Titanomaquia

LXXII. Estou curada?


Eu não estava com muita vontade de regressar à estalagem, por isso, decidi aproveitar o abrigo do estábulo e ficar ali mais um pouco. Estava a olhar em volta, em busca de um sítio onde me pudesse sentar, quando ouvi um relincho baixo vindo da única baia que permanecia fechada. Curiosa, aproximei-me para espreitar por cima da porta de madeira, deparando-me com uma miniatura da mesma espécie de cavalo com asas que Leiftan levara consigo. O bicho fixou-me com os seus perturbadores olhos brancos e escavou a palha no chão com os cascos dianteiros antes de resfolegar baixinho.

— Também estás sozinho, hã — constatei com um murmúrio — Podemos fazer companhia um ao outro, que tal?

O pegasus limitou-se a olhar para mim, como se estivesse a tentar descodificar as minhas palavras. Eu fiz um pequeno sorriso e estendi a mão, mas ele não pareceu gostar do gesto, porque relinchou alto e recuou apressadamente até ao fundo da baia. Soltei um pequeno suspiro entristecido e voltei a recolher a mão. Fantástico… Nem os animais daquele mundo gostavam de mim. Será que eles pressentiam a minha raça? Ou seria o sangue que manchava as minhas mãos?

Estava prestes a dar meia volta e retomar a minha busca por um assento quando vi o pegasus aproximar-se mais uma vez, com passos cautelosos e muito desconfiados. Parou a pouco mais de um metro de distância de mim e, após alguns segundos, arrisquei estender novamente a mão. Desta vez, o bicho chegou-se à frente e cheirou demoradamente os meus dedos. Terminada a inspeção olfativa, sacudiu a cabeça, resfolegou levemente e recambiou a sua atenção para o balde que servia de manjedoura. Parecia que tinha não só perdido o medo, como também o interesse.

Observei o cavalo com asas durante algum tempo, vendo-o beber uma estranha água com notas de música flutuantes, até os meus olhos poisarem numa caixa com vários tipos de escova. Agora que o bicho parecera aceitar a minha presença, será que me deixaria escová-lo…?

Decidindo que não faria mal tentar, fui buscar duas escovas antes de abrir a porta da baia. O pegasus dirigiu-me um olhar curioso por cima do ombro, mas veio até mim com um relincho animado assim que viu o que eu trazia na mão. Não consegui evitar um risinho divertido diante do seu entusiasmo e aproveitei para lhe fazer algumas carícias no focinho macio antes de me concentrar em escová-lo.

Eu sempre ouvira dizer que cuidar de um cavalo podia ser uma atividade bastante terapêutica, mas aquela foi a primeira vez em que senti que isso era verdade. A quietude satisfeita do animal era contagiante, de uma estranha forma, por isso continuei a escova-lo, mesmo depois de a sua pelagem estar perfeitamente limpa e penteada. Devo ter passado mais de uma hora ali e, no final, estava coberta de pequenos pelos pretos e da estranha purpurina de que eram feitas as estrelas que o enfeitavam. Sentia-me, todavia, muito mais calma e centrada. Sentia-me, enfim, pronta para enfrentar o mundo exterior e regressar à estalagem.

Teci uns miminhos de despedida no pegasus, arrumei as escovas, refiz a camuflagem e saí do estábulo com passos mais firmes do que aqueles com que entrara. Uma firmeza que, infelizmente, foi esmorecendo à medida que me aproximava do largo diante da estalagem. Umas quantas dezenas de faeries caminhavam de um lado para o outro e, apesar de serem em menor número do que antes, isso não atenuava em nada o meu medo e nervosismo. Simplesmente tornou a minha missão de chegar à estalagem um pouco mais fácil…

Deixei cair a camuflagem assim que me vi entre quatro paredes, soltando um longo e pesado suspiro de alívio… o qual voltei a aspirar quando me lembrei de que nem ali estava a salvo de encontros desagradáveis. Procurando evitar cruzar-me com (mais) algum enfermeiro rancoroso, apressei-me a dirigir para as escadas. Tinha acabado de poisar o pé no primeiro degrau quando uma silhueta masculina surgiu lá no topo. O meu sangue gelou de imediato… até reconhecer o sorriso sardónico de Ezarel.

— Cuspideira — saudou-me enquanto descia as escadas — Como estás?

— Bem — respondi com um mínimo de sinceridade. Acho que aquela era a primeira vez que me sentia genuinamente feliz por me cruzar com ele e não com outra pessoa qualquer…

— Estás com boa cor — concordou o elfo ao parar diante de mim, franzindo o nariz logo de seguida — Apesar de cheirares a cavalo. Que raio andaste a fazer?

— Ah, eu… — pigarrei levemente, tentando esconder o embaraço provocado pelo seu comentário — Eu estive a escovar um cavalo com asas…

— Sua idiota! — ralhou Ezarel, dando-me uma sapatada na nuca que me fez soltar um “au” de protesto — Já te esqueceste que tens os pulsos e os tornozelos em carne viva?! Não podes fazer esforços, muito menos mexer no pelo imundo de um mascote!

— O pelo não estav…

— Olha para isto! — continuou o elfo, segurando o meu pulso para revelar as ligaduras cobertas de purpurina — Os curativos estão cheios de porcaria de galorze! Estás assim tão desesperada por apanhar uma infeção?!

— Isso são só uns… — tentei dizer, mas fui novamente interrompida:

— Um momento… Estes não são os curativos que te fiz ontem à tarde?

— Sim…

— Porque não fizeste curativos novos esta manhã?

— Era suposto ter feito isso?

— Óbvio! Eu mandei a Alajéa tratar disso!

— Estás a falar da miúda com barbatanas nas orelhas que quase me fulminou com o olhar quando foi trocar os pensos do Lee? — inquiri, levantando uma sobrancelha.

Ezarel abriu a boca para responder, mas voltou rapidamente a fechá-la, comprimindo os lábios com ar muito contrariado.

— Eu devia ter calculado… Maldita sereia inútil! — resmungou antes de me puxar escadas acima — Anda, vamos tratar disso agora.

— Es-espera, mais devagar! — protestei quando quase tropecei nos degraus.

Agindo como se eu não tivesse dito rigorosamente nada, Ezarel levou-me através do corredor do primeiro andar até uma pequena sala que parecia ser o laboratório de um cientista louco. Várias mesas tinham sido dispostas de modo a imitar bancadas de laboratórios e, sobre elas, havia toda a sorte de aparelhos, frascos e utensílios. Eu senti um pequeno arrepio descer-me pela espinha enquanto me perguntava se seria agora que o elfo me tentaria tirar um pedaço para estudar…

— Senta-te, cuspideira — convidou Ezarel, indicando um banquinho ao lado de uma mesa relativamente vazia, se comparada com as outras. Eu certifiquei-me de que não havia nenhum objeto cortante nas redondezas antes de obedecer.

O Diretor da Absinto recolheu aquilo de que precisava numa bandeja metálica antes de puxar outro banquinho para se sentar na minha frente. Sem qualquer cerimónia, agarrou um dos meus pulsos e começou a desenrolar a gaze manchada de sangue seco. Ia a meio do processo quando, subitamente, todo o seu corpo enrijeceu. Somente a cabeça se movia, para cima e para baixo, para que os orbes esbugalhados de espanto pudessem alternar entre o meu rosto e o meu braço. Alarmada pela sua reação, baixei rapidamente o olhar para as ligaduras desfeitas pela metade… para me deparar com um pulso praticamente curado. As horrendas lacerações que ainda ontem rasgavam a minha pele estavam agora reduzidas a meras cicatrizes avermelhadas.

— Estou curada? — admirei-me — Tão depressa?

— Devia ser eu a fazer-te essa pergunta! A tua sorte é que não quero saber a resposta — resmungou o elfo, continuando a desenrolar as ligaduras.

Eu franzi o sobrolho, confusa.

— Como assim, não queres saber a resposta?

Ezarel revirou levemente os olhos antes de se concentrar no outro pulso.

— Não é óbvio? Não tenho qualquer interesse em saber detalhes da tua vida íntima!

— Da minha vida íntima? Mas do que é que…?

— Poupa-me da tua sonsice, cuspideira, eu sei que passaste a noite com o Nevra!

— O qu…? N-não! Não é nada do que estás a…! — tentei defender-me com as bochechas em chamas, mas Ezarel cortou-me a palavra:

— Já disse que não quero saber!

— Diz a pessoa que ainda ontem parecia extremamente interessada na adoração dos titãs! — volvi, arreliada.

— Eu só queria saber como os titãs reúnem Maana, não os métodos que usas com os teus adoradores!

— Já disse que não é nada do que estás a pensar!

— E eu já disse que não quero saber! Entre descobrir que vocês passaram a noite inteira às cambalhotas ou que ele te lambeu as feridas, não sei qual seria pior! Trata é de tirar as botas para poder ver os teus tornozelos! Se estiverem como os pulsos, não vais precisar de curativos novos. Podes ir à tua vida assim que recolher um pouco do teu sangue.

— Porque raio queres recolher um pouco do meu sangue? — inquiri enquanto me descalçava.

— Para descobrir exatamente quanta Maana produziste desde ontem.

— Isso importa?

Ezarel puxou o meu pé direito para o seu colo e começou a desenrolar as ligaduras no meu tornozelo enquanto respondia:

— Dado que a Maana é a unidade de medida do poder místico dos titãs, sim, importa. A tua utilidade no campo de batalha depende da quantidade de Maana que tens no corpo. E, já que falamos nesse assunto, dar-me-ias permissão para colher regularmente uma amostra do teu sangue? Eu gostaria de registar as flutuações da tua Maana.

— Isso é mesmo necessário? Não basta saberes que a minha Maana vai continuar a aumentar?

— Não — ditou, lançando-me um olhar incisivo antes de tornar a examinar as cicatrizes no meu tornozelo — Eu sou um alquimista, trabalho com dados concretos, não com especulações, principalmente quando nem sequer podemos afirmar com absoluta certeza que a tua Maana vai continuar a aumentar. É mais provável diminuir ou estagnar no nível em que está agora, na verdade.

— O quê? Porquê?

— Por causa dos teus futuros treinos — explicou enquanto trocava o meu pé direito pelo esquerdo — Não sei com que rapidez os titãs recuperam a Maana perdida, mas, conhecendo o Nevra, ele vai-te fazer gastar uma boa quantidade de energia — fez uma pequena careta desprazida — Pensando bem, ele seria até capaz de te exaurir por completo. Vou ter mesmo de manter os teus níveis de Maana debaixo de olho — concluiu com um suspiro — Os treinos serão onde e quando?

— Não sei. Eu e o Nevra não falámos sobre isso.

Ezarel soltou uma mistura de risinho com soluço de desdém.

— Sim, imagino que estivessem demasiado ocupados com outras coisas ontem à noite.

— Importaste de parar com isso? — ralhei, corada de raiva e vergonha — Já disse que não aconteceu nada do que estás a pensar! E, para quem não quer saber detalhes, fazes muita questão de puxar esse assunto sempre que podes!

O elfo soltou mais um risinho, divertido desta vez.

— Tudo bem, tudo bem, já cá não está quem falou.

— Ótimo!

O resto do exame decorreu de forma tranquila e célere. As feridas nos meus pulsos e tornozelos estavam completamente seladas, portanto não precisavam de cuidados especiais. Ezarel limitou-se a passar um paninho húmido nas cicatrizes antes de prosseguir com a colheita de sangue e, dois minutos depois, estava finalmente livre para regressar ao quarto de Lee.

Não sei o que esperava ver quando atravessei a porta do quarto, mas com certeza não esperava encontrar Lee, Lithiel e Adonis sentados em torno da mesa diante da janela, fixando-me com expressões tensas. Eu estaquei a meio do gesto de fechar a porta atrás de mim, sentindo-me como se tivesse acabado de interromper uma conversa muito séria. Deveria dar meia volta e ir embora…?

— Onde estavas? — Lithiel exigiu saber sem qualquer cerimónia.

Hesitei, surpreendida com a severidade da sua voz. Seria o seu mau humor matinal…?

— Fui dar uma volta pela vila — respondi enquanto me aproximava — Precisava de apanhar um ar.

— Bastava-te abrir uma janela. Ou estás à espera que os faeries te abram a garganta para poderes respirar melhor?

— O quê…?

— A sério, Eduarda, em que diabos estavas tu a pensar quando decidiste sair para o meio de uma multidão de faeries? Apodreceu-te o cérebro, por acaso?

— Nós estávamos muito preocupados contigo — Lee intrometeu-se na conversa para tentar apaziguar os ânimos — Tu não parecias estar bem quando saíste daqui e ficámos com medo que os faeries se aproveitassem disso para te fazer mal ou…

— Ou que fizesses uma nova estupidez — completou a doppelganger — Tu estás ciente da tua própria situação, não estás, Eduarda?

— Referes-te ao facto de os faeries me odiarem de morte e quererem comer o meu fígado? Sim, estou bastante ciente…

— Não, estou a falar do facto de, aos olhos dos faeries, tu não passares de um cão de caça numa trela. Uma trela que eles esperam que a Miiko mantenha o mais curta possível…

— O quê? O que queres dizer com isso?

Lithiel revirou os olhos, impaciente.

— A sério que não percebeste? Caramba, Eduarda, usa a cabeça! Porque achas que está tudo tão calmo por aqui? Porque achas que não está uma multidão de faeries furiosos acampada lá fora, a exigir a tua morte? É porque eles acreditam que a Miiko e a Huang Hua te controlam com mão de ferro! Eles acreditam que estás completamente manietada pela autoridade delas! Sabendo isso, o que achas que os faeries irão pensar se te virem passear completamente sozinha pela vila?

— Eles não me viram, eu estava camuflada.

— Isso não me tranquiliza, pelo contrário! Se os faeries descobrirem que podes esconder a tua presença até dos melhores predadores da espécie…

— Eles iriam pensar que eu pretendo usar esse poder para fugir — conclui, alcançando a sua linha de raciocínio.

— Ou para atacar os faeries pelas costas! — acrescentou a doppelganger antes de soltar um suspiro e adotar uma expressão mais calma — Ouve, Eduarda… Eu imagino que a ideia de parecer um cão de caça numa trela não te agrade, mas é melhor do que ser considerada uma ameaça. O controlo que a Miiko e a Huang Hua supostamente detêm sobre ti tranquiliza os faeries e, consequentemente, mantém-te segura. É por isso que não podes pura e simplesmente andar sozinha pela vila! Isso é o mesmo que desacreditar a autoridade da Miiko na frente de toda a gente!

As suas palavras trouxeram-me à memória o breve encontro com Valkyon no início do dia. Ele também comentara o facto de eu estar sozinha e “sem vigilância”, provando que a teoria da doppelganger não devia estar muito longe da verdade.

— A Lithiel pensou que poderíamos criar uma escolta para ti — revelou Lee, trazendo-me de volta ao presente — Assim, terás sempre alguém contigo para te proteger e, ao mesmo tempo, convencer os faeries de que estás sob o controlo e a vigília da Miiko.

— Oh — fiz, sentindo-me mais agradada pela ideia do que gostaria de admitir — É uma boa ideia, mas… quem faria parte dessa escolta?

— Por enquanto, seremos só nós — disse Lithiel, apontando para si, Lee e Adonis —, mas tenho a certeza que o Nevra também irá querer participar quando souber o nosso plano.

— Sim, imagino que sim — hesitei, baixando nervosamente o olhar para os meus próprios pés antes de murmurar — Obrigada…

— Obrigada por quê? — admirou-se Lithiel.

— Por tudo. Mas, principalmente… por ficarem do meu lado apesar de… tudo o que aconteceu…

— Era o mínimo que podíamos fazer — defendeu Lee com um sorriso afetuoso.

— Afinal, as nossas vidas dependem da tua — acrescentou a doppelganger.

— N-nós não vamos deixar que ninguém te faça mal, Eduarda — prometeu Adonis, pronunciando-se pela primeira vez desde que entrei — E-eu não tenho muita experiência em combate, por isso não sei se poderei ser útil… m-mas prometo que vou esforçar-me imenso!

— Porque não treinas com a Eduarda? — sugeriu Lithiel — O Nevra irá treiná-la para a próxima batalha, talvez ele aceite treinar-te a ti também.

— Oh… Isso… é uma ótima ideia — concordou Adonis, ensaiando até o que parecia ser uma pequena curva animada nos lábios — Eu falarei com o Mestre Nevra assim que tiver a oportunidade. Obrigado, Lithiel…

A doppelganger fez um aceno aprovador, mas três suaves batidas na porta impediram-na de acrescentar mais alguma coisa. Lee deu licença para entrar e a rapariga com barbatanas nas orelhas marchou para dentro do quarto. Ela não cumprimentou ou sequer dedicou um olhar aos presentes, limitando-se a ir diretamente até Lee para poder trocar os curativos.

— O teu nariz está a sarar bem — comentou enquanto espalhava uma pomada na referida zona — e os exames não acusaram nada de mais, só precisas de te alimentar melhor e beber muita água. Portanto… acho que posso dar-te alta.

— Já? — admirou-se a ninfa.

— Sim. O sangue do Nevra acelerou bastante a tua cicatrização, por isso já não precisares de cuidados constantes. Não faz sentido manter-te aqui.

— Espera, isso quer dizer que tenho de sair da estalagem? — deduziu Lee com uma expressão horrorizada.

— Bem, sim. Imagino que já te tenham informado, mas só pessoas gravemente feridas têm permissão para ficar aqui.

— Ter o nariz desfeito não conta como estar gravemente ferido?

— Lamento, mas não — a rapariga afastou-se ao terminar de tratar o corte no braço de Lee — Vou buscar uma muda de roupa para ti. Espera aqui.

E foi-se embora, deixando uma Lee muito desanimada para trás.

— Nem acredito que vou perder a minha cama macia e quentinha depois de só passar uma noite nela — lamentou a ninfa com um pequeno beicinho.

— Ela está a esconder qualquer coisa — revelou Lithiel, sem parar de fixar desconfiadamente a porta por onde a rapariga com barbatanas saíra.

— O quê? A Alajéa mentiu-me? — inquiriu Lee, endireitando-se com ar desconfiado.

— Não tenho a certeza…

— Como assim, não tens a certeza? Tu não cheiras mentiras?

Lithiel revirou os olhos, enfadada.

— Eu senti um leve odor a mentira vindo dela, mas foi demasiado fraco para poder perceber exatamente qual foi a mentira que ela pronunciou.

— Será que ela mentiu sobre o meu estado? — ponderou Lee, apreensivo.

— Não, se fosse isso, o cheiro teria sido muito mais forte. Deve ter sido só uma mentirinha sem importância. Ou assim espero…

O canto da boca de Lee descaiu num trejeito duvidoso, mas, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, a tal Alajéa retornou ao quarto. Trazia uma pequena trouxa de roupa debaixo do braço e um par de botas na mão e entregou tudo a Lee enquanto fazia algumas advertências e recomendações sobre as lesões por curar. Do outro lado da mesa, Lithiel mirava a rapariga como se estivesse a tentar dissecá-la com o olhar. Era difícil dizer se o seu olhar fixo era mera concentração ou se ela se apercebera de alguma coisa suspeita, mas preferi esperar que Alajéa saísse do quarto antes de interpelar a doppelganger:

— Descobriste alguma coisa? Ela mentiu de novo?

Lithiel torceu levemente a boca.

— Não, não descobri nada e, não, ela não mentiu — soltou um pequeno suspiro desiludido antes de se levantar — Lee, nós vamos esperar por ti lá em baixo, pode ser?

A ninfa acenou uma rápida concordância e eu e Adonis não tardamos a seguir Lithiel para fora do quarto para que Lee pudesse trocar de roupa com privacidade. Descemos as escadas até ao átrio e quedamo-nos os três num canto perto da entrada da estalagem para esperar por Lee. Não estávamos ali nem há cinco segundos quando duas enfermeiras surgiram com um carrinho de serviço recheado de comida, vindas do que parecia ser uma cozinha. Estavam a ter uma conversa animada e risonha entre elas, mas silenciaram-se subita e abruptamente quando se aperceberam da minha presença. Uma delas até abrandou o passo para me mirar de alto a baixo como se estivesse a ponderar fazer ou dizer algo, mas um olhar de viés de Lithiel pareceu ser o suficiente para a dissuadir. Erguendo o queixo com um semblante inexpressivo, foi ajudar a sua colega a carregar o carrinho escadas acima.

Era bom constatar que a ideia da escolta estava a dar resultado, mas, ao mesmo tempo… não me fazia sentir tão bem como achei que faria. A presença dos meus amigos poderia desencorajar os faeries de se aproximar e/ou fazer comentários, mas a verdade é que eles não tinham de pronunciar uma única palavra para que eu entendesse o quando eles me detestavam e queriam longe dali. Bastava o seu olhar…

Senti um suor frio humedecer as minhas costas quando me lembrei que, muito em breve, iria enfrentar uma multidão com aquele tipo de olhar. Eu conseguira evitar cruzar-me com grandes grupos de faeries até àquele momento, mas, quando Lee chegasse e saíssemos da estalagem… haveria centenas deles do lado de fora. E, desta vez, não teria sequer a camuflagem para me salvaguardar…

— Estou pronto!

O anúncio de Lee fez-me saltar de susto ao mesmo tempo em que o meu coração me caia aos pés. Estivera tão distraída com o meu medo que nem me apercebera da sua chegada. Não me apercebera, aliás, de que Lithiel já estava a abrir a porta da estalagem, segurando-a para que passássemos. Lee foi a primeira a fazê-lo, saindo com passos confiantes e descontraídos. Eu, contudo, não consegui imitá-la. Não estava preparada. Eu não…

Um toque quente na minha mão direita fez-me recolher bruscamente o braço, alarmada. O meu gesto pareceu surpreender e desconcertar Adonis, que escondeu rapidamente a própria mão atrás das costas antes de baixar o olhar para os próprios pés. Corado, gaguejou baixinho:

— D-d-desculpa, eu não queria… S-s-só achei que seria mais fácil… P-por favor, perdoa-me…

— Não faz mal, não faz mal, está tudo bem — apressei-me a dizer, percebendo, tarde demais, que o toque fora simplesmente uma tímida tentativa de Adonis de segurar a minha mão — Eu só não estava à espera e… assustei-me…

— D-desculpa — gemeu o rapazinho, parecendo ainda mais atormentado do que antes — N-não vou voltar a fazer isso sem autorização, prometo…

Eu abri um pequeno sorriso enquanto tentava controlar a vontade de lhe fazer festinhas na cabeça. Tinha-me esquecido de quão adorável ele era…

— Não sejas pateta. Eu disse que estava tudo bem, não disse? Não me importo que me pegues na mão.

E, para comprovar o que dizia, estendi a mão para ele. Adonis mirou-a por alguns segundos antes de erguer timidamente o olhar, como se quisesse ter a certeza de que eu estava a falar a sério. Esbocei um pequeno sorriso de incentivo para o convencer e, apesar de hesitante e muito corado, o centauro poisou a sua palma sobre a minha.

— Já acabaram com o namorico ou vão continuar até me fazer vomitar? — perguntou Lithiel, ainda a segurar a porta da estalagem.

Eu lancei-lhe um olhar reprovador enquanto Adonis corava até quase sangrar do nariz. A doppelganger limitou-se a erguer uma sobrancelha desafiadora e a apontar para o exterior da estalagem. Eu engoli ruidosamente em seco, sentindo um nó de medo apertar a minha garganta, mas avancei para a porta com o centauro atrás de mim.

— Ah, finalmente! — exclamou Lee quando nos viu — Pensei que se tinham perdido!

Nem eu, nem Adonis respondemos à sua tentativa de piada. O centauro ainda se estava a recompor do comentário de Lithiel e eu estava a fazer o que podia para não entrar em pânico. Instintivamente, apertei mais a mão do rapazinho, querendo certificar-me de que não estava sozinha.

Estava tudo bem. Bastava confiar em Lithiel, Lee e Adonis. Estava tudo bem…

— Estou cheio de fome — continuou a ninfa, resmungando — Onde é que se come por aqui?

— Além da estalagem, só tens a cozinha de campanha que a Guarda montou no meio do acampamento — informou Lithiel, colocando-se ao nosso lado — A comida de lá é racionada, por isso tens de te contentar com o que te derem, mas ao menos não morres de fome.

Lee fez uma pequena careta.

— Vamos comer na estalagem, então — decidiu, preparando-se para dar meia volta.

— Sabes que não é assim tão simples, não sabes? — volveu Lithiel, cruzando os braços — Já te esqueceste que os luxos da estalagem estão reservados para os faeries feridos?

— Eu estou ferido — lembrou a ninfa, apontando para o penso no nariz.

— E, mesmo assim, os enfermeiros não te serviram o pequeno-almoço e deram-te alta mesmo antes de começarem a distribuir o almoço. Não sei quanto a ti, mas a mim parece-me que eles não estão minimamente interessados em cuidar de nós. Pelo contrário…

— Eles não me dariam alta só para não ter de nos alimentar. Ou dariam? — acrescentou a ninfa, subitamente incerta.

— Não ficaria surpreendida se fosse esse o caso, principalmente sabendo que a Alajéa mentiu quando disse que te ia dar alta.

— Ah, já me tinha esquecido disso! Aqueles filhos da mãe…!

— Não vale a pena preocuparmo-nos com isso agora — defendeu Lithiel, cortando a imprecação iracunda de Lee — A Alajéa não mentiu quando disse que já não precisavas de cuidados constantes, o que significa que serias despachado da estalagem mais cedo ou mais tarde. Simplesmente aconteceu ser mais cedo…

Lee resmungou qualquer coisa ininteligível antes de soltar um pequeno suspiro derrotado.

— Não temos escolha, então, não é? Comida racionada será…

— Eu mostro-vos onde é a cozinha — aprontou-se Lithiel, principiando a afastar-se — Venham.

Sem grande entusiasmo, eu, Lee e Adonis seguimos a doppelganger através das ruas da vila. Eu fiz muita questão de caminhar com o rosto virado para o chão para evitar os olhares dos faeries, por isso nem me apercebi do momento em que as casas de madeira e pedra deram lugar a grandes tendas coloridas. A única coisa que a minha mente tolhida pelo medo conseguiu captar foi o aumento do número de faeries em nosso redor quando nos aproximamos da dita cozinha de campanha. Felizmente, nenhum deles tentou abordar-me, mas o ocasional intensificar do aperto da mão de Adonis permitia-me ter uma ideia de quantos pareciam querer fazê-lo…

O súbito enfraquecer da luz do sol fez-me levantar um pouco a cabeça, curiosa, e foi nesse momento que vi o gigantesco toldo de tecido suspenso sobre as nossas cabeças. Era tão grande que abrigava não só a cozinha de campanha, mas também várias mesas compridas dispostas em torno da zona de confeção, criando assim um refeitório improvisado. Estávamos em plena hora de almoço, portanto, como seria de esperar, as mesas estavam lotadas de faeries. A maioria estava demasiado concentrada nas suas refeições e conversas para prestar atenção em mim, mas, por via das dúvidas, voltei a baixar rapidamente o olhar.

Havia uma pequena fila de espera para recebermos a nossa porção de comida e os poucos minutos que passei nela quase me fizeram perder a cabeça de vez. Apesar de ter Lithiel, Lee e Adonis do meu lado, sentia-me extremamente exposta e desprotegida. Sentia que, quando mais tempo ficasse ali parada, maiores eram as probabilidades de os faeries se aperceberem da minha presença. E eu realmente não queria estar ali quando isso acontecesse…

Finalmente, chegou a nossa vez. Lithiel fez-me sinal para avançar primeiro e eu acatei sem hesitar, ansiosa por receber a minha comida e sair dali. Uma mulher loira com orelhas e chifres de carneiro estava do outro lado do balcão e principiou a estender uma tigela com um guisado qualquer, mas congelou a meio do gesto quando os nossos olhos se cruzaram. Eu fiquei tão imóvel como ela, paralisada pela consciência de que fora reconhecida e que, desta vez, o confronto seria inevitável. Por instantes, ponderei quebrar as regras de Lithiel e usar a camuflagem para fugir.

Eu não estava pronta para aquilo, não devia sequer ter ido até ali. Deveria ter regressado ao quarto de Nevra e pedido a Adonis que…

A tigela de barro atingiu o meu queixo como uma bala de canhão, entornando o guisado sobre mim antes de se despedaçar aos meus pés. Eu estava tão surpreendida e chocada que não consegui reagir, limitando-me a fixar os cacos e os restos de comida caídos no chão. Foi Lithiel quem tomou as rédeas da situação, chegando-se rapidamente à frente enquanto exclamava:

— Twylda! O que diabos pensas que estás a fazer?!

A mulher-carneiro nem sequer olhou para a doppelganger, continuando a fulminar-me com os olhos cheios de lágrimas. O seu corpo tremia com o esforço de conter a raiva que a carcomia por dentro. Lentamente, levantou uma mão para apontar um dedo indicador à minha cara.

— Tu… — murmurou numa voz baixa e rouca, tão trémula quanto o seu corpo — Sua maldita titânide imunda… Foi por tua causa… Eu perdi o meu menino… o meu único filho… por tua causa!