma atitude completamente... absurda e inaceitável e...

― Spock, Spock... ― Jim começou a rir do espanto do vulcano. Jim teve que fazer um esforço para parar de rir, algumas pessoas nas mesas próximas olhavam para eles com curiosidade. ― Estou só brincando Spock. O Manual está intacto na estante da minha cabine na Enterprise, e tenho uma cópia no meu apartamento. E sim, eu já o li, mais de três vezes no mínimo. Satisfeito?

Jim ainda tentava manter o riso preso em sua boca e Spock ainda o olhava com certa desconfiança.

― Hey, Spock. Você sabe que eu jamais colocaria vida dos meus tripulantes em perigo.

Spock desviou os olhos para um ponto acima do ombro de Jim.

― Sei muito bem que você preza pela vida de qualquer um da sua tripulação, é louvável. Mas é sua falta de cuidado com a própria vida que me preocupa. Não estarei mais lá para garantir sua segurança. Não há como eu chegar a tempo.

Jim se moveu desconfortável. De alguma forma, Jim sabia que a mente de Spock tinha se desviado para aquele dia com Khan. A sala de descontaminação. A radiação queimando sua pele, fechando sua garganta, arrancando-lhe a vida. A primeira vez que Jim teve certeza de que Spock o considerava um amigo, quando Spock se permitiu uma emoção. Suas mãos separadas pelo vidro. Nunca antes, Jim se sentiu separado e ao mesmo tempo tão perto de alguém. Tocando mesmo sem realmente tocar. Foi ali que começou... ou pelo menos quando ele se deu conta.

― Eu prometo ― Jim colocou a mão sobre a de Spock. Ele sentiu o vulcano enrijecer ao toque inesperado, mas Jim não moveu sua mão, nem Spock retirou a dele. ― Tomarei cuidado. Eu prometo.

Ele segurou a mão de Spock com mais força, sabia que não deveria, mas queria que Spock soubesse que ele estava sendo sincero. Spock olhou para ele e assentiu.

Quando Jim soltou sua mão, Spock a puxou lentamente sob a mesa. Sentia seus dedos formigarem.

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Spock esperava próximo a porta do restaurante, enquanto Jim terminava de fazer o pagamento. Ele tinha se oferecido para pagar sua parte, mas Jim recusou veementemente, dizendo que ele o tinha convidado, ele pagaria. Spock viu Jim vir em sua direção quando uma mulher orion o interceptou. Pela reação de Jim, Spock concluiu que os dois deviam ser velhos conhecidos. Jim parecia conhecer muitas mulheres.

Spock desaprovou mentalmente o comportamento da mulher. Ela é uma orion, sabe que seus feromônios e seus toques afetam os outros seres sexualmente, nubla os controles emocionais, priva as pessoas de agir racionalmente. Orions deveriam abster-se de tocar. Mas os orions, em grande parte, não se importam e geralmente gostavam do efeito que provocavam.

Certamente, a mulher orion não se importava. Ela estava muito próxima de Jim, com seus braços sobre ele. Suas mãos tocando a pele nua do pescoço e do rosto de Jim. Ela segurava suas mão e se aproximava dele exageradamente. Jim não a afastava. Spock fechou os olhos. Tentou desviar sua atenção dos dois.

Era uma interação inapropriada, na opinião de Spock. Mas quem era ele para julgar o comportamento livre dos orions... ou de James Kirk?

― ...Eu estou livre agora. O que acha de sairmos e relembrarmos os velhos tempos?

Spock se assustou ao perceber que, inconscientemente, tinha fixado sua audição na conversa de Jim. Podia ouvi-los mesmo à distância, mesmo com as outras vozes ao redor.

― Seria legal... ― Spock ouviu Jim dizer. Ele deu as costas para o casal e virou-se para a saída ―, mas não dá. Já estou acompanhado.

Spock parou.

― Que pena. Numa próxima vez então? ― Jim não respondeu. ― Nos vemos por aí.

Spock continuou de costas para o restaurante e só se virou quando Jim se colocou ao seu lado, tocando o seu braço brevemente.

― Te fiz esperar muito?

― Não... Vi que encontrou alguém. Uma antiga namorada? ― Spock imediatamente se repreendeu pela pergunta. Não era certo invadir a privacidade de Jim.

― Tipo isso. Nos conhecemos em Riverside quando éramos adolescente e... ― ele franziu a testa. ― Você quer realmente conversar sobre ela?

― Na verdade não. Mas se desejar ficar, não há problema. Eu chamo um hovertaxi.

― Ficar? ― Jim indagou confuso.

― Com a garota orion.

― Se eu quisesse ficar com ela, Spock, eu estaria com ela. Hoje é a noite dos caras, lembra? ― Jim sorriu e observou Spock por um momento. ― Você já quer ir embora? Eu o deixo em seu apartamento se você quiser.

― Não tenho pressa de voltar.

― Ah... Que bom... A noite está tão bonita. É uma pena ir para casa tão cedo. Quer andar um pouco?

― Certamente.

Eles seguiram pela calçada lado a lado, como fizeram tantas vezes na Enterprise. Não havia neve, mas o vento era muito frio. Jim arriscou olhares para Spock. O vulcano parecia impassível, mas as pontas de suas orelhas estavam verdes. Jim tirou seu cachecol e ofereceu a Spock. Spock recusou, dizendo que poderia controlar sua temperatura, mas Jim o convenceu a aceitar.

Eles caminharam um bom tempo em silêncio, mas não era desconfortável. Parecia que no silêncio compartilhado, eles tinham mais consciência da proximidade do outro. Era como se pudessem sentir o outro ao lado, embora não se tocassem.

Jim estava feliz por ter Spock como amigo, houve um tempo em que ele achou que eles nunca seriam. Eles tinham tantos desacordos no início. E agora, Jim não conseguia imaginar passar os dias no Espaço sem os discursos lógicos de Spock, sem sua presença altiva e seu apoio moral e emocional, sem sua voz calma, sem os jogos de xadrez tarde da noite. Jim sentiria falta até mesmo da brigas entre Spock e Leonard. Jim riu ao pensar nisso. Ele se virou para Spock e encontrou o vulcano observando-o com uma expressão intrigada.

Jim se perguntava se Spock também sentiria a sua falta, se sua amizade era tão importante para Spock quanto era para ele.

― Preciso te contar porque não fui à festa no sábado.

Spock virou-se para Jim. O humano estava olhando para o horizonte. De alguma forma, a imagem do humano se descava com o cenário ao fundo. Os hovercarros em movimento, os transeuntes, os edifícios iluminados, a ponte Golden Gate parcialmente coberta pela neblina. De alguma forma, Jim se destacava em meio a tudo. O vento forte bagunçando seu cabelo dourado, o frio tingindo sua face de tons rosados. Seu rosto sereno, seus olhos tristes sem um foco definido.

― Você não precisa dizer.

Jim suspirou.

― Mas eu quero que você saiba.

Jim ficou mais alguns minutos em silêncio. Spock lhe deu o tempo que precisava. Jim respirou fundo e começou a contar sobre o irmão, Deneva e o sobrinho. Quando terminou, Jim tinha as mãos em punhos e seus olhos brilhavam.

Os humanos são mais frágeis por dentro do que são por fora.

Spock percebeu que Jim era mais parecido com os vulcanos do que ele imaginava. Jim podia não ser a criatura mais lógica, mas Jim sabia bem esconder seus sentimentos, ocultar suas angústias. Nem todos os humanos eram tão bons em externar uma aparência emocional, quando por dentro experimentavam outras. Spock sabia muito bem o quanto isso era difícil.

Ele se aproximou de Jim, mas sem realmente o tocar. Deliberadamente, deixou cair seus escudos e se permitiu sentir a emoção que emanava de Jim. Spock tocou o ombro do amigo brevemente, tentou transmitir a ele algum conforto.

― Sofro contigo ― Spock falou verdadeiramente.

Jim forçou um sorriso para Spock, agradecido. Ele sentiu um pouco de alívio, não sabia se por compartilhar sua dor ou simplesmente por Spock estar ali com ele. Seu coração se acalmou naquele momento.

― Desculpe pelo clima triste.

― Não precisa se desculpar por isso.

― Está ficando frio. É melhor voltarmos.

Spock concordou e o seguiu em um silêncio companheiro até o hovercarro. Spock observava Jim pelo canto dos olhos. Jim ainda parecia um pouco tristonho.

― Em três dias... ― Spock quebrou o silêncio. Jim olhou para ele com curiosidade. ― ...estarei partindo para Novo Vulcano para visitar meu pai. Foi-me dito que a nave médica que está atendendo os sobrevivente fica próximo de Novo Vulcano. Você gostaria de vir comigo? Poderia descansar e ficaria mais fácil para visitar seu sobrinho.

― Está me convidando para viajar com você para Novo Vulcano?

― Foi o que eu disse. Eu entendo que passar o feriado rodeado por vulcanos pode não ser sua ideia de...

― Eu adoraria, Spock! ― Jim parou na frente dele. ― Se... se não for nenhum incômodo para você e seu pai, é claro.

― Não será.

― Eu adoraria. Realmente.

― Estamos combinados, então.

Jim assentiu e voltaram a caminhar. De repente, Jim sorriu. A jovialidade e a diversão voltando ao seu rosto.

― Porque não me disse que já sabia? ― Spock o olhou sem entender. ― Sobre Deneva. Não lembro de ter dito que a nave médica com meu sobrinho está perto do setor de Novo Vulcano. Foi o Leonard, não foi?

― De fato. Não queria causar problemas ao médico. Por favor, não diga isso a ele. E também... eu queria que você mesmo me contasse. Foi-me dito que amigos compartilham segredos, confiam uns nos outros e que se apoiam em momentos difíceis.

Jim sorriu para ele. ― Obrigado. Não sei o que eu faria sem você e o Leonard. Vocês são meus irmãos agora.

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Eles estavam parados em frente à Embaixada Vulcana, onde Spock estava hospedado.

― Espero que o jantar tenha ajudado a compensar pelo menos um pouquinho a noite da festa. ― Jim estava encostado no hovercarro. ― Não foi uma coisa grande, eu não estava com ânimo para muitas pessoas e foi uma pena o Magro não ter ficado, mas espero que você tenha gostado.

Spock inclinou a cabeça para o lado, pensado, avaliando, comparando. Jim sorriu ao reconhecer o significado do gesto.

― Comparando as duas ocasiões, Capitão, acredito que eu não trocaria esta noite pela noite da festa.

― Mesmo? ― Jim sorriu de orelha a orelha.

― Mesmo.

― Você me chamou de capitão outra vez, Sr. Spock ― Jim empurrou um dedo levemente no peito do vulcano. ― Você não é mais meu subordinado. Pertencemos ao mesmo nível hierárquico agora. Não há mais barreiras entre nós.

― De fato.

Apenas depois de ter dito, Jim parou para pensar em tudo o que aquele fato implicava. Spock não estava mais fora do alcance de Jim, como o resto da tripulação estava. Spock não era mais seu subordinado, ele também era um capitão agora. Agora era possível... talvez... Jim afastou aqueles pensamentos e encontrou Spock o observado intrigado novamente.

Ele sorriu constrangido. Spock parecia confuso.

Jim teve a sensação de que algo a mais deveria ser dito, ou que algo a mais deveria ser feito, como forma de despedida. A sensação de que algo estava faltando antes que ele pudesse sair. Não. Ele estava indo pela linha de raciocínio errada novamente. Na confusão de pensamentos, Jim se viu inclinar impulsivamente e abraçar Spock. Spock estremeceu sob o aperto, e Jim se afastou imediatamente. Os olhos de Spock estavam arregalados.

― Desculpe, desculpe. Eu.. não devia ter...

― Tudo bem.

― Eu só queria... agradecer. Desculpe.

― Jim. Está tudo bem. Foi apenas... inesperado.

― Certo... ― ele se moveu para o veículo, constrangido. ― Boa noite, Spock.

― Boa noite, Jim.

Jim podia ver, pelo retrovisor do hovercarro, a figura de Spock, ainda parado em frente à Embaixada Vulcana, observando-o se afastar.