This is me trying

Único; I should have saved her


Verão de 1979.

Colégio interno da Horda.

Um raio reluziu forte do lado de fora do prédio, as nuvens pesadas se aproximavam lentamente no céu noturno, até mesmo um leigo notaria que uma tempestade estava por vir, da mesma maneira que era esperado uma queda de força, pois o gerador era fraco. A brisa gélida que veio da janela aberta, esvoaçando as cortinas, não a incomodou.

Por mais que se recusasse a admitir, Catra tinha medo de escuro, assim como tinha medo de perder Adora, mas mesmo assim o destino as distanciou.

Encolheu-se com cuidado na cama, abraçou os joelhos, suspirou fundo e encarou a porta entreaberta, devido a tranca quebrada, de seu quarto.

Evitou ao máximo fazer barulho, não queria despertar Shadow e nem ousava provocar a sua raiva. Sua espinha gelou ao encarar os hematomas em seus braços. Os machucados doíam, mas não mais que a realidade. Olhando de soslaio para cama ao lado, seu coração se apertou.

Adora a acolheria e a aninharia em seus braços numa noite dessas, era difícil se conformar com sua ausência.

Ainda assim a perdeu...

Vadia!

Era isso que a Shadow era, uma grande vadia!

Trincou os dentes ao lembrar-se do sorriso soberba que seus lábios emitiram ao queimar a última carta dela há exato um mês.

Shadow nem de longe era adequada para ser inspetora, sua admissão para aquele cargo era um mistério para a inocência de Catra, no entanto as veteranas sempre souberam o motivo, afinal ser filha do diretor tem seus privilégios. Ela a agredia mesmo sem motivo para isso, gritava e gostava de humilhá-la na frente de todos, sem contar que a sobrecarregava até tarde com funções que não eram de sua alçada. Sádica.

Adora — que era a queridinha de Shadow — a defendia sempre que podia e reprovava totalmente suas atitudes.

Adora e Catra eram melhores amigas, na verdade Catra a via mais que isso, todavia era um segredo que guardava nas folhas de seu diário. Como era esperado, Shadow odiava aquela aproximação e vivia a ameaçando para que se afastasse de seu tesouro.

Patético!

Era assim que contemplava aquela atitude. Shadow poderia impor medo em todas as meninas, menos em Adora, e talvez fosse por isso que ela tanto a adorava.

— Quem ela pensa que é para te tratar assim? — questionou a loira um dia após enfrentar Shadow e fugir com Catra de mãos dadas para a área afastada e arborizada do prédio. — Enquanto eu estiver aqui e puder intervir, nunca deixarei que ela te machuque.

Adora era um doce. No início da puberdade, quando o corpo muda, ela continuava bonita mesmo com a presença das acnes na face e a cada dia que se passava parecia que sua beleza se realçava. Seus cabelos eram cheirosos e não tinha nada que Catra amasse mais no mundo do que quando ela lhe permitia deitar em seu colo e a oferecia cafuné debaixo da macieira. Sua companhia parecia revigorar suas forças.

Rolou de lado da cama, sorrindo com as boas lembranças, contentando-se com o fato de que o sono a abandonara quando sentiu seu braço arder. Droga! Havia se esquecido dos hematomas, seus olhos lacrimejaram.

Sobreviver não era fácil, mas iria tentar por Adora e só por ela. Ela era a única ao seu lado quando o mundo deu-lhe as costas, a devia isso.

— Por que ninguém acredita em mim?! — gritou no quarto uma vez, frustrada. Jogou a mala com seus pertences em um canto qualquer do quarto e os mesmos se espalharam. Adora fez menção de recolhê-los, entretanto decidiu deixá-los para depois ao ver a morena deitada de bruços na cama chorando copiosamente contra o travesseiro.

— Ei! — disse sentando-se ao seu lado e passando a mão vagarosamente entre seus cabelos e costas — Calma, vai ficar tudo bem, ok?

— Você sempre diz isso, mas nada nunca fica bem...

— Olha, quer saber? Que se dane todo mundo, eu estou aqui para você e sempre irei estar.

— Você promete?

— Eu prometo!

Mentirosa... acusou e soluçou baixo.

Tudo aconteceu tão rápido e de repente.

Era, também, uma madrugada quando foi surpreendida com Adora correndo para o banheiro, assustou-se ao ver sangue sobre o lençol da cama da colega de quarto, apressou os passos e desencostou a porta.

— Tá tudo bem? — perguntou, contudo não obteve resposta. Adora tossia forte, de suas mãos escorreu sangue e o mesmo se respingou pelas beiradas do vaso. Foi até ela e sentiu-se confusa, sem saber o que fazer ou falar enquanto segurava seus cabelos para estes não se sujarem mais.

— Q-Quer que eu chame a-a-alguém? — gaguejou trêmula e Adora inclinou a cabeça para trás e suspirou fundo antes de assentir minimamente. — T-tá bem, espere aqui que vou ver se encontro alguém — avisou prendendo o cabelo da loira em um coque alto e correndo para fora do quarto.

Desesperada, bateu forte na porta do quarto ao lado e Lonnie atendeu com uma cara nada amigável, ignorou isso.

— Catra?! — a voz da colega era uma mistura de surpresa e sonolência.

— Rápido, é a Adora, não dá tempo de explicar.

— Mas o que aconteceu?

— Ela precisa de ajuda, e é urgente! — rebateu impaciente.

Lonnie concordou e acordou seu colega de quarto, Kyle, num tapa, e ordenou-o que fosse atrás de Mara, uma veterana que era responsável por aquele corredor. O rapaz, mesmo tonto, fez o que lhe foi mandado e Lonnie acompanhou Catra até Adora.

Não tardou para Mara aparecer de camisola acompanhada de Kyle e Rogelio. Com cuidado a levaram para a enfermaria e a examinaram. Aquilo não era nada bom. Em silêncio, organizou os pertences da companheira em uma mala branca e a levou para a diretoria, os responsáveis da Grayskull vieram buscá-la. A família Grayskull pertencia a uma linhagem nobre e se tinha uma coisa que a morena tinha certeza era de que a loira seria tratada pelos melhores médicos da região.

— Não se preocupe — Adora a disse sorrindo uma última vez. — Eu vou voltar em breve, não é nada demais.

— Assim espero, estarei te esperando.

Ah… se ela soubesse que aquela seria a última vez que a veria teria aproveitado mais, guardado melhor cada lembrança, desde os momentos de carinho aos recibos da padaria que tomavam um café quente nas manhãs dos finais de semana, porque cada pedaço dela lhe seria tomado.

— Sinto sua falta — desabafou abraçada ao travesseiro — queria que pudesse estar ao meu lado agora.

Seu coração parecia dilacerar-se dentro do peito.

Adora partiu devido a um quadro avançado de câncer no esôfago na primavera passada, nessa estação as flores não abriram suas pétalas. O colégio que antes parecia pouco acolhedor e vazio agora perdera totalmente suas cores.

— Sinto muito pela sua amiga — Lonnie prestou-lhe condolências, no dia em que a notícia chegou para dentro dos portões da Horda, acompanhada de Kyle — Ela deve estar num lugar melhor, descansou.

— Eu já estou cansada desse discurso de “um lugar melhor” — murmurou de cabeça abaixada, fechando fortemente as pálpebras e apertando os punhos.

Sem que pudessem dizer mais palavras genéricas, Catra correu para o jardim que passava as tardes com Adora e quebrou todos os vasos que estavam em seu alcance, chutando os bancos e jogando as luminárias para longe, na intenção de esvaziar sua raiva a cada golpe.

— O que pensa que está fazendo?! — Shadow gritou ao ver o jardim numa desordem — Sua insolência já está se tornando inaceitável!

— Jura? — questionou retórica, sorrindo irônica. — Quer saber de uma coisa? Eu não me importo! E o que você vai fazer em relação a isso? Chamar meus pais? Ah é, eles morreram! — decretou dando de ombros — Faça o que quiser, não tenho nada mais a perder — cuspiu no seu sapato, aquele gesto foi a gota d'água.

Voltado do enterro, Catra apanhou e foi deixada numa espécie de solitária por dias como castigo por vandalizar patrimônio público e desrespeitar os mais velhos. Não se importou com isso, para ser sincera ela não se importava com mais nada.

Só era capaz de chorar de raiva ao lembrar dos maus-tratos. Estava enlouquecendo, perdendo o controle, aquela era a verdade. Queria ser forte, queria enfrentar Shadow, queria jogar tudo que sufocava a garganta para fora, mas não conseguia, lhe faltava coragem.

Que droga! Havia prometido a si mesma que seria mais forte, mas fracassou de novo...

Adora não gostaria de vê-la assim.

Me esforcei tanto para o seu bem, para agora você acabar assim, deplorável! — Adora provavelmente diria.

Balançou a cabeça.

Não! Adora nunca falaria isso! Pelo menos não em voz alta, mas seus olhos deixariam escapar sua decepção...

Um calafrio lhe subiu pela coluna.

Sua mente novamente estava a brincar consigo.

Aquela incerteza do que foi e o que poderia ter sido a matava pouco a pouco a cada dia.

Deveria parar de cobrar tanto a si mesma e compreender suas limitações, isso era o sensato a se fazer. E quando se sentisse preparada enfrentaria Shadow e poderiam ter certeza de que na primeira oportunidade de partir dali ela partiria, partiria sem olhar para trás, partiria para se perder nas terras desconhecidas do norte, sem nunca retornar.

Prometeu a Adora que seria forte e era isso que faria, porém agora o plano em dupla seria individual. Independente disso, o que morreu não permaneceu morto, ela estava viva, tão viva em sua memória, tendo certeza de que sempre estaria presente em sua jornada.

Sorriu para outra vez a tristeza atingi-la, olhando a pulseira dourada que guardou da Grayskull e que deixará de enfeite presa entre o feixe e o gancho do cadeado de seu diário.

— Essa sou eu tentando, Adora… — a frase saiu embargada de seus lábios, sendo o estopim para as lágrimas salgadas transbordarem por seus olhos feito cascatas. — Juro que estou tentando, mas tudo isso está sugando todas as minhas forças.

Um dia teria forças e abriria a porta daquela gaiola, mas enquanto isso não acontecia, continuaria ali, cheia de dores, deitada naquele colchão duro, apenas sobrevivendo esperando por dias melhores. Ciente de que Adora a protegia em um lugar melhor, velando seu sono ou, no caso, a ausência dele.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.