Acordei na enfermaria da colónia, sozinha, e com uma dor latejante no lado esquerdo do pescoço. Julguei que era devido à dor que não conseguia levantar a cabeça, mas não tardei a perceber que não conseguia mexer nenhum dos meus membros. Sentia-me tão… fraca… Até raciocinar era difícil, enquanto o meu corpo me induzia a um sono reparador. Eu sabia que o melhor a fazer seria deixar-me levar e dormir até me sentir restabelecida, mas tinha demasiadas questões a atormentar-me o espírito…

Humedeci os lábios e fechei os olhos antes de forçar a voz a sair-me da boca, chamando Ashkore. Dois segundos depois, a cortina na entrada da câmara afastou-se e um dos curandeiros da colónia entrou.

— Ama Eduarda, como é bom ver-vos acordada — disse ele, num tom de voz estranhamente aliviado — O meu nome é Masaomi e sou o curandeiro encarregado de vos servir e tratar. Como vos sentis, Ama?

— Onde está o Ashkore? — murmurei, sem abrir os olhos.

— O Amo Ashkore está ocupado no momento…

— Quero falar com o Ashkore.

— Compreendo, Ama, mas…

— Chama o Ashkore imediatamente — ordenei por entre os dentes cerrados, começando a perder a paciência. A irritação serviu para espantar alguma da sonolência e percebi que permanecia em roupa interior por baixo da manta que me cobria. Quanto tempo teria passado desde que Ashkore me mordera…?

Masaomi hesitou, mas acabou por anuir com um aceno de cabeça e saiu da câmara em busca do meu irmão. Eu fiz um esforço para permanecer acordada enquanto esperava o seu regresso, mas estava demasiado cansada para resistir.

Quando voltei a acordar, tinha dedos enluvados a tecer leves carícias no meu rosto e eu soube quem era mesmo antes de abrir os olhos. Ashkore estava sentado numa cadeira ao lado da minha cama, sem a máscara, permitindo-me ver o seu sorriso amoroso e os seus olhos inundados de carinho. Virei o rosto na sua direção com mais dificuldade do que seria de esperar de um gesto tão simples e ele mudou as suas carícias para o topo da minha cabeça.

— Como estás, meu amor? — perguntou, baixinho.

Eu hesitei, demorando-me a fixar o seu rosto. Céus, ele era tão lindo… e eu amava-o tanto! A emoção que a mera visão do seu rosto provocava em mim avassalava-me o corpo e a mente, não me permitindo concentrar noutra coisa que não no desejo que sentia por ele. Eu jamais conseguiria ficar zangada com o titã por muito tempo, independentemente da circunstância, e, por essa razão, a minha voz soou mais confusa do que ríspida quando perguntei:

— O que diabos foi aquilo, Ash?

As carícias no meu cabelo estacaram enquanto a tristeza marcava o semblante do titã.

— Desculpa, Eduarda… — murmurou ele — Fui muito… rude contigo e lamento imenso o que fiz. Não era minha intenção deixar-te nesse estado, acredita. Se arrependimento matasse, eu já não estaria aqui. Por favor… por favor, perdoa-me…

— Mas o que é que aconteceu?

Ashkore soltou um suspiro desolado.

— Eu… perdi o controlo… Eu não estava com outra pessoa há muito tempo e… não consegui controlar os meus impulsos… Perdoa-me…

— Eu não sabia que os titãs bebiam sangue…

— Só alguns de nós têm essa tendência e eu deveria ter-te avisado disso antes de me envolver contigo. Desculpa…

— Mas… tu alimentas-te de sangue? — perguntei, confusa — Como os vampiros?

— Não, eu… eu não tenho a mesma necessidade de sangue que os vampiros, mas… — hesitou antes de soltar mais um suspiro e deixar a cabeça descair para o peito — Como te vou explicar isto sem que me aches nojento…?

— Eu nunca te irei achar nojento — garanti automaticamente — Jamais.

Ashkore levantou o rosto apenas o suficiente para me mostrar o seu sorriso comovido e inspirou profundamente, como se estivesse a reunir coragem. Depois, revelou de um só fôlego:

— Beber sangue dá-me prazer. Não é uma questão de necessidade, é somente uma questão de… gostar de bebê-lo. Principalmente quando… quando me envolvo fisicamente com alguém. Eu estava tão ansioso por estar contigo, esperei tanto tempo por esse momento que… não me consegui conter. Desculpa…

— Não faz mal, não faz mal — tranquilizei-o rapidamente, comovida pelo seu ar abatido — Eu… É um pouco estranho ouvir isso, mas acho que percebo o que queres dizer…

— Deveras? Isso quer dizer que… estou perdoado?

— É claro…

Ashkore esboçou um sorriso aliviado e esticou-se sobre mim para traçar um trilho de beijos que começou na minha testa e terminou nos meus lábios.

— Obrigado — murmurou contra a minha boca — Vou compensar-te um dia, prometo…

Eu fiz um pequeno sorriso e esperei por mais um beijo, mas, para minha tristeza, Ashkore afastou-se. Levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a mesa junto à saída, onde estava a sua máscara.

— Quero ver-te recuperada o mais rapidamente possível, portanto, segue as recomendações dos curandeiros e descansa. Estás proibida de fazer esforços — ditou, cobrindo o rosto com aquela coisa feiosa — Eu vou também pedir a algumas pessoas que venham aqui adorar-te. Isso irá apressar a cicatrização.

Eu acenei uma concordância antes de questionar:

— Virás visitar-me mais tarde?

Ouvi um risinho suave vir de detrás da máscara que o titã estava a terminar de apertar.

— É claro… mas não te irei incomodar se estiveres a dormir. Preciso mesmo que te recuperes depressa — virou-se para a saída — Dorme bem, irmãzinha…

Eu murmurei uma despedida e fiquei a vê-lo ir embora. Quando a cortina da entrada regressou ao seu sítio, soltei um suspiro entristecido. Gostaria de ter passado mais tempo com Ashkore… As saudades eram tantas que me espremiam o peito até quase não me permitir respirar! Porque não ficara ele ali comigo por mais algum tempo? Talvez pensasse que a sua presença não me permitiria descansar como deve ser? Mal sabia ele que a sua presença era o único bálsamo que eu queria ou precisava! Tinha de arranjar maneira de o manter ali… Talvez conseguisse convencê-lo a dormir comigo naquela noite? E, quem sabe, continuar o que começáramos no seu quarto…?

A entrada do curandeiro arrancou-me da minha fantasia e arrastou-me de volta à realidade. O cheiro a sopa quente que se desprendia da tigela que ele trazia numa bandeja preencheu de imediato a câmara e a minha boca encheu-se instantaneamente de água. Céus, estava esfomeada…

— Trouxe-vos o vosso almoço, Ama Eduarda — anunciou Masaomi — Precisais de ajuda para vos sentar?

Eu não respondi, limitando-me a fixá-lo enquanto tentava processar o que ele dissera. Almoço? Não deveria ser o jantar? Se eu chegara a Eldarya no início da tarde…

— Há quanto tempo estou aqui? — perguntei com um murmúrio.

— Dois dias — respondeu prontamente o curandeiro.

Precisei de mais uns instantes para processar a nova informação e, quando a assimilei, sentei-me tão depressa que senti uma pontada de dor perfurar-me o crânio. Ao ver-me levar uma mão à testa e soltar um gemido, Masaomi apressou-se a deixar o tabuleiro numa mesa próxima antes de vir amparar-me. Poisou uma mão na minha testa para medir a minha temperatura e fez-me um chorrilho de perguntas, mas eu não prestei atenção a nenhuma delas.

Dois dias? Eu estivera inconsciente durante dois dias?! Como é que isso acontecera?! Os titãs não tinham uma cicatrização mais acelerada que o normal? Quero dizer, o corte que eu fizera no lábio para abrir o portal sarara em poucos minutos! A dentada de Ashkore deveria ter sarado igualmente depressa! Em vez disso, estivera inanimada durante dois dias, sentia-me fraca como um recém-nascido e a ferida ainda latejava debaixo do curativo no meu pescoço…

— Ama Eduarda! — chamou-me Masaomi pela enésima vez, sacudindo-me suavemente — Ama Eduarda!

— Quão perto estive eu de morrer? — perguntei num sussurro quase inaudível.

Masaomi imobilizou-se, hesitando na resposta. Humedeceu nervosamente os lábios e murmurou:

— N-não tendes de vos preocupar com isso, Ama…

Eu fechei brevemente os olhos, subentendendo tudo o que ele não dissera: Ashkore bebera demasiado de mim e quase me conduzira à morte. Fazia sentido que me sentisse tão fraca, sendo esse o caso. Só a proximidade da morte me poderia ter debilitado daquela maneira…

— Quanto mais tempo irá demorar até eu recuperar por completo?

— Eu… não sei, Ama. Lamento…

Sacudi lentamente a cabeça, duvidando um pouco das suas palavras, mas não insisti. Preferi concentrar-me na segunda coisa mais importante no momento, depois da minha própria saúde.

— Onde está o Tadeu?

— Tadeu? — repetiu Masaomi, confuso.

— O titã que eu trouxe da Terra. Onde está ele?

— L-lamento, Ama, mas não sei dar-vos uma resposta. Nós cuidámos do vosso irmão até ele despertar e, depois disso, o Amo Ashkore levou-o consigo. Não o vejo desde então…

— Ele está bem? — insisti — A travessia entre os mundos não lhe deixou sequelas?

— Não, Ama, ele está em perfeito estado de saúde.

— Procura-o e trá-lo aqui. Eu preciso de falar com ele.

— Perdoai-me, Ama Eduarda, mas não creio que… — o curandeiro calou-se ao ver o meu olhar acutilante — S-será como quiserdes, Ama… mas, entretanto, por favor, bebei este caldo. Irá restaurar as vossas forças…

Masaomi foi buscar a bandeja com a tigela fumegante e eu cedi a bebericar o caldo enquanto esperava que me trouxessem Tadeu. A sonolência, porém, voltou a levar-me a melhor e adormeci pouco depois de terminar a minha refeição.

Acordei a sentir-me quase tão mal quanto da primeira vez. A dentada de Ashkore continuava a latejar no meu pescoço e eu ainda me sentia extremamente fraca, mas a sonolência abrandara e o meu raciocínio já não estava tão toldado. Um rápido olhar em volta confirmou que estava sozinha e perguntei-me por quanto tempo estivera a dormir. Masaomi já não deveria ter encontrado Tadeu? Chamei-o e o curandeiro não tardou a entrar na câmara, abrindo um pequeno sorriso.

— Ama Eduarda, bom dia. Como vos sentis esta manhã?

— Manhã? — repeti, admirada. Já era outro dia? — Quanto tempo dormi?

— Dormistes toda a tarde e toda a noite de ontem, Ama. Eu trouxe aqui o Amo Tadeu, como pedistes, mas já estáveis a dormir e não me senti no direito de perturbar o vosso repouso. Posso chamá-lo de novo, se quiserdes…

— Sim, por favor.

Masaomi aquiesceu com um aceno, fez uma pequena vénia e voltou a sair da câmara. Regressou quinze minutos depois, seguido de perto por… Tadeu?

Demorei a reconhecer o titã enquanto o meu cérebro se debatia para entender o que estava diante dos meus olhos. Era Tadeu, sim, mas o seu rosto estava terrivelmente desfigurado. O lado direito da sua cara era um amontoado de pele seca e esfolada que dava a ilusão de o seu rosto estar inchado e enrugado. Essa mesma pele estava colorida por um intenso tom de vermelho que em determinadas zonas escurecia até quase se tornar castanho. Era uma visão bastante perturbadora e, talvez devido ao choque que me provocou, demorei a perceber que aquilo era só a sua casca humana a cair. Era tão diferente da minha…

Imagino que os meus pensamentos estivessem estampados na minha cara, porque Tadeu baixou os olhos para os próprios pés, desconfortável. Entretanto, Masaomi murmurou uma despedida e deixou-nos sós. Um silêncio incómodo preencheu a câmara e eu comecei imediatamente à procura de uma maneira de aliviar o ambiente, mas Tadeu adiantou-se-me.

— Eu estou tão feio assim? — perguntou com um murmúrio.

— N-não! — neguei rapidamente — Desculpa, eu não… Eu só… não estava à espera que estivesses… assim. A tua casca humana está… muito perto de cair.

— Ah… Sim… O Ashkore me ofereceu algumas das suas adoradoras para apressar o processo. Se continuar assim, deverei estar completamente transformado dentro de dois ou três dias. Estou ansioso, mas também estou com um pouquinho de medo — acrescentou com um risinho atrapalhado.

— Acredita, entendo-te perfeitamente — garanti num tom sério que lhe arrancou mais um sorriso — Foi por isso que quis falar contigo. Achei que… enfim, te poderia tranquilizar uma vez que já passei pelo mesmo.

— Eu também queria muito falar com você, depois que o Ashkore me contou a sua história — revelou o rapaz — Tem muita coisa que eu ainda não entendo…

— É normal… mas senta-te, senta-te — convidei ao notar que ele permanecia nervosamente de pé no meio da câmara. Ele murmurou um agradecimento e sentou-se na cadeira ao lado da minha cama — O que gostarias de saber?

— Como foi que você me encontrou? — perguntou de imediato.

Eu fiz um pequeno sorriso e contei-lhe toda a sequência de acontecimentos que nos trouxera até ali, desde a revelação de Lee sobre a existência de mais nove titãs na Terra até ao momento em que eu e Lithiel invadíramos o seu apartamento. No meio de tudo aquilo que disse, Tadeu interessou-se particularmente pelos meus poderes de titânide e, incentivada pelas suas perguntas, estendi o relato ao modo como descobrira e treinara a camuflagem, a magia dos elementos e a expansão da minha perceção. Estava justamente a contar-lhe sobre os treinos pouco ortodoxos a que Nevra me submetera quando um pequeno grupo de rapazes surgiu na entrada da câmara, pedindo licença para entrar.

— O Amo Ashkore pediu-nos que vos viéssemos adorar, Ama Eduarda — explicou um deles antes de lançar um breve olhar na direção de Tadeu — Deveremos voltar mais tarde?

— Não, não, está tudo bem — garanti rapidamente — Vocês não nos atrapalham. Podem trazer uma cadeira e sentar-se, se quiserem.

O rapaz curvou-se numa vénia profunda.

— Perdoai o meu atrevimento, Ama, não é minha intenção ofender… mas conceder-me-eis permissão para segurar a vossa mão?

Eu soltei um pequeno suspiro contrariado, mas assenti. Eu nunca gostara de receber o afeto dos colonos através do toque e, agora que assumira uma relação com Ashkore, a ideia de ter as mãos de outro homem em mim incomodava-me ainda mais. O facto de eu permanecer em roupa interior por baixo da manta que me cobria só piorava a situação. Tinha de reconhecer, contudo, que não estava em condições de me armar em esquisita. Se a ferida no meu pescoço não sarara nos últimos dois dias, era um sinal de que os meus níveis de Maana estavam muito em baixo e, se queria repô-la rapidamente, teria de me submeter ao método mais eficaz…

Enquanto os outros rapazes se alinhavam ao fundo da minha cama, aquele que pedira para pegar na minha mão veio ajoelhar-se no chão, entre a minha cama e a cadeira de Tadeu. Estendi-lhe a mão direita e ele curvou-se sobre esta para pressionar os nós dos meus dedos contra a própria testa. Tadeu observava-nos com curiosidade, mas também algum desconforto, e eu presumi que aquela questão da adoração ainda lhe causava estranheza. Entreabri os lábios para o esclarecer, mas ele cortou-me a palavra com um suave pigarrear.

— E-Eduarda, se você quiser, eu posso sair para… deixar vocês mais à vontade — murmurou ele — Eu posso voltar mais tarde para continuar a nossa conversa…

— Não, não é preciso, não te preocupes — tranquilizei-o rapidamente — Não te incomodes com eles.

Tadeu piscou os olhos, surpreendido.

— Mas… você não vai…? — e lançou-me um olhar insinuante que eu não entendi.

— Não vou o quê?

— Você… — Tadeu hesitou e o lado esquerdo do seu rosto coloriu-se com um suave tom de vermelho — Você não vai dormir com eles?

Foi a minha vez de piscar os olhos, pasmada. Ouvi um dos rapazes ao fundo da cama soltar um pequeno arquejo e o rapaz que segurava a minha mão ergueu timidamente o olhar na minha direção, parecendo também muito interessado na resposta.

— Do… dormir com eles? — repeti, atarantada — N-não! Claro que não! Porque diabos faria eu isso?!

— D-desculpa, não era minha intenção ofender — apressou-se Tadeu a dizer, erguendo as mãos em sinal de paz — É só que… o Ashkore me disse que esse era o jeito mais rápido de acumular Maana, então… pensei que…

— Ele disse-te isso? — admirei-me.

— Disse… Ele até me aconselhou a dormir com as adoradoras que ele me ofereceu e elas se mostraram bastante dispostas a isso… — subitamente, ficou com uma expressão ligeiramente alarmada — O que ele disse não é verdade?

— N-não sei, quero dizer… — hesitei, ponderando a questão — Imagino que… Se o toque estimula a criação de Maana, então é possível que quanto mais… íntimo for o toque, mais Maana será gerada…

— É verdade, Ama — confirmou o rapaz que segurava a minha mão — A quantidade de Maana criada através da adoração é proporcional à intensidade do toque e à força dos sentimentos do adorador. Foi por essa razão que o Amo Ashkore nos enviou para vos adorar, Ama…

— O que queres dizer com isso? — perguntei, desconfiada.

O rapaz limitou-se a fazer um sorriso travesso e, sem desviar os olhos dos meus, depositou um suave beijo nas costas da minha mão. Eu soltei-me dele com um safanão, recolhendo a mão contra o peito. Um mau pressentimento revolveu-me o estômago.

— O Ashkore disse-vos para se deitarem comigo? — perguntei sem cerimónias.

— O Amo não o disse explicitamente, mas confirmou que seria melhor se nós conseguíssemos convencer-vos a aceitar o nosso afeto através do toque. Por isso… tínhamos esperança…

— Usai-nos, Ama Eduarda — suplicou um dos rapazes aos pés da cama, curvando-se pela cintura — Queremos ser-vos úteis… Por favor, Ama…

Os outros rapazes curvaram-se também e eu limitei-me a fixar os topos das suas cabeças, cilindrada. Ashkore enviara um bando de rapazes com as hormonas aos saltos para me adorar? E autorizara-os a insistir numa adoração pelo toque? Como fora ele capaz de fazer uma coisa daquelas?! Como fora capaz de oferecer a própria companheira às mãos de outros homens?! Como fora sequer capaz de imaginar que eu aceitaria estar com outra pessoa que não ele?! Era ridículo! Os meus sentimentos não significavam nada para o titã?! Como pudera ele fazer aquilo…? Eu queria acreditar que o meu irmão estava somente a pensar no meu bem e a tentar redimir-se do seu descontrolo dando-me os meios necessários para me curar mais depressa… mas havia outros métodos, que não envolviam cuspir nos meus sentimentos! Ashkore poderia, por exemplo, vir ele mesmo dormir comigo em vez de enviar aquele bando de patifes! Porque não o fizera…?

— Algum de vocês sabe onde está o Ashkore? — perguntei, incluindo Tadeu na pergunta com um rápido olhar.

Os faeries e o titã trocaram olhares entre si antes de sacudirem negativamente as cabeças. Eu inspirei um fôlego de paciência antes de anunciar:

— Nesse caso, estão dispensados. Saiam.

— Ama… — ainda tentou dizer o rapaz ajoelhado no chão.

— Saiam! Não têm mais nada a fazer aqui… Saiam!

Os rapazes hesitaram, mas acabaram por se curvar numa pequena vénia e sair. Tadeu levantou-se nervosamente da sua cadeira.

— T-talvez seja melhor eu ir também…

Eu ignorei-o e ergui a voz para chamar Masaomi. O curandeiro entrou a correr, com uma expressão ligeiramente preocupada.

— Precisais de algo, Ama Eduarda? — perguntou.

— Preciso do Ashkore. Onde está ele?

— E-eu não sei, Ama, mas posso procurá-lo…

— Eu vou contigo — decidi, começando a levantar-me.

— Não, Ama! — exclamou Masaomi, aflito, vindo rapidamente segurar os meus ombros contra o colchão — Não estais em condições de sair da cama, os vossos níveis de Maana estão…

— Não me irrites mais do que eu já estou, Masaomi! — cortei-o — Importas-te de poupar a pouca paciência que me resta e levar-me ao meu irmão? Eu quero falar com ele… Já!

O curandeiro hesitou, lançando um breve olhar na direção de Tadeu antes de soltar um pequeno suspiro derrotado.

— Muito bem, Ama… Irei buscar-vos uma muda de roupa.

— Faz favor!

Masaomi saiu da câmara com passos apressados e Tadeu começou a segui-lo, murmurando algo sobre deixar-me à vontade, mas estacou diante da cortina que cobria a entrada. Olhou-me por cima do ombro com ar inquieto.

— Eduarda… você está bem? — acabou por perguntar.

— Não… — resmoneei entredentres — Estou furiosa!

— F-foi algo que eu disse…?

— Não, eu não estou furiosa contigo — esclareci, impaciente — Estou furiosa com o Ashkore!

— Ah… — fez Tadeu, parecendo aliviado — Okay, entendi… — silenciou-se ao ver os meus sofridos esforços para me sentar — Você… quer ajuda?

Eu limitei-me a estender a mão na sua direção. Tadeu voltou para junto de mim e ajudou-me a sentar na borda da cama. A minha cabeça começou a latejar a par com a mordida no meu pescoço, mas fiz o meu melhor para ignorar a dor. Estava farta de estar naquele sítio, precisava de sair e esticar as pernas. Acima de tudo, precisava de esclarecer umas coisas muito sérias com o Ashkore e não queria estar deitada numa cama de hospital quando o enfrentasse.

Masaomi não tardou a regressar com a minha muda de roupa. Ajudou-me a enfiar uma túnica de linho branco pela cabeça e calçou umas pantufas da mesma cor nos meus pés antes de enfrentar o desafio de me colocar de pé. Foi mais difícil do que pensei que seria; as minhas pernas pareciam ter manteiga no lugar dos ossos e precisei de me apoiar nos ombros de Masaomi e Tadeu para finalmente levantar o rabo da cama. Os primeiros passos também foram problemáticos e teria caído estatelada no chão várias vezes se Tadeu não tivesse um braço enrolado na minha cintura, mas fui-me equilibrando melhor com o tempo. Não sabia se era a força que estava a regressar ou se estava somente a habituar-me e adaptar-me à minha fraqueza, mas não me interessava. A única coisa que queria era encontrar Ashkore.

Masaomi e Tadeu levaram-me até ao centro do labirinto de túneis, uma espécie de praça que, naquele momento, estava apinhada de faeries a correr de um lado para o outro. A agitação era desorientadora e o barulho de metal a chocar em metal era quase ensurdecedor, intensificando ainda mais a minha dor de cabeça.

— O que é que se passa aqui? — perguntei aos meus dois acompanhantes, lutando contra a vontade de me encolher numa bola e cobrir os ouvidos com as mãos.

Masaomi abriu a boca para responder, mas uma outra voz interrompeu-o:

— Eduarda! O que fazes aqui? — Ashkore aproximava-se com passos largos — Não deverias estar na cama? Não estás em condições de sair da enfermaria!

— Preciso de falar contigo — revelei antes de lançar um olhar curioso em redor — O que é que se passa aqui?

— Não é nada com que te devas preocupar neste momento! — disse ele num tom ríspido antes de me pegar no colo e começar a percorrer o caminho de volta à enfermaria — Se querias falar comigo, deverias ter pedido ao Masaomi para me chamar! Eu não te disse para não fazeres esforços?! Quero-te restabelecida o quanto antes!

— Foi a pensar nisso que mandaste aqueles cinco palermas deitar-se comigo? — perguntei num tom ácido.

Ashkore parou subitamente de andar, lançando-me um olhar arregalado do outro lado da máscara.

— Do que é que estás a falar? — murmurou depois de uma breve hesitação — Eu não os mandei dormir…

— Mas mandaste-os convencer-me a receber o afeto deles pelo toque, não mandaste? — cortei-o.

— Sim, mas…

— Como é que isso é diferente de me oferecer numa bandeja a outro homem?! — exclamei, franzindo o sobrolho — O que é que tinhas na cabeça quando decidiste fazer uma coisa dessas?! Tu sabes perfeitamente que eu não gosto de receber o afeto dos faeries pelo toque! Já bastou o que o Nevra e o Leiftan fizeram comigo! E também sabes, ou devias saber, que és o único homem que quero! Como pudeste achar que eu aceitaria ter outro homem a tocar-me?!

Ashkore não me respondeu de imediato. Olhou rapidamente em volta, como se procurasse algo, e acabou por se dirigir para uma câmara próxima. Entrámos no que parecia ser uma sala de aula e o titã poisou-me sobre uma das carteiras antes de segurar as minhas mãos entre as suas.

— Desculpa — murmurou — Eu devia ter-me lembrado de que tu não és como os outros. Por favor, perdoa-me… Na minha geração, nós habituamo-nos a partilhar os nossos corpos com os nossos seguidores sem atribuir qualquer significado romântico ao ato porque essa era a maneira mais rápida de produzirmos a Maana necessária à estabilidade de Eldarya. Por essa razão, somos mais recetivos ao toque e estamos mais dispostos à união dos corpos. Eu devia ter-me lembrando de que tu não passaste por essa situação e, por isso, tens um entendimento muito diferente da situação…

— Então a… “união dos corpos” não significa nada para ti? — inquiri com um nó na garganta.

Ashkore fez-me uma suave carícia no cabelo.

— Significa tudo quando é contigo…

— Isso quer dizer o quê? — perguntei, inquieta — Há alturas em que não é comigo?!

— Claro que não! — negou Ashkore, soltando uma pequena gargalhada — Tu também és a única com quem quero estar… mas eu costumava dormir com outras mulheres antes da guerra. Nunca significou nada porque era uma mera questão de satisfazer uma necessidade básica… ou assim pensava eu! Agora, entendo que nunca significou nada porque nenhuma daquelas mulheres conseguiu conquistar o meu coração, como tu fizeste…

O titã chegou-se à frente para me envolver num abraço quente e apertado e eu deixei-me ir, afundando o rosto no seu peito. De facto, eu não conseguia ficar chateada com ele por muito tempo… especialmente depois de uma declaração de amor tão bonita!

— Lamento muito ter enviado aqueles palermas para te adorar — murmurou Ashkore contra o topo da minha cabeça — Não vai voltar a acontecer. E vou-me certificar de que esses estultos receberão o castigo adequado por meterem palavras na minha boca! Eu nunca disse que eles poderiam deitar-se contigo! Isso está completamente fora de questão! Eu realmente quero que te recuperes depressa, mas não estou impaciente ao ponto de permitir que cinco garotos se deitem nos teus lençóis!

Eu abri um sorrisinho sedutor quando uma ideia me atravessou o espírito e enrolei as minhas pernas na cintura de Ashkore, puxando-o para mim. Envolvi os seus ombros com os braços, levando as mãos à sua máscara e começando a desapertá-la.

— Eu sei… — murmurei a escassos centímetros do seu rosto — Se tiver de me deitar com alguém para recuperar a minha Maana… será contigo, não é?

Ashkore segurou as minhas mãos antes que eu lhe pudesse tirar a máscara e afastou-as do seu corpo.

— É verdade… mas isso não será agora — negou brandamente o titã — Eu estou muito ocupado no momento, Eduarda…

Eu soltei uma exclamação arreliada, terminando num beicinho amuado.

— Arranjas sempre desculpas para não estar comigo…

— Não é uma desculpa, Eduarda. Eu estou realmente muito ocupado.

— Ocupado com o quê?

— Com os preparativos para o ataque às Guardas de Eel.