Alguns elfos acreditam que a maré dos acontecimentos poderá ser transformada, que eles podem pôr um fim à expansão humana e, em última análise, à sua opressão pelos homens. Eles buscam a salvação em seus primos míticos - os Aen Elle, o Povo Ancestral. Dizem que os Aen Elle moram em outro mundo ou, possivelmente, outro plano, para o qual viajaram durante a Era Mítica da Migração, e do qual às vezes viajam para visitar nosso mundo. As lendas afirmam que um portal entre os mundos poderá ser aberto, permitindo que os Aen Elle venham ao resgate de seus irmãos oprimidos. Trata-se, no entanto, de um ingênuo conto de fadas que esta raça condenada à extinção usa para se proporcionar um pequeno conforto, nestes seus últimos e tristes momentos.



(trecho do livro “Os Aen Seidhe e os Aen Elle”)



I



Iorveth havia acordado tarde naquela manhã. O sol já estava alto e pássaros cantavam animadamente. O conforto de uma cama macia para dormir estava deixando-o desacostumado, ele pensou. Quando voltasse à sua vida imprevisível ao lado dos Scoia’tael, ele sentiria dificuldade em se acostumar a dormir sobre o chão duro da floresta. Sem duvida, o peso de seus séculos de vida estava começando a se manifestar.

A primeira reação do elfo foi ir até o fogo e verificar se haviam deixado comida para ele. Para seu deleite, sim. Uma fritada de ovos o aguardava, bem como uma jarra repleta de suco de amora, com um aroma agradável. Sobre a pequena mesa, Iorveth encontrou um bilhete, escrito na Linguagem Ancestral, certamente para evitar que Saskia soubesse de seu conteúdo.



Iorveth,

Fui à Lathlake alinhar detalhes sobre o ritual.

Turiel.



OS: Não beba do suco de amoras. Este suco é da Saskia



O Ritual... Iorveth logo estremeceu com a lembrança. Passou os últimos dias bastante nervoso. Chegou a sonhar, inclusive, com o Ritual feito meses atrás em Vergen, cujo intuito seria para salvar a vida de Saskia, a líder dos insurgentes. Em seus devaneios, porém, não era Phillipa quem colocava os lábios sobre a inconsciente Saskia, mas o próprio Iorveth. Se um feitiço seria lançado sobre o outro, ele teria de fazer algo semelhante. Mas desta vez, Saskia não estaria inconsciente sob efeito de um veneno. Estaria acordada. E conhecendo Saskia como ele a conhecia, ela poderia impedi-lo. Não aceitar. E assim, tudo estaria perdido.

O som de um urro deteve Iorveth de seus pensamentos sombrios. Era Saskia, do lado de fora, a usar o espantalho – de origem duvidosa, para Iorveth – em seu treinamento. Em sua mão, estava uma espada élfica que deveria pertencer a Elendil. O elfo caminhou para o lado de fora e parou próximo a Saskia, observando-a treinar. Sem duvida, ela já havia recuperado suas energias. Seus golpes eram precisos e fortes. Os golpes que se esperam de uma guerreira experiente e de sua estirpe.

—Sabe dizer se Turiel irá demorar? – ele a perguntou.

—Bom, ela disse que voltaria em breve, que foi só comprar alguns mantimentos.

Mais um golpe forte se seguiu contra o espantalho, já bastante surrado.

—Estou cansada de lutar contra algo inanimado. – disse Saskia, num tom de sugestão. Iorveth entendeu o recado, retirando do canto um das espadas Scoia’tael que acabou tomando dos elfos mortos por suas mãos.

Com Iorveth pondo-se em guarda diante de Saskia, as lâminas das espadas começaram a tilintar. A princípio, leve. No entanto, por própria iniciativa de Saskia, o treino começou a se intensificar. Iorveth apenas acompanhava seus movimentos, não tentando nenhum ataque mais audacioso contra ela.

—Lute contra mim para valer, Iorveth! Como se sua vida dependesse disso! – pediu Saskia, dando mais um golpe forte em Iorveth, que de tão violento fez o elfo sentir seu braço estremecer ao defende-lo.

A espada de Saskia parecia sedenta. Talvez a letargia de ficar sob uma cama a tenha deixado inquieta, impaciente. Ela não é muito diferente de mim neste aspecto, pensou Iorveth. Ela sentia falta de se exercitar, de praticar, de lutar. Veio outra vez mais um golpe forte, mas Iorveth decidiu adotar uma tática diferente, desviando seu corpo perigosamente do golpe, para que seus braços não se cansassem cedo demais por segurar tantos golpes fortes.

Depois de ouvir um urro de Saskia, Iorveth passou a ataca-la. A guarda de Saskia era tão forte quanto seus golpes de espada, mas o elfo não se deixou abater por isso. Permaneceu a golpeá-la, se movimentando como um dançarino, implacável e mortal.

A cada golpe de Iorveth, a guarda de Saskia começava a ceder. Humanos, como Iorveth sabia, perdiam estamina mais rápido que os elfos, e Saskia não era exceção a esta regra, mesmo com todo o sangue de Dragão que corria em suas veias. Por fim, o elfo golpeou sua espada de modo curvilíneo, e tudo que se pôde ver foi a espada de Saskia a rodopiar pelos ares e cair a metros dali, cravada sobre o solo.

-Nossa. Você... Está inspirado hoje, Iorveth.

-É... Acho que sim. – assentiu o elfo, caminhando ele mesmo para pegar a espada.

-Ah, Elendil pediu para que você fosse até o córrego. Ele mencionou algo sobre uma pescaria.

Ah, mas é claro, lembrou-se Iorveth. Elendil havia combinado com ele uma pescaria logo de manhã. O elfo detestava pescar, mas sabia que era necessário um esforço maior para finalmente provar o dito peixe assado de Turiel, a quem Elendil atribuía o sucesso da elfa em “agarrá-lo pelo estômago”. Como alguém que cumpria suas promessas, Iorveth precisou abandonar seu exercício com Saskia para se juntar ao elfo no rio próximo dali.

A visão não poderia ser mais patética. Ele encontrou Elendil travando uma verdadeira batalha com sua vara de pesca. Por fim, o elfo venceu a disputa, retirando do rio um peixe grande, que daria para pelo menos umas duas pessoas se fartarem com sua carne.

-Belo esforço. – elogiou Iorveth, no que era, na verdade, um escárnio que o esbaforido Elendil não poderia perceber.

-Esse é dos grandes. – respondeu Elendil, enquanto Iorveth sentava-se ao seu lado. Uma careta provocada pelo líder dos Scoia’tael ao fazê-lo chamou a atenção do elfo.

-O que houve? Por que essa cara?

-O seu cheiro...

-O que tem de errado com o meu cheiro? – perguntou o elfo, cheirando-se. – Ah, sim. Deve ser o peixe. Este já é o terceiro que pesco e...

-Não, Elendil. Há um cheiro estranho nesse seu gibão vermelho. Só não sei dizer o que é, mas... Esquece. Você não pode me entender porque decerto não é um Aen Seidhe puro como eu e Turiel para ter um olfato apurado a esse ponto.

-E eu que pensava que era a Magia que fazia Turiel ter um nariz bem treinado, mas vejo que você também sofre disso. Talvez porque seja mesmo verdade essa história de olfato apurado dos Aen Seidhe de sangue puro. Mas se quer saber, eu não faço a menor idéia do que está falando. Esse gibão aqui é o meu preferido. Foi Turiel quem costurou, no nosso aniversário de dois anos de casamento. É verdade que eu o encontrei com algumas marcas de dobra nos braços, mas Turiel disse que nosso filho estava se vestindo com ele.

-Mas seu filho era uma criança. Mesmo se dobrasse as mangas desse gibão, ainda ficaria grande nele, não? – perguntou Iorveth, desconfiado.

-Crianças fazem qualquer coisa na hora da brincadeira, Iorveth. Enfim, vamos voltar a pescar, senão Turiel irá me colocar no fogo com batatas e ervas se eu não tiver os peixes que ela pediu.



II



A serenidade do rio foi cortada com o quicar rápido de uma pedra, que sequencialmente a fez ir para longe. Elendil observava a pedra quicar rapidamente, diria até que de modo gracioso, na superfície da água. Lembrava-se de si mesmo, quando menino, a passar horas e horas de seus longínquos dias da infância a tentar fazer sua pedrinha quicar mais que três vezes e jamais conseguiu. Nem mesmo depois de adulto. E agora, Iorveth transformava sua outrora doce brincadeira de criança em uma forma de extravasar seu nervosismo. E pior: sendo muito melhor do que ele.

Se Iorveth não estivesse tão nervoso, Elendil o perguntaria sobre como ele conseguia fazer isso, mas no fim das contas, o elfo já o conhecia o bastante para saber quando falar e quanto ficar calado, e aquele era um momento daqueles. De não só ficar calado, mas também ouvir, se necessário.

Iorveth soltou uma palavra incompreensível, que Elendil imaginou ser um xingamento na Língua Ancestral, que o líder dos Scoia’tael tão bem sabia.

-Alguma coisa te atormenta? – perguntou Elendil, ignorando seu próprio conselho.

—Hoje é o terceiro dia. O terceiro dia desde que Saskia acordou. O Ritual irá começar esta noite, segundo Turiel.

—Você pode confiar em Turiel, Iorveth. Ela sabe o que está fazendo.

—Ainda assim... Eu não sei se...

Iorveth não conseguiu terminar sua frase, pois uma sombra projetou-se sobre ele. Era Turiel, com o semblante sério. A elfa feiticeira, herbalista e o que mais fosse estava de volta.

—Vejo que pescaram o bastante para o almoço. – ela concluiu, ao olhar o cesto com alguns peixes.

—Hoje estávamos com sorte.

—Mesmo? Ou será que Iorveth é um pescador melhor do que você?

—Iorveth?! Perdi metade das iscas porque esse Scoia’tael aqui simplesmente não tem paciência alguma para pescaria! – protestou o elfo. Sua esposa riu.

—Não duvido. Ainda mais com o estado de nervosismo dele, com o Ritual de hoje. Aliás, Iorveth, precisamos conversar sobre alguns detalhes para esta noite. Venha comigo.

Iorveth levantou-se, deixando escapar um suspiro. Tacou uma pedra mais uma vez. Esta ricocheteou, ainda mais longe que a anterior. Enquanto observava o líder dos Scoia’tael se afastar do rio, Elendil passou a imitá-lo, sem muito sucesso.

O elfo seguiu Turiel até uma parte da mata. Não estava entendendo muito bem para onde a elfa estava seguindo, até perceber que ela o estava levando até o que era uma gruta.

—Não tenha medo, é mais seguro do que parece. – disse a elfa, acendendo todas as tochas do lugar com um mero estalar de dedos. Logo, toda a caverna se iluminou e Iorveth percebeu que aquela não era uma caverna comum, como as inúmeras que ele encontrou pelas florestas dos Reinos do Norte. Aquele era um corredor antigo, com alguns sinais de arquitetura élfica ocultados pelo tempo e pela vegetação que insistia em crescer por ali.

—O que é isso? – ele sentiu-se no direito de perguntar, enquanto seguia a elfa escuridão adentro, até parar diante de uma porta.

—O laboratório de meu pai. – ela disse, como se isso fosse explicação o bastante. Com um sinal de Magia, a porta imediatamente se abriu.

—Entre. – ela disse, e Iorveth a obedeceu sem titubear.

Outro estalo de dedos de Turiel e o laboratório tornou-se iluminado, completamente iluminado. Iorveth percebeu que aquele era mesmo um laboratório. Embora não fosse dos mais versados em Ciências, ele sabia reconhecer tubos de ensaio, livros e outros aparatos, tipicamente científicos. Havia muita coisa ali, mas por todo o lugar havia um senso de ordem e limpeza que, sem dúvida, emanavam do zelo de Turiel. Provavelmente, a elfa tomava conta do lugar.

Dando alguns passos pelo laboratório, a fitar alguns utensílios despojados sobre uma mesa, Turiel decidiu dar-lhe algumas explicações.

—Eu era assim como você, Iorveth. Um elfo Aen Seidhe puro, das Montanhas Azuis, que vivia no isolamento, o mais distante possível dos dh’oines. Estava com minha mãe no Vale das Flores quando ela soube que um elfo acadêmico estava de passagem por nossas terras, um lugar esquecido até pelos deuses. Minha mãe dizia que havia sonhado inúmeras vezes com uma vida diferente para mim e não queria que eu perpetuasse a dura vida dos elfos das Montanhas Azuis, por isso ela me levou escondida até lá e me deu para este acadêmico. Eu tinha seis anos e desde então, nunca mais voltei a vê-la.

—Quem era este acadêmico? – perguntou Iorveth, folheando um livro na Língua Ancestral que estava obre a mesa. O título era “Propriedades Genéticas dos Povos Ancestrais”.

—Eruvalon. Mais conhecido como Eruvalon, o Sangue...

—“Eruvalon, o Sangue Iluminado”, sim. Já ouvi falar dele. Pergunto-me quem do nosso povo nunca ouviu falar do geneticista mais famoso da História. Um Mago elfo, o que não é de se espantar.

—Meu pai era um Mago elfo extremamente poderoso. Por séculos, trabalhou como pesquisador para Aretuza. Você provavelmente deve saber disso, mas ele se recolheu do mundo acadêmico pouco antes de eu nascer.

—Sim, eu soube. Nunca se soube o destino dele depois disso.

Os olhos de Iorveth contemplaram as estantes, repletas de livros antigos e alguns pergaminhos. Títulos como “Estudo Hematológico dos Elfos”, “Reprodução e Concepção”, “Manual de Dessecamentos e Autópsias” e “Propriedades Herbáceas e Componentes Genéticos” saltavam aos seus olhos. Tudo, exatamente tudo, na Linguagem Ancestral. Apesar de não ser versado em Ciência, nostalgia abatia o elfo. Era muito raro encontrar tanto conteúdo relacionado ao seu povo, e melhor ainda, em ótimo estado, longe das mãos profanadoras dos dh’oines.

—Estava havendo uma discussão na Escola de Feiticeiras de Aretuza, envolvendo a possibilidade, ou não, de feiticeiras terem o direito de serem mães. Meu pai desapareceu quando decidiu se encerrar a discusão. À época, ele estava estudando uma forma das feiticeiras serem capazes de conceber e dar à luz, mas com o encerramento desta possibilidade, ele simplesmente embarcou em reclusão.

—Eu soube. Alguns vão mais além e dizem que ele cometeu suicídio logo que saiu o resultado, mas sua presença aqui me diz exatamente o contrário. – disse Iorveth, enquanto seus dedos passavam pelas capas de um livro intitulado “Um Estudo Sobre a Reprodução Humana”. O elfo percebeu que este livro, assim como os de sua prateleira, não era tão antigo quanto os outros, e nem estava na Linguagem Ancestral.

Turiel assentiu levemente.

—Meu pai entrou em depressão com a decisão de Aretuza, sim. Estava com uma pesquisa bastante avançada, faltando pouco para concluir. Resolveu, então, ir até o Vale das Flores, no que hoje chamamos de Reino de Dol Blathanna, para refletir. Creio que ele queria ficar mais perto de seu povo. Submerso em livros e pesquisas, meu pai não fazia ideia do que estava acontecendo ao seu povo, até ver com seus próprios olhos que os elfos estavam à beira da extinção.

Iorveth puxou uma cadeira do laboratório e sentou-se. Tinha de admitir que a conversa estava ficando cada vez mais interessante.

—Como provavelmente deve saber, praticamente todas as feiticeiras formadas em Aretuza são humanas.

—É verdade. – aceitou Iorveth.

—Com o conhecimento que ele tinha, ele ajustou sua pesquisa para outro assunto. A fertilidade das elfas. Ele as comparou com a das humanas. Foi uma pesquisa de décadas. No entanto, ele percebeu que, no fim das contas nós, elfas, não temos grandes diferenças perante as humanas, além de uma gestação um pouco mais longa, ciclos menstruais bimestrais e...

—Com todo o respeito, Turiel – interrompeu Iorveth. – Eu não entendo nada disso. Nem mesmo de elfas, que dirá de dh’oines.

—Verdade, por vezes eu me empolgo e me esqueço de que estou conversando com um leigo. Elendil também tem dificuldades em entender. Mas voltando ao assunto. Meu pai ficou arrasado com o resultado de décadas de pesquisa e cometeu suicídio. Seu fracasso foi grande demais para que ele aguentasse. Eu tinha acabado de me casar com Elendil quando isso aconteceu.

—Sinto muito. – disse o elfo, com sinceridade. – Mas pelo que vejo, você não se desfez de todo o aparato dele. Muitos pagariam uma fortuna por tamanho acervo e equipamento.

Os olhos da elfa pareciam contemplar o laboratório.

—Eu não tenho coragem. Sabe, foi ele quem me criou e me deu educação. E eu nunca frequentei Aretuza ou qualquer outra escola de feiticeiras. Tudo que sei de Magia foi ele quem me ensinou. Não só a Magia, mas também os conhecimentos em Política. Ele queria que eu me tornasse uma feiticeira melhor do que as de formação, mas com a morte dele, eu deixei de aprender mais. Por isso, peguei o meu conhecimento em ervas e me tornei herbalista.

—E você só mantém o laboratório dele? Não faz nenhuma pesquisa?

—Não tenho tanto conhecimento assim.

—Entendo. – disse Iorveth, olhando para os tubos de ensaio, alguns repletos de líquido a borbulhar. Equipamentos funcionando, livros novos... Iorveth não estava muito convencido de suas palavras, mas não se sentia no direito de insistir no assunto. Turiel caminhou até uma espécie de cofre e conjurou um feitiço, fazendo o cofre imediatamente se abrir.

—A Rosa da Lembrança. – ela disse, tirando de dentro do cofre uma redoma de vidro, onde uma rosa parecia envolta de Magia e bastante viva. – Como eu presumi, meu pai também tinha uma, embora eu não saiba para qual finalidade. Como ele gostava de colecionar quinquilharias, creio que esta foi mais uma das extravagâncias dele em vida. Parece que este é seu dia de sorte, Iorveth, pois a Rosa está intacta e muito bem conservada em Magia.

—E agora? – perguntou-se Iorveth.

—Já temos tudo que é necessário para o Ritual. Agora, é necessário que Saskia esteja pronta. Presumo que leu o meu bilhete, certo? Claro que sim, do contrário você teria bebido o suco e estaria completamente desmaiado a esta altura. Pois bem, creio que Saskia está pronta a esta hora. Elendil já deve estar em casa e ofereceu o suco para ela, como eu pedi que o fizesse.

—Você dopou Saskia. – concluiu Iorveth, com raiva.

—O que mais queria que eu fizesse? Que eu me voltasse para ela dizendo “Olha Saskia, deita naquela pedra ali, que o Iorveth irá colocar uma pétala sobre os seus lábios e beijá-la, está bem?” Claro, se vocês fossem um casal, ela o faria sem problemas, mas tendo em vista que vocês são apenas bons amigos...

—Pare de insistir nisso. Eu fui bem claro quanto a minha decisão, não fui?

—Está bem, está bem. – aceitou Turiel. – Agora, vamos embora. Ainda tenho peixes para preparar para o almoço. Precisamos estar bem alimentados para o que está por vir.



III



A noite já havia caído. No centro de uma clareira na mata, jazia uma pedra. Vestida em uma camisola, Saskia estava deitada, inconsciente, ainda pelo efeito do entorpecente colocado em seu suco. Doeu para Iorveth vê-la naquele estado outra vez, mas o consolo do elfo era saber que aquele seria o fim de seu suplício. Ou, sob outra perspectiva, o início de outro.

Iorveth não estava conformado com este desfecho. Ele queria Saskia liberta outra vez, dona de si e tendo suas opiniões. Ele queria ter de volta aquela mulher forte e destemida por quem se apaixonou, não uma sombra dela a confiar cegamente em uma feiticeira poderosa. E pior, a confiar cegamente nele. Um dia, pensava o elfo, um dia eu conseguirei libertá-la de seu encantamento por Phillipa. Em seu bolso, estava o contrafeitiço de Turiel. Um colar. Bastava lança-lo ao fogo ou quebra-lo para que o feitiço que a elfa estava prestes a fazê-lo fosse destruído. Possivelmente, Phillipa fez algo semelhante. E um dia, ele conseguiria pôr as mãos no contrafeitiço da arcana. Um dia.

—A noite está esplêndida. Sinto uma áurea poderosa do elemento Ar, o meu elemento predileto. O clima também está bom, sem qualquer sinal de chuva. As condições estão ótimas. – analisou Turiel, olhando para o céu. – Escutem agora, vocês dois. Eu já lhes passei as instruções. Agora, vocês devem segui-las à risca. Nada farão de diferente do que eu expliquei, entenderam?

Os dois elfos assentiram.

—Dúvidas? Ótimo. Vamos começar. Iorveth, posicione-se ao lado de Saskia. Isso. Elendil, segure a pétala da Rosa da Lembrança. Com cuidado, está bem? Se essa pétala cair sobre a terra, ela estará comprometida e teremos de tentar outro dia. Agora, fiquem quietos.

Estendendo sua mão para a direção de Saskia, Turiel começou a balbuciar uma dúzia de palavras na Língua Ancestral. Sua mão iluminou-se, tornando-se branca e repleta de luz. Por mais que fosse fluente no idioma, Iorveth não conseguiu compreendê-las. Deveriam ser ritos élficos, há muito esquecidos e que Turiel teve o privilégio de aprender com seu pai de criação, um Mago elfo extremamente poderoso.

Uma fina áurea passou a se formar ao redor de Saskia. Tudo parecia funcionar conforme o planejado, até o momento em que o corpo da guerreira começou a estremecer.

—Turiel, o que está havendo? Isso é normal? – questionou Elendil. O elfo percebeu, então, que Turiel passou a utilizar as duas mãos, e que ambas tremiam. Como se a elfa se esforçasse para conter alguma coisa.

—O que está havendo, Turiel? – questionou Iorveth, nervoso por ver os olhos de Saskia se abrirem, assustadoramente rolados.

—Elendil, coloque imediatamente a pétala sobre os lábios de Saskia!

O elfo fez o que sua esposa ordenou, no entanto, Saskia não parava de tremer.

—Tente contê-la, Iorveth! A pétala não pode cair sobre o chão! Rápido! Não vou conseguir aguentar por muito tempo! – pediu Turiel, com seu corpo já estremecendo. Para pavor de Iorveth, fendas de terra já se formavam ao redor dos pés da feiticeira. O que quer que ela estava tentando conter, era muito forte.

Sem qualquer delicadeza, Iorveth segurou a cabeça de Saskia, possibilitando a Elendil que a pétala fosse colocada em seus lábios. A força que o líder dos Scoia’tael aplicava sobre a cabeça de Saskia era tão grande que Iorveth temia que fosse quebrar o seu pescoço.

—Beije-a, Iorveth! – ordenou Turiel, sendo prontamente obedecida pelo elfo. Mal seus lábios tocaram os de Saskia, a áurea formada sobre seu corpo passou a brilhar com grande intensidade, cegando momentaneamente os olhos de Elendil, que foi surpreendido pela inesperada luz intensa e resplandecente. Turiel teve tempo de fechar seus olhos e não ser cegada pela luz, e Iorveth já se encontrava com os olhos fechados durante o Ritual, não sendo afetado por coisa alguma.

—Não consigo enxergar! – gritou Elendil, esfregando seus olhos.

A luz permaneceu a se intensificar, e os três foram lançados para longe por uma espécie de explosão. Turiel caiu contra uma árvore, perdendo os sentidos, tanto por exaustão quanto pelo impacto da pancada contra a árvore. Um rugido chamou a atenção de Elendil. Um rugido... Estranho. Logo a visão voltou aos seus olhos, e para surpresa do elfo, Saskia havia desaparecido para dar forma a um imenso Dragão, negro como a noite, a bater suas asas.

—Puta merda, um Dragão! – exclamou Elendil. – Onde está Saskia, Iorveth?

Iorveth caiu rolando sobre a grama e estava consciente, apesar de um profundo ferimento em sua perna causado por uma pedra. O bater das asas do Dragão começou a fazer estremecer as copas das árvores, e pedras começaram a ser lançadas pelo ar.

—Saskia é o Dragão, Elendil!

—O quê?! – aturdiu-se Elendil. – Como assim, um Dragão?!

—Saskia pode se transformar em um Dragão, Elendil. Phillipa a enfeitiçou porque queria o controle de um Dragão.

—Por que não contou isso, Iorveth?! – questionou Elendil, furioso. No entanto, o Dragão soltou mais um rugido, interrompendo a reclamação do elfo.

Para pavor de Elendil, o Dragão – ou Saskia, como explicou Iorveth – estava caminhando para a direção de Turiel, inconsciente e completamente vulnerável. Para pavor de Iorveth, Elendil correu em direção a sua esposa, e ao tentar pôr-se no meio de ambos, acabou abocanhado pelo dragão. Seus gritos de agonia foram cessados logo na primeira mastigada de Saskia, restando para fora de sua boca parte do braço e as duas pernas.

—NÃÃÃÃO! – gritou Iorveth, ao ver o corpo de Elendil sendo lançado para longe, já destroçado. Com a perna ferida, Iorveth buscou ignorar as dores de seu ferimento para correr até o Dragão, antes que sua fúria também recaísse sobre a inconsciente Turiel. O elfo só esperava que o encantamento de Turiel tivesse tido lá seu efeito, do contrário ele teria um destino semelhante a Elendil.

—Saskia, pare com isso! – disse Iorveth, com as mãos estendidas para não fazer movimentos bruscos. O Dragão soltou um rugido mais melancólico. Virando-se para Iorveth, sua postura passou a ser menos agressiva. Percebendo que havia adquirido sua atenção, Iorveth se aliviou.

—Saskia, volte à sua forma humana. Agora. – disse Iorveth, com comando em sua voz. Ao notar outra vez a luz resplandecer seus olhos, Iorveth sabia o que aquilo significava. Saskia o obedeceu. O feitiço de Turiel funcionou. E o elfo soube disso da pior maneira possível.

Quando seus olhos voltaram a vê-la, Saskia estava de joelhos sobre o mesmo local. Sua cabeça estava baixa, e Iorveth podia ouvir um ganido de choro. Seus cabelos loiros não permitiam ao elfo ver seu rosto.

—O que eu fiz? – murmurou Saskia, num tom de ojeriza. Após alguns segundos de choro, a mulher ergueu sua cabeça. Seus lábios estavam repletos de sangue. O sangue de Elendil.

—Está tudo bem agora. – disse Iorveth, colocando-se de joelhos e se aproximando dela.

—Me abrace, Iorveth. Por favor.

Iorveth estranhou seu pedido, mas logo o elfo entendeu o que seu pedido incomum queria dizer. O feitiço. Agora, ela detinha grande estima por ele. Uma estima cega e descontrolada.

O elfo atendeu ao seu pedido, juntando-se à Saskia ao chão e tomando-a pelos braços.



IV



O sol mal havia nascido. Iorveth e Turiel estavam diante da fogueira, onde agora ardiam os restos de Elendil. Não todos os restos, mas o que pôde ser encontrado pela floresta. Iorveth não quis esperar o dia nascer para começar sua busca. Queria dar a má notícia a Turiel com ao menos o que dava para ser chamado de “corpo” para que ela desse um desfecho digno ao seu marido. Sim, boa parte de Elendil estava agora sendo digerido por Saskia naquele momento, mas o elfo fez o que pôde para recuperar o que sobrou do apetite de sua forma draconiana.

Turiel acordou após algumas horas. Não se lembrava de nada, mas Iorveth sentiu-se no dever de contar que a fera que reduziu seu marido a pedaços foi, na verdade, Saskia e sua forma draconiana. Claro, houve espanto por sua parte, ao saber que Saskia poderia se transformar em um Dragão, mas as reclamações não cessaram, e Iorveth não fez qualquer impedimento em ouvi-las.

—Você deveria ter me contado que ela era uma polimorfa.

—Eu não quis te contar, porque eu temi que...

—Que eu quisesse te enganar e tomar o controle de Saskia. – completou Turiel, com desgosto. – Quão inteligente você é, Iorveth. Só que você ignorou o meu alerta, lembra-se? “Conte-me tudo, mesmo o detalhe mais insignificante”! A habilidade de Saskia em se transformar em um Dragão não é significante o bastante para você? Se tivesse me contado, eu teria feito algumas alterações no Ritual e Elendil... Bem, Elendil estaria vivo.

Iorveth baixou sua cabeça. Sentia-se agora, mais do que nunca, culpado por sua morte.

—A sua falta de confiança estúpida em mim custou o sangue de Elendil.

—Eu sei.

—Agora, estou sozinha outra vez. – disse a elfa, com lágrimas. – Perdi meu filho, e quando penso que a vida trouxe o meu marido de volta, para que juntos pudéssemos recomeçar, você estraga tudo. Primeiro, o influencia com suas malditas ideias de Scoia’tael...

—Eu não influenciei ninguém. – tentou se justificar Iorveth. – Seu marido era adulto o bastante para saber o que queria.

—Elendil está morto. – concluiu Turiel. – E agora, terei de recomeçar minha vida sem ele. Novamente.

Os olhos de ambos voltaram-se às chamas, e assim permaneceram pelo que parecia ser uma eternidade. Por fim, coube à Iorveth dar-lhe seu comunicado.

—Antes do cair da noite, eu e Saskia iremos embora daqui.