Titanomaquia

XIV. Perdeste alguma coisa?


Acordei com os primeiros raios de sol e com a bexiga prestes a rebentar. Descalça, desgrenhada e quase cega devido à luz brilhante do sol nascente, arrastei-me até à casa de banho que Eweleïn me indicara e apressei-me a fazer o que tinha a fazer. O meu plano era regressar para a cama e continuar a dormir, mas a pequena banheira de porcelana no canto chamou-me a atenção. Há quanto tempo não tomava banho? Dois dias? Eu devia estar a feder!

Encontrei uma toalha num armário da casa de banho, fui buscar a minha roupa (um pouco fedida) enquanto a banheira enchia e estava quase a entrar nela quando me lembrei de que tinha uma mão envolvida por ligaduras. Não sabia o que seria pior: molhar as ligaduras ou mergulhar a mão nua na água. Decidi tirar o curativo. Teria de o refazer em breve de qualquer maneira e queria dar uma olhada na ferida, para ver em que estado estava.

Sentei-me no meio da água quente e perfumada antes de me dedicar a desenrolar as ligaduras. Atirei-as para o lado e recostei-me na porcelana fria enquanto examinava a minha própria palma.

À primeira vista, não parecia diferente. A derme continuava branca iridescente e os limites da ferida permaneciam azulados. Aproximei mais a mão do rosto e foi então que notei as pontas de pele solta. A epiderme estava a descolar-se da minha mão a partir do buraco que a chama lhe abrira, secando e encarquilhando como se ainda estivesse a arder. Os pequenos pontos que ontem se encontravam apenas chamuscados estavam agora coloridos por um intenso tom azul e, quando arrisquei tocar-lhes, senti a pele áspera e solta, esfolada. Não me doía, por isso segurei o montinho de pele morta com as unhas e puxei. Soltou-se sem dor ou resistência, abrindo uma pequena cratera no meu dedo médio. Através dela… vi mais daquele branco iridescente.

Senti o medo apertar-me a garganta. O que era aquilo? Porque é que a minha mão não estava a sarar? Porque é que a minha pele não parava de cair? Seria eu imune aos medicamentos daquele mundo? Não, não podia ser, os unguentos de Eweleïn tinham funcionado nas minhas pernas. Porque raio não funcionariam na queimadura?

“Esconde bem o ferimento na tua mão. Não deixes que mais ninguém o veja. Não é seguro…”

As palavras de Leiftan surgiram-me tão claras como se ele estivesse mesmo ali ao meu lado. Eu ignorara-as antes por julgar que cuidar do ferimento era o mais correto, mas talvez ele me estivesse a tentar avisar de que era justamente o contrário. A queimadura não era normal e estava comprovado que não iria cicatrizar de forma “normal”. A questão era descobrir como é que cicatrizaria.

— Raios partam… — murmurei para mim mesma, poisando as costas da mão ferida sofre os olhos. Eu tinha de descobrir o que era aquela ferida. Tinha de encontrar Leiftan e fazê-lo contar-me tudo o que sabia.

Lavei-me, sequei-me e vesti-me o mais rápido que a mão ferida me permitiu. Não tinha dores, mas a sensação de segurar a toalha e a roupa contra a palma sensível não era nada agradável.

Não encontrei nenhuma escova nos armários, por isso regressei à enfermaria com o cabelo enrolado na toalha. Não queria mostrar aquele ninho de ratos húmido a ninguém.

Eweleïn já estava na sala quando regressei e estava tão aflita à procura de algo que nem notou o meu regresso.

— Bom dia — cumprimentei-a.

Ela olhou-me por cima do ombro, surpreendida.

— Ah, Eduarda… Bom dia.

— Está tudo bem? — perguntei, lançando um olhar interrogativo na direção do armário que ela estava a virar do avesso.

— Nem por isso… Veio alguém aqui ontem à noite?

— Não, penso que não.

— E hoje de manhã?

— Não sei, eu tenho estado na casa de banho…

Eweleïn mordeu nervosamente o lábio e voltou a chafurdar nos armários.

— Perdeste alguma coisa? — inquiri, ligeiramente preocupada. Já antes me tinham acusado de roubar, esperava não ter de passar por isso outra vez!

Eweleïn afastou-se do armário, esfregando a testa com uma mão exasperada.

— As tuas amostras desapareceram — anunciou.

— O-o quê? — gaguejei, admirada.

— As amostras de pele que te tirei ontem desapareceram. Não vejo o que alguém ganharia em rouba-las, mas eu tenho a certeza absoluta de que as deixei aqui e agora não as encontro… — abanou lentamente a cabeça, incrédula — Eu preciso de avisar a Miiko. Isto não pode ficar assim…

Saiu disparada da enfermaria, continuando a resmungar consigo mesma, e eu fiquei ali especada no meio da sala, quase a deixar cair o queixo.

Aquele Leiftan… Tinha a certeza de que fora ele a roubar as amostras! Só ele o poderia ter feito! Deveria denunciá-lo? Não… Se ele chegara ao ponto de roubar as amostrar para impedir Eweleïn de as estudar, a minha queimadura devia ser um assunto bem mais sério do que eu julgara. Tinha mesmo de esconder aquela ferida…

Tirei dum armário um pequeno rolo de ligaduras e saí disparada da enfermaria, escondendo a mão ferida junto das costelas enquanto me dirigia para o meu quarto. Não podia ficar ali se quisesse impedir Eweleïn de ver a ferida e tirar novas amostras. Seria difícil evitá-la e tinha a certeza de que o meu comportamento só levantaria mais suspeitas sobre mim, mas eu não podia continuar a descuidar o conselho de Leiftan. Não podia deixá-los descobrir o que era aquela queimadura antes de eu própria o fazer. Isso dar-lhes-ia a vantagem e sabe-se lá o que fariam eles com ela…

A primeira coisa que fiz ao chegar ao quarto foi tentar enrolar as ligaduras na mão. Não foi fácil e nem sequer ficaram bem presas, mas cumpriam o seu propósito de esconder a ferida. Lembrei-me entretanto de que ainda tinha o cabelo enrolado na toalha e estremeci só de imaginar o aspeto que teria agora, meio seco e todo emaranhado. Penteá-lo com os dedos não iria resultar, mas eu não tinha nenhuma escova. Onde iria arranjar uma?

O som de uma porta a bater algures lá fora fez-me lembrar que estava num dormitório, pelo que haveria de encontrar alguém com uma escova. Não me agradava a ideia de ir bater às portas e arriscar-me a incomodar algum monstro, mas naquele estado é que o meu cabelo não podia ficar. Inspirei um fôlego de coragem e abri a porta do quarto, espreitando os dois lados do corredor. Não vi ninguém. Avancei para a porta diante da minha e bati suavemente, encostando o ouvido à madeira para procurar uma resposta. Nada. Bati com mais força. Nada. Talvez o ocupante daquele quarto já tivesse saído…

Fui avançando pelo corredor à medida que batia em todas as portas. Ninguém me respondeu nas cinco primeiras e começava a perguntar-me se haveria alguém naquele andar para além de mim quando finalmente obtive resposta.

— Quem é?! — perguntou uma voz feminina mal humorada.

— P-peço desculpa por estar a incomodar, mas preciso de lhe pedir algo…

— Eu perguntei quem é!

— Eduarda. Sou a… humana que veio da Terra.

A pessoa no interior do quarto não respondeu, mas ouvi alguns resmungos baixos e, depois… o tilintar de guizos? O som aproximava-se da porta, por isso cheguei-me rapidamente para trás, colocando uma distância segura entre mim e o possível monstro que aí vinha. Senti-me tentada a fugir quando a porta se começou a abrir, mas… era só uma rapariga. Alta, magra, pele branca, cabelos negros curtos, olhos verde-musgo… Ela era tão… normal… que começou por me causar estranheza.

— O que é que tu queres? — perguntou-me com um suspiro aborrecido, os olhos semicerrados de sono.

— Desculpa incomodar-te — repeti para tentar aplacar o seu mau humor —, mas eu preciso mesmo de uma escova.

Ela franziu o sobrolho.

— Acordaste-me por causa de uma escova?

— Preciso mesmo de uma.

A rapariga ficou a olhar para mim como se me quisesse esganar. Não podia censura-la. Eu também teria ficado danada se me acordassem para pedir uma escova.

Ela acabou por soltar um novo suspiro aborrecido e voltou a entrar no quarto, regressando segundos depois com uma escova.

— Podes ficar com ela — resmungou ao estender-ma, os guizos no seu pulso tilintando quando ergueu o braço.

Eu avancei cautelosamente para pegar a escova e repus a distância entre nós assim que lhe peguei.

— Obriga… — comecei a agradecer, mas fui interrompida pelo estrondo da porta a fechar-se.

“Deu-me uma escova e deixou-me viver, já não é mau”, pensei para comigo enquanto regressava ao meu quarto.

O cabelo estava, como temia, um horror. Demorei perto de vinte minutos a desembaraçá-lo, tentando não arrancar ou partir os fios delicados, e o resultado não foi exatamente o esperado. Não tinha um espelho para ver o meu reflexo, mas bastava sentir a textura do cabelo para saber que estava a parecer um caniche.

Poisei a escova sobre a pilha de livros que trouxera da biblioteca e considerei pegar num para me entreter, mas uma suave batida na porta fez o meu coração saltar de susto. Já tinham vindo à minha procura?

— Quem é? — perguntei, aproximando-me cautelosamente da porta.

— O Nevra. Podemos falar?

— Precisas de alguma coisa?

— Preciso de falar contigo e não o quero fazer através duma porta fechada. Podes abrir?

Humedeci nervosamente os lábios, mas abri um pouco a porta, apenas o suficiente para poder espreitar o vampiro parado no corredor. Ele abriu um pequeno sorriso divertido ao ver-me.

— Não me vais convidar a entrar?

— Não, não quero ser sugada até à morte.

O sorriso de Nevra alargou-se, revelando as presas afiadas.

— Acredita, meu amor, se eu quisesse sugar-te até à morte, precisarias de bem mais do que uma porta para me impedir.

— Um colar de alho serviria?

— Só para te temperar…

— E água benta?

— O que é isso?

— Nada — neguei, soltando um pequeno suspiro — Sobre o que queres falar, afinal?

Nevra inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, adotando uma expressão mais séria.

— Não é o tipo de assunto que queira discutir no meio do corredor. Deixas-me entrar, para falarmos mais à vontade?

A gravidade na sua voz desorientou-me tanto que não consegui pensar numa forma de recusar. Limitei-me a abrir a porta e dar-lhe passagem. Nevra entrou, lançando um olhar curioso em redor.

— O teu quarto é bastante… simples — comentou.

— É mais fácil de limpar — respondi num tom ligeiramente sarcástico enquanto fechava e trancava a porta. Voltei-me para encarar o vampiro… e arrependi-me imediatamente de o ter deixado entrar. Dei um passo instintivo para trás enquanto fixava a figura negra e ameaçadora que se quedava no centro da divisão, virada de costas, mas olhando-me por cima do ombro com uma intensidade que me arrepiou da cabeça aos pés.

Ele sempre fora assim tão alto? Os seus ombros sempre foram tão fortes? O seu cabelo sempre tivera aquele tom de negro vivo? O olho livre da pala sempre brilhara como um diamante?

Qual fora a minha ideia de deixar aquele monstro entrar no meu quarto?!

— Estás com medo que alguém nos interrompa? — perguntou Nevra num tom de voz aveludado, baixando o olhar para a chave que eu acabara de rodar.

— N-não! — neguei rapidamente — É só… o hábito, acho eu…

— Estou a ver… — murmurou antes de se encaminhar para o colchão, sentando-se na borda — Senta-te aqui. A nossa conversa pode demorar…

Engoli em seco, tentada a ceder à vozinha que me gritava para correr dali para fora, mas forcei-me a avançar até ao colchão. Deixei-me cair ao lado do vampiro, com os joelhos a tremer.

— Estás bem? — perguntou Nevra, mirando-me com mais atenção do que seria propriamente necessário — Estás pálida…

— Es-estou bem, f-foi apenas… uma tontura que tive quando me sentei — pigarreei para aclarar a voz – Já me podes dizer sobre o que queres falar?

Nevra mirou-me por alguns instantes, talvez ainda a avaliar a minha cor, antes de dizer:

— Sim… Vim falar contigo por causa do roubo na enfermaria.

— Ah — fiz, ficando ainda mais nervosa — Vocês acham que fui eu, certo?

— Nós não achamos nada, queremos apenas ouvir o que tens a dizer na tua condição de testemunha.

— Hum… — fiz, pouco convencida.

— Podes falar-me do que aconteceu ontem à noite? — perguntou Nevra, iniciando o interrogatório.

Eu inspirei fundo antes de responder:

— Não sei o que queres que diga, eu não vi ou ouvi nada. Deitei-me na cama assim que a Eweleïn saiu e dormi que nem uma rocha durante toda a noite. Se alguém lá entrou, eu não dei por nada.

— Não estavas na enfermaria quando a Eweleïn lá chegou.

— Estava na casa de banho.

— Acordaste cedo.

— A claridade acordou-me e tinha a bexiga cheia.

— Porque é que pediste à Eweleïn para dormir na enfermaria?

Eu soltei um risinho escarninho.

— Olha à tua volta — pedi, indicando o quarto com um gesto das mãos — Não lhe pedirias o mesmo se tivesses de dormir num quarto destes?

Nevra não respondeu, preferindo fixar a minha mão ferida. Saltei de susto quando ele fechou subitamente um punho em redor do meu pulso, engolindo um grito a custo. Chiça, ele era rápido!

— Encontrámos as tuas ligaduras no chão da casa de banho e, tanto quanto sei, a Eweleïn não te fez nenhum curativo esta manhã — comentou o vampiro enquanto examinava a minha mão — Donde veio isto?

— F-fui eu que fiz.

— Porque não pediste à Eweleïn?

— Ela parecia… exaltada por causa do roubo, não quis incomodá-la.

— Foi por essa mesma razão que saíste da enfermaria sem dizer nada a ninguém?

— Não. Saí da enfermaria porque não queria que vocês me acusassem de roubar outra vez.

Nevra soltou-me, abrindo um pequeno sorriso.

— Sabes que fugir não é a melhor forma de provares a tua inocência, certo?

— Sim, mas também sei que a Miiko não iria esperar para ouvir a minha versão dos factos e que me mandaria para as masmorras assim que me metesse a vista em cima.

Nevra comprimiu os lábios, parecendo estar a conter um risinho.

— Parece que já conheces a Miiko… — comentou antes de se levantar com um pulo ágil — Não te preocupes, ela não te mandará para as masmorras. Eu dir-lhe-ei que és inocente.

— A sério? Quero dizer… acreditas em mim? Não me vais obrigar a beber um elixir da verdade para ter a certeza de que não estou a mentir?

Nevra sorriu e tirou um pequeno frasco do bolso, mostrando-mo.

— A Miiko queira que bebesses, mas eu não achei… justo. As amostras são tuas e julgo que tens o direito de fazer o que quiseres com elas, inclusive recuperá-las — voltou a guardar o frasco — Não estarias a fazer mais do que proteger a tua privacidade e acho que ninguém te pode censurar por isso.

— Oh — fiz, surpreendida — Não tinha pensado a questão dessa forma… mas acho que tens razão.

— Pois tenho e tu não precisas de ter medo de admitir se foste tu que roubaste as amostras.

— Não fui. A sério — neguei, perguntando-me se por acaso aquele discurso todo não fora uma armadilha para me fazer confessar o crime. Hum… espertinho…

Nevra acenou uma vez com a cabeça, cedendo.

— Tudo bem, acredito em ti, mas isso torna o problema muito mais sério.

— Porquê?

— Se não foste tu, quer dizer que anda por aí alguém interessado em ti… e sabe-se lá o que poderão fazer-te com a informação que retirarem daquelas amostras.

O meu coração contraiu-se de medo ao som daquelas palavras, mas forcei-me a acalmar. Eu sabia quem roubara as amostras e sabia porquê, não precisava de ficar preocupada. Leiftan estava a tentar proteger-me, não me faria mal… ou, pelo menos, era nisso que eu queria acreditar.

— Temos de recuperar as amostras — constatei num murmúrio que não tive de me esforçar para que parecesse assustado.

— Sim, temos — concordou Nevra — Não te preocupes, eu mesmo irei liderar a investigação. Vou recuperar essas amostras num instante.

— Obrigada, assim espero…

Nevra dirigiu-me um sorriso tranquilizador.

— Eu tenho de ir agora, mas não hesites em vir falar comigo se entretanto te lembrares de algo.

— Claro…

— E se voltares a precisar dum sítio onde dormir, há um espacinho na minha cama guardado para ti — acrescentou, piscando-me um olho matreiro.

— Vai sonhando…

Nevra soltou uma gargalhada e, depois de me atirar um beijo de despedida, encaminhou-se para a porta.

— Nevra — chamei antes que este saísse, fazendo-o olhar-me por cima do ombro — O Leiftan também está a investigar o roubo das amostras?

— Não, o Leiftan deixou a cidade de madrugada para cumprir uma missão da Miiko. Porque perguntas?

— Nada, estava apenas curiosa — defendi-me com um encolher de ombros — Ele tem sido bastante… amável comigo e fiquei a pensar se iria participar na investigação.

Nevra fixou-me por alguns instantes, suspeitoso, mas acabou por abrir um pequeno sorriso trocista para disfarçar.

— Lamento informar-te, mas o teu cavaleiro de armadura branca partiu numa das missões ultrassecretas da Miiko, por isso não deverás vê-lo nos próximos tempos.

— Cavaleiro de armadura branca? — repeti, erguendo uma sobrancelha.

Nevra riu-se, atirou-me um novo beijo e foi-se embora.

Eu soltei um longo suspiro cansado e esfreguei lentamente o rosto com as mãos, sem querer acreditar na rapidez com que a minha vida se complicara. Não bastara cair num mundo paralelo, ser acusada de roubo e ferir a mão direita, tinha também de passar pela experiência de agente dupla. Iria fingir ajudar Nevra a encontrar as amostras ao mesmo tempo que interrogava Leiftan para lhe extorquir tudo o que sabia. Poderia ser até uma experiência interessante e excitante se ele não tivesse partido numa missão fora da cidade! Fantástico…

O ronco do meu estômago vazio colocou fim às minhas lamentações silenciosas. Se queria realmente levar aquela empreitada avante, precisava primeiro de me alimentar. Depois veria o que podia fazer…