Acordei exatamente no mesmo sítio onde me lembrava de ter caído: na floresta nas traseiras da minha casa, do lado de fora do muro, diante do círculo que me trouxera até ali. Os ramos dos pinheiros sacudiam-se com o fraco vento de Primavera e o céu acima da minha cabeça estava cinzento e pesado, ameaçando chuva a qualquer momento. Seria devido à estação ou ao mau humor do meu pai…?

Uma gota de água fria caiu-me na maçã do rosto, sinal de que teria de me levantar em breve. Estava, contudo, com muita preguiça de me mexer. O meu corpo estava quente e lânguido, como quando acabamos de acordar de uma boa noite de sono ou quando comemos uma farta refeição quente. Era até estranho que, depois da conversa atribulada com Úrano e Gaia, me sentisse tão plácida. Não deveria estar a entrar em pânico? Não deveria estar a ponderar desistir daquela empreitada e correr de volta para os braços de Ashkore?

Pensando bem… o calor que me embalava naquele momento era muito semelhante àquele que sentia ao tocar outro titã, mas mais forte. Era como se estivesse a haver mais do que um contacto entre Maana; era como se a Maana estivesse a entranhar-se em mim…

Ouvi movimento à minha esquerda e virei lentamente a cabeça nessa direção. Lithiel estava sentada contra o tronco de um pinheiro e procurava algo na sua mochila. Puxou uma manta dobrada do interior e, ao levantar a cabeça, os seus olhos cruzaram-se com os meus.

— Eduarda! — exclamou, aliviada, vindo rapidamente até mim — Estás acordada, finalmente… Estava a ficar assustada!

— Quanto tempo… estive desmaiada?

— Não sei exatamente. Eu também desmaiei, mas não sei por quanto tempo. Tentei acordar-te assim que me consegui mexer, mas continuaste inconsciente por mais um par de horas…

— Quando te conseguiste mexer? — repeti — Também te sentias mole como um peixe sem espinha quanto acordaste?

— Parecia que me tinha empanturrado em comida e hidromel, menos o inconveniente da ressaca.

— O que é isto…?

— Acho que é o efeito da Maana de Úrano e Gaia — disse Lithiel, erguendo uma mão e abrindo e fechando os dedos — Sinto-me… incrivelmente forte, muito mais forte do que alguma vez me senti em Eldarya.

— Ah… Faz sentido…

A chuva miúda que pingava sobre nós começou a engrossar e Lithiel estendeu-me a manta que tirara da mochila.

— Está a começar a chover, precisamos de encontrar um abrigo. Tens alguma sugestão?

Inspirando profundamente, convenci os meus músculos a regressar ao ativo. Levantei-me com movimentos preguiçosos e aceitei a manta, começando a desdobrá-la.

— Tenho um plano, mas preciso da tua ajuda — anunciei.

— Claro. Do que precisas?

Enrolei-me na manta, colocando-a sobre a cabeça para me proteger da chuva, e fiz um gesto na direção do muro.

— Preciso de entrar à socapa em minha casa.

— Porque é que precisas de entrar à socapa, se é a tua casa? — perguntou Lithiel, confusa.

— Eu não tenho as chaves e não quero que os meus pais saibam que estou aqui.

— Porquê?

— Porque não tenho forma de lhes explicar porque desapareci durante uma data de meses — esclareci, impaciente — Os humanos não acreditam em magia, ninguém aqui irá acreditar que fui sugada para um mundo alternativo através de um círculo de cogumelos. Além disso, achas que os meus pais me deixarão ir embora depois do susto que apanharam? Tornar-se-ão um estorvo à nossa missão…

Lithiel soltou um pequeno grunhido de concordância.

— Tens razão… Nesse caso, o que queres que faça?

— Quero que abras a janela do meu quarto. Tu és um membro da Sombra, imagino que saibas como fazê-lo sem ter de partir o vidro…

Lithiel soltou um risinho matreiro.

— É mais fácil do que tirar um doce a uma criança. Só tens de me dizer qual é a janela.

— Eu mostro-te. Anda…

O muro das traseiras tinha dois metros e meio de altura e era liso como vidro, mas eu sabia que não constituía obstáculo. Sentia a Maana dos meus progenitores palpitar debaixo da minha pele, fortalecendo-me para lá do humanamente possível. Tinha a certeza que conseguiria saltar por cima do muro com um único impulso das pernas, mas decidi não arriscar… Testaria os meus limites noutra altura. Naquele momento, contentei-me em saltar apenas o suficiente para agarrar o topo do muro e içar-me para o outro lado. Lithiel veio logo atrás de mim, movendo-se com a agilidade e elegância de um felino. Atravessámos o quintal com meia dúzia de passos que nos impeliam em frente como se estivéssemos a voar e trepámos para a varanda do meu quarto sem sequer um arquejo de esforço. Eu não consegui evitar um sorriso impressionado. Fixei as minhas próprias mãos, sem conseguir acreditar que eram as mesmas que tivera durante toda a vida. Sentia-me como um super herói de banda desenhada! E o sorriso rasgado no rosto de Lithiel fez-me entender que não era a única.

— A Maana de Úrano e Gaia é realmente incrível — comentou ela, rindo, antes de se concentrar na janela.

Lithiel só teve de poisar a mão no vidro e murmurar um rápido encantamento para a fechadura se destrancar. Fazendo o mínimo barulho possível, abrimos a janela e entrámos no meu quarto. As lágrimas voltaram a subir-me aos olhos.

Estava tudo exatamente como eu me lembrava. A cama de solteira com a sua colcha azul-bebé estava no canto, à esquerda. Um candeeiro de pé inclinava-se na direção da cabeceira, fornecendo a luz necessária para ler um livro antes de deitar. O sofá branco de dois lugares estava no canto oposto, à direita. A secretária de madeira escura estava logo ao lado, exibindo o meu computador portátil e uma montanha de papéis. O guarda-fatos ficava mesmo em frente, na parede oposta à da janela, e o espelho que cobria uma das duas portas refletia a minha figura trémula de emoção. Mirei a imagem que o espelho me devolvia com a mente perdida num turbilhão de dúvidas e constatações. Eu via-me a mim mesma, rodeada por objetos que me eram familiares, vestida com as estranhas roupas de Eldarya… e tinha de me vergar à evidência de que nada daquilo combinava. Terra e Eldarya… não combinavam…

— Eduarda? — chamou Lithiel, estranhando a minha inércia — Estás bem?

— S-sim… claro — murmurei, passando rapidamente os dedos sobre as pálpebras para afastar as lágrimas — Nós… hã… Temos de falar baixo ou os meus pais poderão ouvir. Quero dizer, não deve estar ninguém em casa a esta hora, mas mais vale prevenir… Enfim… Vamos trocar de roupa. O vestuário de Eldarya irá chamar demasiadas atenções, não pudemos andar por aí assim. Tira o que quiseres daquele armário. Também precisamos de dinheiro, mas eu tenho algum guardado…

Dirigi-me rapidamente à minha cama e levantei o colchão para revelar o envelope que mantinha escondido sobre as traves da cama. Era ali que guardava o dinheiro que os meus familiares me davam nas datas festivas, poupando-o para comprar coisas que os meus pais consideravam desperdícios de dinheiro e se recusavam a pagar. No último ano, estivera a reunir dinheiro para comprar um novo telemóvel (algo que os meus pais não aprovavam porque o telemóvel que tinha no momento estava a funcionar na perfeição), portanto, tinha uma boa quantia acumulada, mais de trezentos euros. Tirei as notas do envelope e virei-me em busca da minha mala, onde esperava encontrar a minha carteira. Entretanto, vi Lithiel diante do meu armário, a estudar a minha roupa.

— A roupa da Terra é estranha — comentou, pegando num par de calças de ganga — Vocês vestem mesmo isto? O tecido é horrível! É tão áspero!

— Quase não se sente.

— Impossível!

— Experimenta e verás.

A minha mala estava pendurada num cabide junto à porta e eu peguei-lhe para inspecionar o seu conteúdo. Carteira, telemóvel, chaves de casa, produtos femininos… O telemóvel não tinha bateria, por isso, coloquei-o a carregar antes de começar a esconder o dinheiro nos vários compartimentos da mala e da carteira. Deixar uma tão grande quantia de dinheiro visível não era inteligente…

Quando me virei para o armário para trocar de roupa, vi Lithiel mirar-se no espelho, vestida com umas calças de ganga e uma fina camisola de manga comprida, às riscas verdes e rosa pastel.

— As calças até nem são assim tão más — admitiu, passando as mãos sobre as coxas.

— Precisas de um casaco e uns sapatos — lembrei-a.

Tirei um grosso casaco branco com carapuço do guarda-fatos e ofereci-lho antes de lhe indicar o armário aos pés da minha cama, onde estava reunido todo o meu calçado. Enquanto Lithiel reclamava do facto de todas as minhas botas terem salto alto, vesti umas calças negras, uma blusa branca e uma camisola de malha por cima. Peguei num outro casaco e fui sentar-me na borda da cama para calçar uns botins de cabedal negro. Ao terminei, olhei em redor, tentando lembrar-me de algo que pudesse ter esquecido. A chuva lá fora parecia ter parado, mas o céu continuava carregado. Talvez devesse pegar no meu guarda-chuva e guardá-lo nas… O meu olhar poisou nas duas mochilas que eu e Lithiel tínhamos trazido de Eldarya, com aspeto rústico e gasto. As mochilas não combinavam com a roupa nova e bem tratada que trazíamos vestida e, por isso, iriam chamar demasiada atenção…

Tirei uma mala de viagem do fundo do meu armário e ajudei Lithiel a transferir as suas coisas da mochila para a mala. Fizemos o mesmo com os meus pertences. A mala não era muito grande, parecia prestes a estoirar pelas costuras, mas teria de servir.

No tempo em que demorámos a arrumar tudo, a bateria do telemóvel carregou até aos 55%. Era mais do que suficiente para o que eu pretendia fazer, mas decidi levar o carregador comigo para o caso de voltar a precisar do aparelho.

Chegado o momento de ir embora, hesitei antes de sair pela janela. Observei, com melancolia, o quarto em que dormia desde que me entendia por gente. Um espaço que era só meu, que marcava a minha individualidade no seio da minha família; um espaço com o qual me deveria identificar, pois estava cheio de marcas da minha personalidade e identidade… mas do qual me sentia cada vez mais distante…

— Eduarda? — chamou Lithiel, baixinho — Está tudo bem?

Eu soltei um pequeno suspiro e saí do quarto, fechando a janela atrás de mim. Fiz sinal a Lithiel para que voltasse a trancá-la com magia e, enquanto ela murmurava o encantamento, peguei nas minhas malas e regressei ao quintal. Tinha de me afastar daquela casa… ou não resistiria a ficar ali até reconquistar tudo o que era meu. A questão não envolvia só o quarto. Envolvia uma vida inteira. Uma vida confortável e despreocupada, sem magia, sem faeries, sem titãs, sem guerras… Eu conseguiria ignorar o meu lado titã até ao fim da minha vida. Conseguiria fingir ser só mais uma humana entre milhares, tinha a certeza disso. Seria apenas difícil esquecer que abandonara aqueles que esperavam algo de mim… e o amor da minha vida…

— Eduarda? Não me respondeste — insistiu Lithiel, quando já estávamos do outro lado do muro, caminhando pela floresta — Estás bem?

— Estou bem — respondi com um suspiro — Só estou… cansada.

Lithiel franziu o nariz.

— Sabes que eu sei que estás a mentir, certo?

Eu soltei um risinho.

— Na verdade, admira-me que a minha resposta te cheire a mentira. Eu… não sei como estou…

— Queres partilhar as tuas angústias comigo?

— Agradeço a oferta, mas não… Isto é algo que preciso de resolver sozinha.

— Se tu o dizes… — Lithiel encolheu os ombros antes de voltar a fixar-me — Falemos de coisas mais sérias: quando e onde pretendes abrir um novo portal para Eldarya para tratarmos do acordo com os faeries?

— Ah… Pois… hã… — hesitei, perguntando-me quanto deveria contar-lhe… e quanto do que ficaria por dizer seria captado pela sua habilidade de detetar mentiras — Sobre isso, eu estive a pensar e… não acho mesmo que o acordo que fizemos vá resultar.

— Não saberemos se não tentarmos — defendeu a doppelganger.

— Sim, mas… tu sabes que o acordo não terá realmente validade enquanto o Ashkore não o aceitar também, não é?

— Sim, e daí?

— Daí… ele não irá aceitar esse acordo. Eu falei com ele…

— Tu contaste-lhe do acordo?! — exaltou-se Lithiel.

— Não! Não lhe contei do que tínhamos feito, mas nós tivemos uma conversa que… enfim… foi elucidativa.

Lithiel soltou um estalido com a língua, fazendo uma expressão simultaneamente zangada e pensativa.

— Se o teu irmão se recusa a subscrever o nosso acordo, teremos de arranjar outra maneira de afirmar a nossa autoridade como fação independente das Guardas e da colónia… e só conseguiremos fazer isso com os t…

— Não! — exclamei de súbito, cobrindo a boca de Lithiel com a mão antes que ela pudesse terminar o seu raciocínio. A rapariga lançou-me um olhar arregalado de surpresa — Não fales… nisso… Eles estão a ouvir…

Lithiel franziu o sobrolho e empurrou a minha mão.

— Eles quem?

Eu apontei para o céu cinzento e, depois, para a terra húmida debaixo dos nossos pés. Lithiel começou por parecer confusa, mas o seu rosto não tardou a iluminar-se.

— Úrano e Gaia?

Eu assenti antes de murmurar:

— Eles tentaram entrar na nossa cabeça e aceder às nossas memórias assim que chegámos, mas, por alguma razão, não conseguiram. Eles não sabem nada sobre o que aconteceu em Eldarya ou o que nos trouxe aqui… e quero que continuem sem saber, por enquanto. Entendes o que quero dizer?

Lithiel fez um solene aceno positivo com a cabeça.

— Mas… como é que sabes que eles nos estão a ouvir? — perguntou, curiosa.

— Consigo senti-los.

— Sério?

— Sim. É como… uma corrente de ar fria. Não sabes de onde vem e é tão subtil que quase não a sentes, mas, ao mesmo tempo, não consegues ignorá-la. Arrepia-me o corpo todo…

— Estou a ver… E tens alguma ideia sobre a razão por que não conseguiram entrar na nossa cabeça?

— Eles estavam sempre a perguntar o que é que os meus irmãos me fizeram — revelei com um encolher de ombros — Imagino que o Ashkore tenha feito algo na minha cabeça para impedir os nossos Pais de entrar…

— Nesse caso, ele mexeu na minha cabeça também?

— Talvez.

— E isso não te preocupa?

— Não. Porque haveria de preocupar?

— Eduarda — chamou Lithiel, num tom muito sério — Se ele mexeu nas nossas cabeças, como é que sabemos que ele não descobriu sobre o acordo?

— Eu saberia se ele tivesse visitado essas memórias. Tu sabes sempre quando alguém te entra na mente, mesmo que não consigas pará-los. Ficas com uma bruta dor de cabeça e as memórias que o invasor visita permanecem na tua mente, como se as tivesses revivido através de um sonho ou assim. É a versão mental da confusão que fica depois de alguém assaltar a tua casa. Além disso, pelo que o Ashkore me explicou, a telepatia dos titãs só funciona entre nós. Ele não conseguiria entrar na tua mente, mesmo que quisesse.

— Porquê?

— Porque isso dar-te-ia uma oportunidade de entrar também na cabeça dele.

— E os titãs jamais admitiriam ter a sua própria criação a xeretar as suas memórias — concluiu Lithiel — Faz sentido… mas não me tranquiliza! Se ele não pode entrar na minha cabeça, não deveria conseguir bloquear o acesso a outras entidades! A não ser… que ele o tenha feito através de uma poção…

— Ele pediu-te para beber alguma poção?

— Não. E a ti?

— Também não.

— Talvez a tenha metido na nossa comida — ponderou Lithiel.

— Ele não faria isso — defendi de imediato — Ele não teria razões para fazer isso! Se a poção só serve para bloquear o acesso de Úrano e Gaia à nossa cabeça…

— Dizes bem — cortou-me Lithiel — Se a poção só servia para bloquear o acesso de Úrano e Gaia à nossa mente, ele não teria de nos fazer bebê-la em segredo… não é? No entanto, foi isso que fez. Talvez esse não fosse o único efeito da poção…

— O Ashkore não faria nada para me magoar ou prejudicar — teimei — Pelo contrário! Ele faz tudo para proteger-me!

— Estás muito segura da bondade de alguém que planeia destruir o mundo — comentou a rapariga, desconfiada.

— O Ashkore está a tentar salvar a sua família. Tu não te sentirias também capaz de destruir o mundo para proteger aqueles que amas?

Lithiel inclinou a cabeça ligeiramente para o lado e não respondeu. Ficou a matutar nas minhas palavras até chegarmos ao nosso destino: o apeadeiro que existia a poucos quilómetros da minha casa. Felizmente, estava vazio. O pensamento de que poderia cruzar-me ali com algum conterrâneo só me ocorreu no momento em que vi os bancos de madeira sob o toldo de chapa. Também não estava fora de cogitação ser reconhecida por alguém no comboio. Conhecendo os meus pais como conhecia, eles deveriam ter espalhado cartazes com a minha cara por todo o lado… Bolas! Devia ter trazido um cachecol com o qual pudesse esconder o rosto! Ponderei voltar atrás, mas um rápido olhar ao relógio do telemóvel informou-me que o próximo comboio chegaria dentro de dez minutos. Mesmo com a minha recém-adquirida velocidade extraordinária, jamais conseguiria regressar a tempo e, se perdesse aquele comboio, teria de esperar uma hora até ao próximo.

— Vamos ficar aqui? — admirou-se Lithiel, quando me viu sentar num dos bancos do apeadeiro.

— Sim, vamos apanhar um comboio.

— Comboio? O que é isso?

— É um meio de transporte muito rápido. Deve estar quase a chegar.

Lithiel não parecia muito convencida, mas sentou-se ao meu lado. Não muito tempo depois, as campainhas da passagem de nível começaram o seu repicar ritmado e Lithiel olhou rapidamente em volta, alarmada. Eu disfarcei um pequeno sorriso enquanto me lembrava que tudo aquilo era novo para ela.

— O comboio está a chegar — expliquei, tentando tranquiliza-la.

A doppelganger lançou-me um olhar arregalado antes de continuar a olhar em volta, como se estivesse a tentar descobrir de onde viria o comboio. Eu apontei para os carris poucos metros à nossa frente, explicando-lhe que era por ali que o comboio circulava. Curiosa, ela levantou-se e foi até ao limite da plataforma para observar os trilhos mais de perto, seguindo-os com o olhar em ambas as direções. A forma como ela arregalou os olhos ao olhar para a esquerda permitiu-me saber que o comboio estava a chegar.

— O que é aquilo? — perguntou ela, num tom baixo.

Eu levantei-me com um sorriso, divertida com a forma como Lithiel se esforçava por manter a compostura mesmo quando os olhos estavam quase a saltar-lhe das órbitas.

— É o nosso meio de transporte — informei, colocando-me ao seu lado — Não te preocupes, é completamente seguro.

As minhas palavras não pareceram surtir qualquer efeito em Lithiel, que não parou de mirar as carruagens amarelas com desconfiança enquanto estas abrandavam até parar na nossa frente com um curto silvo. Arrastando a mala de viagem atrás de mim, dirigi-me para a porta mais próxima. Lithiel seguiu-me com passos apressados, sem desviar o olhar do comboio.

Subi para o comboio com mais facilidade do que seria de esperar, atendendo ao peso da mala de viagem, e a primeira coisa que vi foi o panfleto com o meu rosto no quadro de anúncios mesmo ao lado da porta. Em cima, estava escrito “DESAPARECIDA” e, em baixo, informações básicas sobre o meu sumiço e um número que não reconheci. Deveria ser da polícia local… Maldição!

Olhei rapidamente em volta e, sorte a minha, a carruagem estava praticamente vazia. As poucas pessoas presentes estavam a tentar dormir ou concentradas em livros ou telemóveis. Nenhuma desviou o olhar na minha direção. Perfeito… Atravessei a carruagem com passos apressados e sentei-me no último conjunto de lugares, de costas para os restantes passageiros. Lithiel sentou-se ao meu lado, lançando-me um olhar inquietado.

— Há avisos com o teu rosto…

— Eu sei — murmurei, começando a procurar a minha carteira na mala de mão — Ouve-me com atenção…

Empurrei uma nota de dez euros para a mão de Lithiel e expliquei-lhe o que iria acontecer a seguir: um revisor viria cobrar a nossa passagem e ela só teria de lhe dizer o nosso destino, entregar a nota e guardar o troco. Entretanto, eu iria esconder-me na casa de banho na primeira carruagem e rezar para não me cruzar com o revisor no caminho. Lithiel não pareceu gostar da ideia de enfrentar sozinha uma situação que desconhecia por completo, mas não tinha outra hipótese. O revisor trabalhava no comboio, portanto, via frequentemente o meu rosto no cartaz junto à porta. Ele seria o primeiro a identificar-me e a denunciar-me… e eu não podia permiti-lo.

Tranquei-me na casa de banho durante uns dez minutos e aproveitei a breve paragem num novo apeadeiro (durante a qual o revisor estaria ocupado a verificar as entradas e saídas do comboio) para me escapulir e regressar para junto de Lithiel. A doppelganger estendeu-me o troco e os bilhetes assim que me sentei, sem me dizer uma palavra. Imaginei que ainda estivesse zangada por a ter deixado sozinha…

— Correu tudo bem? — perguntei, guardando os papéis e moedas na minha mala.

— Sim… mas começo a entender como te sentiste quando chegaste a Eldarya.

— Ah, sim?

Lithiel acenou lentamente com a cabeça.

— É tudo tão estranho para mim… Sinto que… tudo o que sei sobre o modo como funciona o mundo se tornou inútil no momento em que atravessei o portal. Sinto-me… desamparada… e não gosto de me sentir assim.

— É natural. A vida na Terra é muito diferente da vida em Eldarya, mas é só uma questão de tempo até te habituares…

— É estranho — continuou Lithiel, fixando a própria mão enquanto abria e fechava os dedos — A Maana de Úrano e Gaia faz-me sentir que posso fazer qualquer coisa, mas… não sei o que fazer, porque não entendo este mundo — baixou a mão e olhou para mim — A propósito, porque não usaste simplesmente a camuflagem para te esconderes do homem que veio falar comigo?

— Ah…! Eu não… me lembrei — admiti, abrindo um sorriso amarelo — Acho que reconfigurei o meu cérebro para o modo humano de pensar quando chegámos e… entrei em pânico, sei lá…

Lithiel fez um meio sorriso.

— Parece que não sou a única a debater-me para me adaptar a este mundo.

Eu concordei com um aceno e um sorriso contido.

A viagem até à estação distrital durou quarenta minutos. Aí, trocámos de comboio e enfrentámos mais uma hora de viagem até chegar ao nosso destino: a cidade onde se situava a universidade onde eu estudara Jornalismo.

Estávamos esganadas de fome devido ao stress da travessia entre realidades e às longas horas de viagem de comboio, por isso, decidimos parar para comer qualquer coisa. Nós tínhamos trazido alguns petiscos de Eldarya, mas julguei que seria um desperdício não aproveitar a ocasião para apresentar Lithiel à culinária terráquea. Escolhi levá-la ao McDonald’s, claro está. Desta vez, Lithiel não conseguiu manter a atitude indiferente e o seu queixo caiu enquanto me via pedir a nossa comida no quiosque eletrónico do restaurante. Fui pagar ao balcão e, dez minutos depois, estávamos sentadas numa mesa ao canto. Lithiel demorou-se a estudar os copos de papel e as palhinhas de plástico antes de começar a cheirar desconfiadamente as batatas fritas e o hambúrguer. Enquanto ela arregalava os olhos ao experimentar a Coca-Cola, eu liguei o telemóvel à rede wi-fi do restaurante. Acedi ao site da faculdade e procurei os horários da turma de Jornalismo.

— Hum… Eles estão a ter aula agora, terminam dentro de vinte minutos — murmurei para mim mesma — Talvez seja melhor esperar…

— Eu não faço a mais pálida ideia do que isto é — disse Lithiel, com a boca cheia de hambúrguer —, mas quero comê-lo para o resto da minha vida.

— Não, não queres — garanti, colocando o telemóvel de lado e concentrando-me no meu próprio hambúrguer — A comida do McDonald’s matar-te-ia mais rápido do que a poção mais mortífera do Ezarel. Acredita, eu sei…