Pompo já estava trancada naquele quarto fazia três dias. Nada que disséssemos parecia fazê-la querer sair de lá.

Velas foram espalhadas pela casa, que estava escura como se fosse noite. Poderia até ser noite, mas não havia como saber. Enquanto voltava de mais uma tentativa frustrada de levar comida pra ela, passei pela sala, onde as crianças brincavam com alguns blocos de madeira, enquanto Sekka, que deveria vigiar elas, roncava no sofá.

Pheal havia dito que deve haver comida guardada suficiente pra três ou quatro semanas, mas que não seria inteligente esperar todo esse tempo pra tomar uma atitude. Sendo a única que podia sair, ela foi aos correios e enviou uma carta expressa ao Skel, na esperança de que ele pudesse ajudar. As pessoas do outro mundo reclamavam que a tecnologia afastava as pessoas, mas só diziam isso porque nunca precisaram falar urgentemente com alguém através de cartas que levariam semanas pra serem entregues.

Coloquei a bandeja de comida no balcão da cozinha, onde Pheal e Cidia faziam o lanche pras crianças.

—Nada outra vez? —Perguntou Pheal, cortando uma fatia de pão

—Nada. Nenhuma palavra. Estou ficando preocupado. —Respondi, virando e olhando pra Alex e pro Pokko. —Não sei mais o que fazer.

—Pompo sempre foi uma criança. Parte disso é culpa do Ponko. Ele nunca parou de mimar ela. Que a Lua o tenha. Meu marido era muito apegado a ela. —Explicou Cidia. Nada que eu já não soubesse. —Dê mais um tempo pra ela. Tenho certeza de que ela irá se recuperar.

—Mesmo assim... —Suspirei. —Não posso deixar pra lá. Se chegar ao caso, mandarei a Alex explodir aquela porta.

—Ei, é da minha casa que você está falando! —Reclamou Pheal, largando um sanduíche de alface e carne na bancada onde preparava os outros. —Não pode sair por aí explodindo coisa!

—Foi brincadeira. Só farei se chegar ao extremo.

—Nem no extremo! Sei que está preocupado, mas isso é loucura. Ainda mais metendo sua filha nisso, Steve.

Pheal tinha razão. Eu precisava esfriar a cabeça um pouco.

Resolvi me sentar na poltrona ao lado do sofá, observando por um tempo as crianças brincando com seus blocos. Parecia haver uma história, mesmo que talvez fosse coisa da minha cabeça: Havia um muralha de blocos separando Alex, Linna e Gisele de Rheal e Pokko. Uma guerra entre meninos e meninas. Ambos construíram castelos, de cada lado, além de terem algumas regras estranhas que não pude entender.

Acabei adormecendo, sem nem notar. Os olhos pesaram e minha consciência se esvaiu quase instantaneamente.

O som de várias buzinas veio aos meus ouvidos, me causando uma sensação estranha, seguida de um conforto momentâneo naquele banco de couro com um leve aroma de perfume, vindo, logo em seguida, o susto: Onde estou?!

Acordei, olhando em volta. Luzes piscavam e se moviam por um fundo negro, enquanto o próprio fundo não possuía luzes. O cheiro de fumaça era enjoativo e o barulho era irritante.

—Vejo que acordou, Bela adormecida. —Disse uma voz estranha, mas familiar.

Ergui minha cabeça, forçando os olhos para ver. O sujeito era um homem grande, vestindo algo azul-marinho e segurando algo a sua frente.

—O-Onde estou? —Perguntei, com voz de sono e uma leve dor de cabeça.

—Está no meu carro, doido. Esqueceu? Você me pediu pra te buscar na faculdade.

Faculdade? Sim, eu fazia faculdade. Também me lembrava dos carros. Minha mente voltava a funcionar.

—Sério? Acho que estava muito cansado... Err...

—Alex. Seu irmão. Nos conhecemos desde que você nasceu, lembra?

—Alex... É, Alex. Foi mal, é que minha filha também chama Alex.

—Steve, o que você bebeu? Não anda fumando erva com aqueles seus amigos não, né?

—Não, não, você sabe que não. Pompo me mataria se... Espera... —Tudo começou a se encaixar. —Eu... Voltei?

—Quase. Estou te levando pra casa. Esse trânsito que está lento pra caramba. —Alex apertou a buzina duas vezes, fazendo soar aquele som irritante. —Tem alguma coisa pra comer quando chegar?

—Devo ter algo congelado. Sempre tenho.

—Precisa se alimentar melhor. Vá lá em casa qualquer dia desses. Você é sempre bem vindo.

—Tenho a leve impressão de que não vamos nos ver muito daqui pra frente.

—Você vai viajar?

—Acho que sim. Ainda estou pensando. Talvez o grand canyon.

—Bacana. —Ele ficou em silêncio.

—Foi bom te ver. É uma pena saber agora que isso é um sonho.

Ele suspirou longamente. —Digo o mesmo. Tinha a esperança de você ser um sonho.

—Você sempre mentiu mal, Alex.

Rimos juntos, lembrando, pelo menos eu, das coisas que fizemos. —Sinto sua falta. Muito mesmo. Acordo toda manhã pensando em onde você pode estar. Nunca acharam seu corpo, sabia?

—Agradeço por isso. Não estaríamos conversando se tivessem achado.

—É, você tem razão. —Outra risada. —Colocamos em um caixão algumas coisas que você mais gostava e fizemos um funeral. Foi bacana. A família apareceu, incluindo a Tia Bett, que não víamos desde a reunião de família que aconteceu há mil anos.

—Pelo menos se lembraram de mim. Sempre me chamaram de vagabundo pelas costas.

—Você era um vagabundo, Steve. Não diga que não.

—Eu era estudante. Eu trabalhava!

—Trabalhar em um restaurante não é bem o sonho de muita gente.

—Bom, dava pra viver, pagar contas, comprar comida, sair com umas gatas de vez em quando.

—E quem ia querer namorar você, seu doido? Nunca te vi com uma garota por mais de uma semana.

—Saiba que eu me casei e tenho dois filhos, esperando o terceiro.

—Você estar casado e com filhos é a prova de que isso é um sonho. —Ele ria tanto que me fazia pensar se realmente era um sonho.

—Você é um idiota, sabia? Só você pode se casar e ter filho? Saiba que ela não é feia, muito pelo contrário. Dei o nome da minha filha mais velha de Alex, pra nunca esquecer você. No entanto, nem reconheci você agora há pouco.

—Essas coisas acontecem. Apenas... Deixe levar. Daqui a pouco eu vou acordar, pensar um pouco nisso, encarar uma foto sua por meia hora e, quando minha mulher acordar, vou transar com ela como se fosse à última vez.

—Bom, caso eu acorde, farei a mesma coisa, tirando a parte da foto, já que não tenho uma. —Disse, sem lembrar que a Pompo continuava trancada no quarto.

Alex largou o volante e desligou o quarto. —Já que isso é um sonho, não importando de quem, então que se foda. —Ele me abraçou e, num gesto de surpresa e outras emoções, eu também o abracei. Foram segundos muito longos. No fim, ele beijou minha testa e disse que sentia muito:

—Devia ter te impedido de fazer aquela viagem. Devia ter brigado mais, gritado mais, tudo mais. —Ele agora se lembrava da viagem. —Mas, se você está feliz, seja onde for, posso ficar tranquilo.

—Você também. É bom saber que você está bem, que não ficou depressivo com a minha possível morte. Sabe que eu ia rir da sua cara se isso acontecesse.

—Pior que você ia mesmo. —Ele olhou para o teto do carro, mesmo que não quisesse olhar pra ele. —O despertador está tocando. Ahhh... Parece que é outro adeus.

—Darei um jeito de nos vermos. Eu prometo.

—Tome cuidado Steve. —Uma lágrima escorreu do seu olho.

Gritos e sons de madeira batendo me acordaram. Uma peça quadrada acertou minha testa, me despertando mais rápido do que eu queria.

—Desculpa papai, foi um acidente. —Se desculpou Alex, com as mãos nas costas.

—Tudo bem, filha... Tudo bem...

—O que foi, papai?

—Nada... Eu... Vou ver sua mãe.

Fui até o corredor, mas nem me aproximei da porta do quarto.

As lágrimas caíram.

Visão da Pheal:

A casa estava silenciosa como quase nunca é. Todos foram dormir, revezando turnos de vigia pela casa. Agora era o meu.

Bocejava de momento em momento, doida pra saber quando começaria o turno do Sekka. Minhas asas, descobertas, estavam retraídas e frias como mármore, cada passo parecia um soco no chão de madeira de tanto eco que vaziam.

De repente, entre um bocejo e outro, ouvi um barulho. Não haviam duvidas: Foi um teleporte.

Segui o som, fazendo o mínimo de barulho possível, até o segundo andar, onde a pessoa procurava alguma coisa entre as várias portas a sua frente.

Saquei meu punhal e me teleportei, o agarrando pelo pescoço. Ele era mais alto do que eu, com um capuz cobrindo sua cabeça. Preparei-me para cortar a garganta dele.

Visão da Pheal: Passado.

Já fazia sete meses que eu estava no exército. Tempo vai, tempo vem, apenas nós ficamos na quinta unidade mista, que quase estava pra se chamar de quinta unidade feminina.

Estávamos no inicio do inverno, com a neve caindo como se fosse o fim do mundo. Uma viagem de treinamento estava marcada para aquele, com direito a uma caminha longa e chata até o litoral.

Allie estava animada por algum motivo, enquanto Henhy parecia que ia morrer no meio do caminho. Lugni não ligava muito para nenhum estremo, embora quisesse ter metade da confiança da namorada.

Fizemos as malas e passamos os quatro dias seguintes andando sobre neve e gelo. Sentir o calor de uma lareira novamente foi tão reconfortante quanto qualquer outra coisa.

Comemos e fomos ao treinamento: Treinamento de combate, de caça, sobrevivência e, claro, mais caminhadas na neve.

No final da estação, quando a neve começava a derreter e aquele branco monótono dava lugar ao verde desbotado da grama, fomos fazer a última caminhada para um último treinamento, que seria surpresa.

—Espero que seja caça. Sou uma ótima caçadora. —Comentou Allie, com o nariz vermelho como um morango.

—Tirando aquela flecha que quase acertou a minha cabeça, sim, você é boa. —Disse Lugni. Todos rimos, meio debilitados pelo frio. —Então, já pensaram no inicio da primavera? É época de frutas.

—Gosto de frutas. —Comentei.

—Prefiro peixe. É temporada de peixe? —Perguntou Henhy.

—Acho que não. Ainda está tudo congelado. Realmente não entendo de peixes. —Disse Lugni.

—Acho que devíamos fazer limonadas e bolos com as frutas, aí nós pod... Kyahhh!!—Allie parou de falar. Um som alto de gelo se partindo e água respingando a chamou a nossa atenção.

Algo se acendeu como uma vela na minha cabeça: Estávamos andando sobre um lago congelado e Allie havia afundado naquela água congelante.

—Allie!!! —Gritou Lugni, me acordando pra realidade. —Droga! Precisamos ajudar ela! Ela não sabe nadar!

—Eu vou. —Disse, já tirando o meu casaco.

—Não, eu que vou. —Disse Henhy, arrancando seu casaco e se teleportando instantaneamente.

Foram alguns segundos de suspense até que Henhy voltou carregando Allie nos braços, as duas com as peles azuladas, desabando sem forças no chão.

Lugni e eu colocamos nossos casacos na Allie e vestimos a Henhy com o dela, tratando logo de acender uma fogueira para os dois.

A noite chegara e Allie continuava desmaiada, com a pele cada vez mais azulada e pálida. Henhy havia se recuperado, mas estava com os dedos dormentes do frio.

—Vou voltar e pedir ajuda. Vamos morrer aqui se não fizermos nada. —Disse, me levantando e preparando o teleporte.

—Não vou deixar que vá sozinha. Posso te seguir mesmo sem poder mexer os dedos. —Disse Henhy, tentando se levantar.

—Não, será mais rápido ir sozinha. Volto em poucas horas. —Dito isso, sumi na natural nuvem de partículas roxas.

Fui até o acampamento e requisitei ajuda, sendo atendida por dois médicos e outros três soldados. Mas era tarde. Quando chegamos no local, Lugni chorava sobre o cadáver duro e pálido da Allie, que parecia ter engasgado com a água que ainda restava em seus pulmões.

Foram três dias de atraso para retornarmos até o campo principal. Lugni enterrou Allie no cemitério do campo e saiu do exército depois de duas semanas. A quinta unidade foi desfeita poucos dias depois disso, já que só restavam Henhy e eu.

Nunca mais vi nenhum dos dois.

Visão da Pheal: Presente.

O sujeito agarrou o meu braço, me jogando por cima dele. Agarrei seu capuz, o fazendo cair, revelando um cabelo castanho escuro raspado e olhos azul-escuros com olhar de mosca morta.

—Não acredito... Pheal? —Perguntou ele, que na verdade era ela.

—O que faz aqui, Henhy? —Perguntei, nada amigável.

—Então é você a tal embaixadora? Nossa... Eu devia ter imaginado.

—E eu devia ter pensado em você quando alguém entrou. É a única que pode se teleportar através de paredes.

Foi um momento de silêncio e reencontro. Não soltei o punhal em momento algum.

—Sinto muito por isso, Pheal. Não é nada pessoal. Não faço mais parte do exército, se quer saber. Meu grupo está caçando bruxas. Temos alguém que é capaz de detectar elas. Antes só havia um, mas agora há duas, e estão aqui dentro, segundo eles.

—Bruxas? Está maluca, Henhy? Bruxas são seres magníficos. Como podem matá-las assim a sangue frio?

—Elas são criações do diabo ao qual chamam de Herobrine, Pheal. Seres que ameaçam a soberania da nossa raça e de nossa criadora. Estamos defendendo de verdade a nossa nação.

—Nossa nação não precisa ser defendida, Henhy. Com o atual estado do Império nós temos um bom suprimento de pó de Lucidiun para consertar as muralhas. Eu me certifiquei disso. Agora volte por onde veio e pare com essa loucura.

Pude ver que ela sacava o punhal bem devagar, encarando meus olhos como que arrependida do que iria fazer. —Desculpa Pheal, mas eu preci...

Um minúsculo brilho chamou minha atenção antes que sangue, ossos e pedaços de cérebro bombardeassem meu rosto com força suficiente para me fazer cair. O corpo da Henhy permanecia de pé, com o pescoço, não mais ligado a cabeça, cuspindo sangue para o alto.

Quando ela finalmente caiu, pude ver, suja de sangue e com um sorriso infantil no rosto, a pequena Alex, com fumaça saindo de sua mão direita.