Titanomaquia

VII. Jamon não dizer mais nada.


O caminho de regresso às masmorras foi bem mais demorado do que da primeira vez. As minhas pernas não estavam ainda em condições de suportar o meu peso, muito menos de descer as escadas que ainda há pouco subira; sentia os músculos estremecer a cada degrau que descia, ameaçando falhar-me a qualquer momento. Temi que o homem-javali, tal como o general, ignorasse o meu estado e me forçasse a seguir a sua passada apressada, mas, para minha descomunal surpresa… não o fez. Muito pelo contrário! Assim que notou a minha fraqueza, soltou o punho que apertara em redor do meu pulso e ofereceu o seu enorme braço para me apoiar. O ato gentil pareceu-me tão estranho, principalmente vindo daquilo que eu julgara ser um monstro, que a única coisa que consegui fazer foi fixá-lo, boquiaberta. Quando ele percebeu que não me mexeria tão depressa, fez um gesto de cabeça na direção do próprio braço ao mesmo tempo que soltava um pequeno ronco de incentivo.

— Hã… Obrigada — murmurei, poisando hesitantemente as mãos no enorme antebraço.

O homem-javali acenou levemente com a cabeça e recomeçou a descer as escadas, apoiando-me pacientemente.

Chegada às masmorras, fui apresentada a uma outra cela, dado que o homem mascarado deixara a fechadura da minha primeira cela completamente inutilizada. O homem-javali apoiou-me até ao catre, ajudando-me a sentar antes de sair e trancar a porta, diante da qual permaneceu. Eu fiquei a observar as suas imensas costas acastanhadas, parcialmente tapadas pelo metal da sua couraça, perguntando-me se ele estaria disposto a conversar. Eu sabia que ele falava… e, naquele momento, não queria mesmo ficar sozinha com os meus pensamentos. Aceitar que me encontrava numa “realidade alternativa” já era bastante difícil para a minha sanidade mental; lembrar-me de que poderia ficar ali presa para sempre apenas piorava a situação. O melhor era não pensar no assunto, para evitar enlouquecer. Concentrar-me-ia em enfrentar um problema de cada vez, até que me fosse permitido sair dali.

Pigarreei levemente para tentar chamar a atenção do homem-javali, mas ele ignorou completamente o som. A ausência de reação não era auspiciosa e desanimou-me um pouco, mas recusei-me a desistir.

— Então… hã… tu tens nome?

O homem-javali lançou-me um olhar estranho por cima do ombro musculado e eu não pude censura-lo. Fizera-lhe uma pergunta bastante ridícula, tendo em conta o facto de já ter ouvido a mulher-raposa chamá-lo antes. Qual era o nome mesmo…?

— Jamon ser Jamon — grunhiu ele.

Eu pisquei os olhos, surpreendida por ter obtido uma resposta.

— Jamon — repeti, estranhando um pouco o nome — Eu chamo-me Eduarda, como deves ter ouvido.

Ele apenas grunhiu uma concordância. Não parecia ser muito falador… Felizmente o curso de Jornalismo ensinara-me a ser persistente!

— E este sítio, como é que se chama? O vampiro que me apanhou disse o nome, mas eu não consegui apanhar…

— Eldarya ser Eldarya.

— Eldarya, exato. Eu sabia que começava com “El”.

Jamon não respondeu e eu não soube que mais dizer, por isso ficámos vários instantes em silêncio até arranjar maneira de continuar a conversa:

— A mulher-raposa que me mandou para aqui… é a chefe deste sítio? Tipo a rainha de Eldarya?

— Eldarya ser livre, Eldarya não ter rei. Miiko ser líder da Guarda Reluzente, Guarda-Líder de Eel.

— Eel? O que é isso?

— Eel ser cidade. Cidade grande.

— É a única cidade grande?

— Não, haver cinco.

— Estou a ver…

Voltámos a mergulhar em silêncio, mas desta vez não foi por estar à procura duma maneira de continuar a conversa. Havia uma pergunta que eu queria fazer, mas temia que esta não fosse bem recebida pelo humanoide. Ele, tal como os outros, devia estar convencido de que eu queria partir e/ou roubar o cristal, de modo que perguntar sobre a pedra apenas me faria parecer ainda mais suspeita.

Decidi arriscar. Não tinha nada a perder mesmo.

— As outras cidades grandes também têm cristais?

Jamon hesitou, confirmando o meu medo de ser mal interpretada, mas respondeu:

— Sim.

— Eles são importantes para vocês, não é verdade?

— Sim…

— Porquê?

Desta vez, Jamon soltou um grunhido arreliado.

— Eduarda falar demais. Querer saber demais. Ficar quieta. Jamon não dizer mais nada.

— Jamon, tu sabes que não sou um perigo para o cristal — disse-lhe num tom persuasivo — Sou um fraco ser humano, estou presa e já garanti, sob o efeito dum elixir da verdade, que não queria danificar o cristal. Podes confiar em mim…

— Miiko não confiar Eduarda, Jamon não confiar também. Eduarda humana, voltar para casa, não precisar saber segredo do cristal. Quieta agora. Jamon não dizer mais nada.