Acordei sentindo-me bem, como não me sentia há já muito tempo. Não sentia dor ou desconforto físico e a minha mente estava finalmente em paz. Infelizmente, a amnésia temporária provocada pela sonolência não durou muito tempo. Não tardei a lembrar-me de todas as minhas angústias e estas não demoraram a instalar um friozinho desagradável na minha barriga, o qual tratou de me acordar por completo. Só nesse momento me apercebi do suave “tum-tum” que retumbava no meu ouvido, acompanhado pela discreta subida e descida ritmada do meu “travesseiro”. Abri os olhos, desorientada… e percebi que estava deitada sobre um peito masculino, com o rosto adormecido de Nevra poucos centímetros acima do meu. O braço dele estava caído ao longo das minhas costas e uma das minhas pernas estava entrelaçada nas suas. Não foi difícil deduzir como tínhamos acabado naquela situação: depois de chorar até à exaustão, eu adormecera sobre o vampiro e ele não conseguira (ou, mais provável, não quisera) soltar-se do meu abraço, acabando por adormecer também.

Custava-me crer que, depois do que acontecera, Nevra me consolara e ficara todo aquele tempo ao meu lado. Eu provocara a morte de sabe-se lá quantos dos seus amigos, conhecidos e subordinados e, mesmo assim, ele escolhera salvar-me e consolar-me no momento em que a culpa me derrubara. Eu sabia o que ele sentia por mim, graças à nossa última conversa, mas era difícil acreditar que esses sentimentos tinham sobrevivido a tudo o que se passara. Ele deveria odiar-me, não acarinhar-me. Ele deveria ao menos reconhecer a minha culpa… mas as palavras que ele me sussurrara durante o meu pranto comprovavam que ele não o fazia. Se por um lado estava eternamente grata a Nevra por aquele aconchego, por outro, aquilo só duplicava a minha culpa…

Mirei o rosto de Nevra atentamente, como se isso me permitisse entrar na sua cabeça e compreender a visão que ele tinha de mim. Em vez disso, acabei concentrada nos seus traços. O Mestre da Sombra era um homem belíssimo, mas, para mim, o seu rosto não era só um louvor à beleza masculina: era também um símbolo de amparo e conforto. A pele dele era pálida e suave, sem qualquer indício de barba. A maior parte do lado esquerdo do seu rosto estava coberto pela pala negra, mas o lado direito era encantador o suficiente por si só. A pálpebra delicada escondia a sua hipnótica íris prateada, deixando apenas as finas pestanas pretas para apreciar. O nariz era reto e elegante, com uma ponta fina e quase geométrica. E os lábios… os lábios carnudos e rosados eram… estranhamente apetecíveis. Como uma exótica fruta suculenta que eu ansiava provar… de novo…

A lembrança do meu primeiro beijo com Nevra fez uma onda de calor percorrer o meu corpo, mas esta foi rapidamente suplantada pelo frio que partiu da boca do meu estômago. Perturbada pelo quanto queria beijar o vampiro, afastei-me rapidamente dele, sentando-me na cama. Como era possível…? Há não muito tempo atrás, eu estava loucamente apaixonada por Ashkore. Eu devia estar loucamente apaixonada por Ashkore. Como podia desejar tanto estar com outro homem naquele momento? Não fazia sentido…

— Eduarda?

Virei a cabeça na direção da voz, encontrando um Nevra sonolento a espreitar-me por entre a pálpebra semicerrada. Bolas… Teria preferido que ele tivesse continuado a dormir, eu não estava em condições de o enfrentar naquele momento. Estava fora de mim, perdida entre os estranhos sentimentos que ele me provocava e a impressão de estar a trair Ashkore. E Nevra também não parecia disposto a facilitar-me as coisas! Esboçando um sorriso amoroso, estendeu a mão e acariciou o meu rosto com os nós dos dedos. O seu toque encheu-me de arrepios e isso só me perturbou ainda mais. Desnorteada, virei o rosto, afastando-me dos seus dedos. Nevra deteve-se com a mão estendida, o sorriso oscilando como se o meu gesto o tivesse desconcertado, mas fez um esforço para sustentar a curva nos lábios enquanto deixava cair o braço.

— Como te sentes? — perguntou num tom brando.

Sentia-me ferver… mas nem morta lhe diria a verdade!

— Estou… melhor — murmurei com a voz ligeiramente enrouquecida.

Nevra fez mais um sorriso.

— Ainda bem…

Um silêncio denso instalou-se entre nós até Nevra se levantar com um pulo e uma exclamação animada.

— Não sei que horas são, mas estou cheio de fome — comentou — E tu?

Sacudi a cabeça de forma negativa. Fome era última coisa que tinha naquele momento. O meu estômago já estava suficientemente cheio com preocupações, culpa e sentimentos contraditórios.

— Bem, mesmo que não tenhas, precisas de comer — defendeu o vampiro — Vou buscar-te uma fatia de bolo e um copo de leite e vais comer tudo. Entendido?

Eu não tinha realmente a mínima vontade de comer fosse o que fosse, mas acenei com a cabeça só para encerrar a conversa. Nevra imitou o meu aceno e saiu do quarto.

Procurando evitar ser soterrada pelos pensamentos que me atormentavam, olhei rapidamente em volta, inspecionando a divisão. Eu estava num quarto mediano, com paredes de pedra cinzenta, uma única porta e sem janelas. Era, portanto, impossível adivinhar que hora do dia era. Além da cama de solteiro, havia um armário no canto, um cabide ao lado da porta, um cadeirão velho, uma mesa-de-cabeceira e duas cadeiras que não pareciam fazer parte da decoração original. Havia também um velho tapete de arraiolos no chão e o desenho intrincado manteve a minha mente ocupada durante alguns minutos. Porém, eventualmente, tive de ceder aos meus pensamentos inquietos. Se não o fizesse, a minha cabeça acabaria por explodir…

Deitei-me e fechei os olhos para rever mentalmente tudo o que acontecera nos últimos dias, tentando concentrar-me somente nos factos e afastando as minhas emoções. Quanto mais remirava os acontecimentos, mais me dava conta de que Miiko e os seus capangas estavam certos em pelo menos uma coisa: eu estava a comportar-me de forma estranha desde a minha viagem à Terra. Eu nunca fora de me deixara levar pelas minhas emoções, no entanto, passara muito tempo a atuar ao sabor dos meus sentimentos por Ashkore. Sentimentos que, naquele momento… não pareciam ter qualquer sentido. Eu desejara Ashkore, muito, mas o que havia para lá de toda essa luxúria? Custava admitir, mas não havia nada. Rigorosamente nada. Ashkore nunca me fizera sentir segura e tranquila como… como Nevra fazia… Com o titã, tudo fora sobre o calor explosivo, o desejo incontrolável, a vontade de lhe agradar… e nada mais do que isso.

Nevra retornou nesse momento, carregando um tabuleiro com comida. Trazia também uma bonita flor branca entre os dedos e eu voltei a sentar-me na cama, intrigada. O vampiro poisou o tabuleiro na mesa-de-cabeceira antes de me estender a flor.

— Um presente. Do Adonis — anunciou — Ele pediu-me para te dar a flor e dizer que está cheio de saudades tuas…

Eu aceitei a flor, hesitante, e encostei-a ao nariz. Tinha um cheiro suave e fresco, como orvalho.

— Ele… está bem? — perguntei a medo — Não está ferido?

— Não, ele escapou ileso.

— Porque não me vem visitar, então? — uma possível resposta cruzou-me a mente assim que a questão me saiu dos lábios — Ah… Não estou autorizada a receber visitas, não é?

Nevra torceu a boca.

— Não, não estás… Nem eu devia estar aqui, na verdade.

— Porque não?

O Mestre da Sombra soltou um pequeno suspiro e franziu o sobrolho antes de desviar o rosto para o lado, como se quisesse disfarçar a própria reação.

— Não importa…

— O facto de estares a tentar esconder isso de mim só mostra o contrário — retorqui num tom acusador — O que é que se passa?

Nevra soltou mais um suspiro e puxou uma das cadeiras para se sentar.

— A Miiko… não quer que nenhum dos teus “consortes” fique muito tempo perto de ti — revelou.

— O quê? Porquê?

— Ela não quer que recuperes a tua Maana… e fiques forte o suficiente para nos atacares.

O meu primeiro impulso foi ficar ofendida pela pressuposição de que atacaria os faeries caso recuperasse a minha Maana, mas não tardei a lembrar-me de que eles tinham razões mais do que suficientes para me temer e desconfiar de mim. Soltei um pequeno suspiro desolado, baixando o olhar para o presente do centauro.

— O Adonis sabe… o que sou? — inquiri num murmúrio — O que fiz?

Nevra hesitou na resposta.

— Sabe… Já todos sabem. Nós tentámos manter segredo, mas… foi impossível conter os rumores. Reter-te neste quarto é também uma maneira de te manter segura. Há muitos faeries que não estão dispostos a perdoar-te pelo que aconteceu…

— Imagino… nem eu estou disposta a perdoar-me…

Nevra hesitou, mas levantou-se e veio sentar-se ao meu lado, envolvendo os meus ombros com um braço. A sua ternura encheu-me os olhos de lágrimas e tive de trincar o lábio inferior para o impedir de tremer.

— Vá lá, Eduarda — murmurou num tom carinhoso — Já choraste o suficiente ontem, não te quero mais ver triste por causa disso. Não foi culpa tua, Eduarda. Aquela não eras tu…

— Se não era eu, porque é que me lembro tão bem de cada detalhe? — volvi com a voz a tremer.

O vampiro poisou a mão no meu rosto e fez-me encarar o seu brilhante olho prateado.

— Estavas a ser manipulada — disse com absoluta certeza — O titã usou-te como a uma marioneta, podia ter acontecido com qualquer pessoa. Não foi culpa tua, Eduarda… Não foi…

Nevra falava com tanta convicção que quase me convenceu. Comovida pela sua confiança em mim, enlacei o seu tronco e escondi o rosto no seu pescoço. O vampiro estreitou-me contra si, acariciando os meus cabelos.

— O que faço agora, Nevra? — murmurei — A Miiko e aquela aprendiza de Fénix pediram-me para combater o Ashkore, mas… não acho que serei capaz. Mesmo admitindo que não o amo… mesmo admitindo que ele me manipulou… eu não o odeio. Como posso enfrentá-lo se não o odeio…?

— Nem só de ódio se faz a guerra, Eduarda, e tu devias saber isso melhor do que ninguém.

— O que… queres dizer…?

— Tu não odeias os faeries, pois não?

— Não, claro que não…

— Mas aceitaste lutar contra nós ao lado do titã — fez-me ver o vampiro.

— Eu… eu só queria protege-lo…

— É exatamente essa a questão. Tu não lutaste contra nós movida por ódio. Tu lutaste por amor… Lutaste para defender o que te era querido e precioso. Foi, aliás, por isso que o titã te fez apaixonar por ele. O maldito sabia que a única coisa capaz de te fazer empunhar uma arma seria a vontade de proteger aqueles que amas. E nós não estamos à espera que seja diferente. Nós não estamos à espera que odeies o titã, simplesmente… — Nevra humedeceu nervosamente os lábios — Quero dizer, uma vez que estás finalmente livre da influência dele, nós… eu… tinha esperança de que… te desses conta de que tens outras coisas queridas e preciosas pelas quais lutar…

Nevra baixou a cabeça, parecendo atrapalhado pelo próprio discurso. Eu, por outro lado, levantei a cabeça do seu pescoço para o poder fixar.

— Era sobre isso que a aprendiza estava a falar, não era? — constatei — Quando falou do Adonis, da Karenn, do Chrome… de ti e do Leiftan… ela queria saber se eu vos considerava queridos o suficiente para lutar por vocês.

Nevra remexeu-se, desconfortável, e afrouxou lentamente o aperto dos seus braços até os deixar cair sobre o colchão.

— Desculpa… Foi presunçoso da nossa parte assumirmos que, só porque não estás sob o efeito da poção do amor, haverias de querer lutar por nós… Desculpa…

Eu soltei-o também do meu abraço, desviando o olhar enquanto matutava nas suas palavras. Fora presunçoso da sua parte assumir tal coisa, sim… mas era compreensível. Eu criara vínculos fortes com vários faeries desde que chegara a Eldarya. Inclusive, metera-me em algumas situações delicadas por conta deles. Enfrentara um sluagh com as mãos nuas para salvar Lithiel, enfrentara um titã furioso para salvar Lee, conspirara nas costas do meu irmão para salvar faeries inocentes da morte… e nem mesmo o bruxedo que Ashkore me lançara me impedira de ficar preocupada com a segurança desses faeries durante o ataque a Eel. Se eu me sentira daquela forma quando tinha o pensamento retorcido por uma poção, como me sentiria se as suas vidas voltassem a estar em perigo, agora que estava livre do veneno?

Subitamente, a realidade atingiu-me como uma pancada na cabeça. A névoa que me toldava o raciocínio dissipou-se, fazendo-me encarar o que sempre estivera diante dos meus olhos, mas eu, subconscientemente, decidira ignorar. A vida dos sobreviventes do ataque a Eel não estava a salvo. A minha mente extenuada convencera-se de que Ashkore não teria razões para os atacar agora que conseguira o que queria deles e que os faeries não se atreveriam a enfrentar o titã sem me terem do seu lado… mas estava completamente enganada. Restavam dois titãs presos em cristais e, da mesma forma que Ashkore não desistiria de os libertar… os faeries não desistiriam de o tentar impedir. Fora, aliás, por isso que Leiftan me perguntara onde seria o próximo ataque de Ashkore: eles só estavam à espera que eu lhes dissesse qual cristal deveriam proteger a seguir…

Sentindo um nó apertar a minha garganta, mirei o vampiro ao meu lado pelo canto do olho. Ele era o chefe de uma Guarda… Seria um dos primeiro a colocar-se entre Ashkore e o cristal. Só não fizera isso em Eel porque me tinha nos braços, mas, no próximo ataque, Nevra iria lutar… e imaginá-lo frente a frente com o meu irmão era o suficiente para me provocar um aperto no peito. Se Ashkore magoasse Nevra, eu…

A porta abriu-se de rompante, arrancando-me dos meus pensamentos, e a aprendiza de Fénix surgiu, ligeiramente ofegante.

— Titânide… vinde comigo — pediu ela.

Eu fiz uma expressão muito confusa enquanto Nevra dizia:

— Huang Hua, a Eduarda não está autorizada a sair do quarto…

— Eu estou a dar-lhe autorização — disse a mulher, avançando até mim e estendendo a mão — Titânide, por favor, vinde comigo… É importante. Conseguis levantar-vos?

Eu troquei um olhar intrigado com Nevra, mas empurrei as cobertas da cama. Aceitei hesitantemente a mão da mulher e levantei-me com cuidado, testando as pernas. Sentia-as pouco firmes, provavelmente devido ao pouco uso que lhes dera nos últimos dias, mas não tinha dores. Felizmente…

Nevra tirou um manto verde-escuro do armário e fez-me vesti-lo antes de segurar a minha outra mão. Entre ele e a aprendiza de Fénix, saí do quarto e percorri o curto corredor que terminou numas escadas muito estreitas. Subindo os degraus, emergimos numa sala onde um humanoide enorme estava de pé ao lado da porta que atravessáramos, como se estivesse a guardá-la. Ele lançou-nos um olhar muito carrancudo, mas não fez comentários. Quem tratou disso foi a mulher baixa, de pele verde acinzentada e nariz enorme que se aproximou apoiada num cajado e com dois outros homens atrás de si.

— O que pensa que está a fazer, Dama Huang Hua? A titânide deveria ficar confinada até decidirmos o que fazer com ela.

— Lamento, Decana Haglaé, mas precisamos dela…

O som abafado de vozes exaltadas fez com que todos voltassem o olhar para o teto da sala. Antes que a velha verde ou os seus acompanhantes pudessem dizer mais alguma coisa, a tal Huang Hua arrastou-me para um novo lance de escadas e fez-me subi-las o mais rápido que as minhas pernas me permitiram. Percorremos um novo corredor até encontrarmos a porta por onde se escapava uma voz conhecida:

— Já te disse para tirares as mãos de cima dele ou eu arranco-te as tripas!

— Ele precisa de cuidados, não passa desta noite se não for tratado!

— Só deixarei a Eweleïn cuidar dele!

— Quantas mais vezes teremos de repetir que…?!

— Lithiel? — chamei, interrompendo a discussão e concentrando todos os olhares. Eu ignorei-os, perplexa com o que estava a ver.

A doppelganger estava no centro do quarto, suja e mal cheirosa, mas aparentemente incólume. Ezarel e Miiko estavam diante dela com caras muito irritadas e Leiftan estava ao lado da porta, com uma expressão tensa e os braços cruzados diante do peito.

— Eduarda? — admirou-se Lithiel — O que… o que fazes aqui?

— Podia fazer-te a mesma pergunta. Não devias estar na colónia?

— Fugi, como é óbvio — disse num tom seco — E tu? Não devias estar com o teu querido irmão? Vocês sabem que ela está sob o efeito de uma poção do amor, certo? — acrescentou na direção de Miiko e Ezarel.

— Nós já lhe demos o antídoto — informou o elfo.

— Menos mal…

— Como conseguiste fugir? — perguntei a Lithiel, confusa.

— Isso também eu gostaria de saber! — exclamou Miiko antes de se virar para o Diretor da Absinto — Ezarel, traz-nos um frasco de elixir da verdade…

— Eu não vos vou contar nada até alguém tratar do Lee! — teimou Lithiel, apontando para a cama atrás de si. Só nesse momento me dei conta do vulto que lá estava deitado.

— O que aconteceu ao Lee? — perguntei, apreensiva.

— Eu… não tenho a certeza…

Soltei-me das mãos de Nevra e de Huang Hua e avancei até me colocar ao lado de Lithiel. Ao ver o que estava sobre a cama, cobri rapidamente a boca com as mãos enquanto as lágrimas me subiam aos olhos.

Lee estava quase irreconhecível. O seu rosto estava roxo e inchado de tantos hematomas e o nariz estava desfeito e coberto de sangue seco. A ninfa tinha uma manta a cobri-la até ao peito, mas o sangue que manchava a sua camisa nos ombros e nas clavículas indiciava mais feridas pelo resto do corpo. Ela estava inconsciente, mas não parava de tremer e respirava com dificuldade.

— O que é que o Ashkore lhe fez? — murmurei num tom quase inaudível.

— Mimos é que não foram — disse Lithiel, trocista — Não sei o que aconteceu, já o encontrei neste estado…

— Peço imensa desculpa por interromper a vossa amena cavaqueira — intrometeu-se Ezarel —, mas está um elfo a morrer bem debaixo do vosso nariz. É verdade que preencher um relatório de óbito seria bem mais fácil do que salvar-lhe a vida, pouparia muito do meu tempo e recursos, mas isso mancharia para sempre a minha fama como chefe da Guarda de alquimia. Portanto, as meninas poderiam fazer o obséquio de desandar da minha frente e deixar-me fazer o meu trabalho? A não ser que a poderosa titânide consiga fazer um trabalho melhor do que o meu — acrescentou o elfo com um sorriso zombeteiro.

— Consegues? — questionou-me Lithiel, ansiosa — Consegues ajudar o Lee, Eduarda?

— Eu… eu não sei… Nunca fiz nada do género antes — confessei, atrapalhada.

— Está decidido, então! — disse Ezarel, batendo as mãos — A Eduarda não consegue ajudá-lo, a Eweleïn não está aqui, portanto, eu vou tratar desse elfo moribundo antes que morra de vez.

— Vou avisar-te pela última vez, Ezarel — rosnou Lithiel, escudando Lee com o corpo enquanto o seu cabelo adquiria uma ténue coloração vermelha — Encosta um dedo no Lee e eu vou-te fazer desejar ter morrido em Eel!

— Basta! — bradou Nevra de repente, colocando-se entre Lithiel e Ezarel — A vossa discussão não vai levar a lado nenhum e o Lee precisa de cuidados urgentes! — lançou um olhar reprovador do elfo para a doppelganger antes de ordenar — Saiam todos!

— O quê?! — exclamaram uma data de vozes ao mesmo tempo.

— Ouviram-me bem, quero-vos fora daqui! Todos vocês! — repetiu o vampiro, poisando as mãos nos ombros de Ezarel e virando-o para a porta — Fora!

— Mestre Nevra… — tentou a aprendiza de Fénix apelar.

— Quem é que vai cuidar desse elfo se eu me for embora?! — vociferou Ezarel, irritado.

— Eu não vou sair daqui enquanto o Lee estiver neste estado! — teimou Lithiel.

— Tu podes ficar e a Eduarda, se quiser, também — tranquilizou-a o vampiro antes de se virar para o Diretor da Absinto —, mas eu vou cuidar do Lee… por isso, quero-vos a todos fora daqui!

A cara de Ezarel contorceu-se subitamente numa careta de nojo.

— Ew! — exclamou — Não acredito que vás fazer isso, Nevra!

— Espera aí… Nevra, por acaso estás a pensar em…? — o vampiro interrompeu a questão desconfiada de Lithiel com um simples “confia em mim”.

Leiftan e Huang Hua abandonaram o quarto sem protestar, mas Ezarel e Miiko só saíram quando Nevra os empurrou para o corredor. Depois de fechar e trancar a porta, o vampiro aproximou-se de Lee.

— Nevra, nem penses — disse Lithiel em tom de aviso — Nem penses que vais…

— Estavas a tentar esconder do Ezarel o facto de o Lee ser mulher, não era? — cortou-a o vampiro.

Lithiel e eu trocámos um olhar arregalado, a surpresa fazendo o cabelo da doppelganger regressar ao seu habitual tom negro.

— Tu… sabias? — perguntou ela antes de revirar os olhos — Espera, pensando bem, seria estranho se um mulherengo como tu não soubesse…

Nevra fez um meio sorriso enquanto afastava a manta de Lee, revelando mais manchas de sangue um pouco por toda a roupa da ninfa.

— Prefiro pensar que seria estranho se um Mestre da Sombra tão habilidoso como eu não soubesse!

— Nunca o denunciaste? — continuou Lithiel a questionar.

— Não. Porque faria isso? — Nevra sentou-se junto a Lee e levou o próprio pulso aos lábios, mas hesitou ao fixar o olho prateado em mim — Eduarda, talvez não queiras ver isto…

— O que vais fazer? — perguntei, curiosa e apreensiva.

— Vou dar o meu sangue ao Lee. Boca-a-boca — acrescentou com uma pequena careta.

— Vais dar-lhe o teu sangue? — repetiu Lithiel — Pensei que ias lambê-lo da cabeça aos pés.

— Isso vem depois…

— Eu vou vomitar — garantiu a doppelganger, muito séria.

— Porque é que vais dar o teu sangue ao Lee? — perguntei ao Nevra, mas foi Lithiel quem respondeu:

— Os vampiros podem partilhar os seus poderes com outras pessoas através do sangue.

— Dando o meu sangue ao Lee, poderei partilhar os meus poderes de regeneração com ele — explicitou o Mestre da Sombra — Se o misturar com a minha saliva antes de lho dar, o efeito será ainda mais rápido.

— Os vampiros têm saliva curativa — acrescentou Lithiel.

— Ah… — foi o único som que consegui fazer, aparvalhada com todas aquelas informações.

— Eu deixei-te ficar aqui porque presumi que estarias preocupada com o Lee, mas não tens de assistir a isto se não quiseres — disse Nevra — Podes sair ou desviar o olhar…

— Não, não, está tudo bem. Podes… fazer a tua coisa — autorizei embora estivesse dividida entre o asco e a curiosidade. O vampiro parecia saber disso, avaliando pelo olhar duvidoso que me lançou, mas avançou com o “tratamento”. Encostou o próprio pulso aos lábios e mordeu-se com as presas afiadas. Depois de recolher algum sangue, segurar o queixo de Lee e debruçar-se sobre a boca dela. Eu aproximei-me um pequeno passo, curiosa.

Nevra verteu cuidadosamente o seu sangue na boca de Lee, mas um fino fio escarlate ainda escorreu pelo queixo da ninfa. Os movimentos da garganta dela ao engolir eram percetíveis, mas pouco frequentes, acusando o seu esforço e dificuldade. Devido a isso, o processo demorou mais do que seria de esperar, levando Lithiel a sussurrar:

— Não lhe estás a meter a língua na garganta, pois não?

Nevra espreitou a doppelganger pelo canto do olho como se quisesse dar-lhe um carolo, mas manteve o resto do corpo completamente imóvel. Pouco depois, afastou-se enfim da ninfa, limpando rapidamente a boca com as costas da mão.

— Ela deverá acordar em breve — murmurou.

Como se o tivesse ouvido, Lee soltou um queixume e as suas pálpebras estremeceram. Lithiel aproximou-se rapidamente, inquieta, mas um gesto de Nevra fê-la conter-se.

Foram precisas várias tentativas até Lee finalmente abrir os olhos. As íris verdes vaguearam sem rumo até se concentrarem na figura mais próxima: o Mestre da Sombra.

— N… Nevra? — tartamudeou a ninfa com uma voz muito fraca, piscando os olhos como se estivesse a tentar focar a vista.

— Shhh — fez o vampiro num tom baixo e brando, poisando uma mão tranquilizadora na sua testa — Estás a salvo, não te preocupes…

Lee franziu o sobrolho e voltou a correr a divisão com um olhar impreciso.

— Onde…?

— Não te preocupes com isso agora. Estás ferida e com uma febre alta, talvez tenhas uma infeção. Eu posso curar-te, mas vai doer…

Lee não pareceu ouvi-lo, continuando a balbuciar palavras desconexas.

— Ele está a delirar — constatou Lithiel.

Nevra soltou um pequeno suspiro antes de levar as mãos aos botões da camisa de Lee.

— Preferia fazer isto com autorização, mas, no estado em que ela está…

Lithiel deu uma sonora palmada nas mãos do vampiro, fazendo-o recolhe-las contra o peito com ar surpreendido.

— Eu faço isso — decidiu a doppelganger antes de se debruçar sobre Lee — Tratei como pude dos ferimentos dele a caminho daqui, por isso, posso dizer-te onde estão os mais sérios…

Nevra limitou-se a acenar uma concordância e deixou Lithiel abrir a camisa de Lee. A ninfa sacudiu os braços, resmungando como se estivesse a tentar afastar a doppelganger, mas os seus movimentos eram demasiado fracos e descoordenados para surtir efeito.

Subitamente, Lithiel moveu-se para o lado, vedando a minha visão do corpo de Lee. Estiquei o pescoço, mas, entre ela e Nevra, não dava para ver muita coisa. E quando este último soltou um murmúrio surpreendido, pressenti que a mudança de posição da rapariga não fora casual.

— Queriam mesmo acabar com ela — comentou o vampiro, num tom baixo.

— O que… o que é que se passa? — perguntei, curiosa, procurando um buraquinho por onde pudesse espreitar.

Lithiel mirou-me por cima do ombro antes de perguntar:

— Queres mesmo saber?

— C-claro! O Lee está bem?

— Não… Dificilmente alguém estaria bem depois de lhe tentarem arrancar o coração.