Fim de tarde – Ostania, Berlint – Casa dos Forger

Loid caminhava de um lado a outro da sala, os cabelos completamente bagunçados devido às mãos frenéticas, o peito acelerado em expectativa.

Ansiedade e temor se misturando como feras enjauladas dentro dele, sentimentos que o agente Twilight nunca pensou que voltaria a sentir.

Ele nem ao menos se reconhecia.

A infância conturbada e todos os sentimentos ligados a ela estavam presos e escondidos em um local escuro e inalcançável de sua mente. Ou ele achava que sim.

Mas ali, sapateando pela sala enquanto esperava Yor chegar, ele se sentia como aquele garotinho assustado de novo, perdido no turbilhão de sentimentos e no futuro incerto que o aguardava.

Porque contar seu segredo mudaria tudo!

O caminho de volta para casa, depois do encontro com sua chefe, passou como um borrão para Loid mesmo que ele tenha decidido andar todas as nove quadras ao invés de pegar um táxi ou o ônibus. Os pensamentos e planos que encheram sua cabeça o distraíram tanto que quando percebeu estava parado na porta de seu prédio com a única solução possível ainda sendo aquela que ele mais temia.

Não tem outra forma de se infiltrar tão rápido no Jardim.

Não tenho tempo!

É uma questão de vida ou morte.

É uma missão e tenho que fazer tudo para concluí-la.

Loid repetia os pensamentos como um mantra, uma forma de convencer a si mesmo que acima de tudo ele era o agente Twilight e que a missão vinha em primeiro lugar.

Mas ele sabia, em sua parte mais profunda, que aquilo era um mero resquício de quem ele fora. Suas prioridades mudaram drasticamente e tudo que seu subconsciente ecoava era:

Ela vai me odiar!

Ela nunca vai me perdoar por continuar mentindo quando ela revelou seu segredo mais profundo.

Ela vai embora por achar que não confio nela o suficiente.

Ela vai me odiar!

Esse foi o último pensamento tenebroso que passou por sua mente antes que ele ouvisse o rangido da porta da frente. Tudo ficou em branco e Loid congelou no meio da sala quando os saltos de Yor ecoaram no apartamento silencioso e ela ergueu os olhos.

— Oh, Loid! Não imaginei que já estivesse em casa! – A expressão assustada logo se derreteu em um sorriso doce. Ela deixou os saltos na entrada e caminhou calmamente na direção do homem ainda paralisado. Ela olhou ao redor. – Onde está Anya? Está cedo para ela estar na cama, não?

Loid reencontrou a voz depois de segundos, pigarreando e desviando os olhos do rosto de Yor.

— E-Ela foi passar a noite na casa da Becky. Volta para casa amanhã de manhã.

Yor arregalou os olhos e soltou a bolsa sobre a poltrona.

— Loid, você sabe que não é seguro! O Lojista ainda pode...

Loid saiu de seu torpor ao ver o rosto amedrontado de Yor. Deu um passo na direção da mulher e tocou o rosto dela carinhosamente.

— Ela está na mansão Blackbell, uma das mais seguras do país. Ela vai ficar bem.

Yor inflou as bochechas e cruzou os braços, a expressão em uma indignação tão adorável que Loid não conteve o sorriso. Ela pareceu ficar ainda mais irritada.

— Isso não impediu aquele assassino de quinta categoria de invadir a mansão Desmond que também é bastante vigiada! E o pessoal do Jardim não é nenhum pouco amador...

— A gente já falou sobre isso. O Lojista não suspeita que você contou seu segredo ou ele já teria agido! – Loid rebateu, as mãos descendo para o pescoço de Yor lentamente. – Anya vai ficar bem, eu prometo.

Yor suspirou e assentiu, os olhos vermelhos encarando o rosto de Loid e um sorriso calmo surgindo nos lábios.

— Tudo bem. Eu confio em você.

Confio em você.

Uma frase simples, mas que atingiu Loid como um soco no estômago. Ele sentiu algo amargo na garganta e se afastou de Yor lentamente, desviando os olhos como um covarde.

Mas não havia escapatória. Ele precisava contar, precisava dela para ter acesso ao Jardim e recuperar os arquivos. Era algo muito maior do que eles.

Loid suspirou e se virou, as costas tensas e eretas voltas para Yor que franziu o cenho, confusa com a mudança tão repentina de humor.

— Loid?

— Yor, eu... realmente... eu preciso... eu sou...

Ele trincou o maxilar, as palavras se enrolando, se prendendo na garganta como serpentes venenosas, impossíveis de sair. Yor deu um passo a frente e tocou o ombro dele com delicadeza, o coração acelerado ao imaginar se aquele era finalmente o momento que ela esperou por duas longas semanas, se ele finalmente iria revelar tudo.

— O que foi, Loid?

Loid tremeu involuntariamente com o toque de Yor e voltou a olhar para ela. Os olhos vermelhos e tão brilhantes transmitiam uma força e empatia que fez o coração de Loid saltar, injetando nele uma coragem inesperada.

Ela entenderia. Ela tem que entender.

Ele tomou as mãos dela nas suas, os olhos intensos sobre os dela, e deixou a voz firme ecoar seu maior segredo, aquele que vinha guardando há mais de dez anos e nunca revelara para ninguém.

— Yor, eu sou um espião!

O silêncio sepulcral se instalou logo após as palavras, pesado e sufocante. Loid abaixou a cabeça, incapaz de encarar aqueles olhos escarlates tão expressivos, mas não conseguiu soltar as mãos dela. O calor ali aquecia seu corpo subindo pela ponta dos dedos enquanto ele esperava que ela se manifestasse. Raiva, mágoa, desprezo e mais uma gama de sentimentos era o que ele esperava. Ele sabia que merecia que ela gritasse consigo, que se afastasse, que o odiasse.

Mas ouvir o suspiro aliviado, quase como uma risada, o surpreendeu ainda mais.

Assim como as palavras que ela murmurou como se as estivesse segurando por tempo demais.

— Finalmente!

— Eu sei que... – Loid parou quando as palavras dela fizeram sentido em sua mente conturbads. Ele arregalou os olhos, os dedos ainda apertando as mãos dela, e ergueu a cabeça rapidamente. – Espera, o que você disse?

Yor ergueu os lábios num sorriso que parecia esconder todos os segredos do universo, sagaz e incisivo. Ela aproximou os lábios do ouvido dele, se inclinando ostensivamente.

— Eu disse: finalmente! Faz dias que espero que você faça essa “grande revelação”. – Ela revirou os olhos e deu de ombros, despreocupada. – Ou ao menos a faça enquanto estou plenamente consciente.

Loid estava paralisado, a boca entreaberta em perplexidade e a cabeça girando com tantas teorias. De todas as possibilidades aquela fora a única que nunca passara por sua cabeça. Ele sentia que entrara num universo paralelo completamente insano. O homem piscou se forçando a pensar com clareza.

— Então, naquele dia, você estava acordada? - Loid rosnou, indignação e vergonha borbulhando dentro dele. – Por que diabos não disse nada? Passei todos esses dias como um idiota...

A explosão de Loid fez Yor saltar, mas ela firmou o corpo, os punhos cerrados e as sobrancelhas apertadas. O corpo tremendo com a irritação que crescia diante do tom tão acusatório do homem a sua frente.

Como se ele tivesse algum direito de estar irritado depois de tudo!

Como se fosse eu a guardar um segredo tão sombrio!

Yor trincou o maxilar tão forte que sentia que seus dentes quebrariam a qualquer momento.

— Por que eu não disse nada? – Ela soltou uma risada seca, arranhada. Deu um passo a frente, o dedo em riste contra o peito de Loid, enfatizando cada frase com um cutucão forte. – Por que você não disse nada olhando nos meus olhos? Porque esperou que eu estivesse “dormindo” para falar algo tão importante? Por que deixou que eu fosse a única a ficar vulnerável e exposta quando tinha um segredo tão grande quanto o meu?

Loid sentia seu corpo ser empurrado involuntariamente para trás com a força dos golpes de Yor em seu peito, mas a dor daquilo era completamente irrelevante diante das palavras tão implacáveis e afiadas que Yor lançava como adagas mortais.

Ou, pior, da verdade irrevogável contida nelas.

De todos os embates e conflitos que já enfrentara em sua vida de espião, aquele era o primeiro e único que sabia não poder vencer.

Yor parou, a mão espalmada no peito dele, exatamente sobre o coração. Os olhos feridos e queimando de fúria encaravam o rosto de Loid que estava contorcido em vergonha e dor.

— Porque esconder isso de mim depois de tudo que falamos, mesmo depois de saber que eu te amava e que ficaria ao seu lado não importava o que acontecesse. – Ela finalmente baixou os olhos como se toda a determinação estivesse se esgotando e olhar para o homem a sua frente fosse doloroso. Loid abriu a boca para responder alguma coisa, qualquer coisa, mas Yor afastou a mão do corpo dele e a ergueu entre os dois interrompendo-o com um simples gesto. – Mas não, não precisa responder. Eu sei, a resposta é tão malditamente simples: você não confia em mim, Loid Forger. Se é que esse é mesmo seu nome.

Loid sentiu o ar escapando de seu corpo num único suspiro, o coração se quebrando enquanto as palavras de Yor ecoavam repetidamente em seus ouvidos.

Exatamente as palavras que ele mais temia ouvir porque eram a verdade nua e crua.

Ele não confiara nela e esse, ele percebeu, foi seu maior erro.

Ela dera tudo de si, mostrou quem realmente era sem barreiras ou medos, em voz alta e clara enquanto ele sussurrou como um covarde enquanto achava que ela dormia.

Ela era a pura coragem e determinação enquanto Loid se sentia como uma criança medrosa que nunca superara cicatrizes do passado.

A raiva por si mesmo e seus traumas estúpidos crescia como um tsunami em seu peito.

Já chega!

Loid deu um passo a frente quando percebeu que Yor se afastava e segurou a mão dela fazendo ela olhar em seus olhos mais uma vez.

— Você está certa, Yor. Eu não confiava em você, essa é a verdade e estou cansado de mentir. – Ele a viu cerrar os olhos, indignada, mas não deixou que ela se afastasse. Ele ainda tinha muito a contar. – Mas a questão é que eu nunca confiei em ninguém, não me permiti ser assim tão vulnerável depois que entendi que confiança só leva à decepção!

Ele falou tudo numa única respiração antes que as palavras se perdessem pelo caminho, voltando para o aquele local escondido dentro de si.

Eu preciso falar! Ela merece saber!

Loid brincou com os dedos longos de Yor enquanto a mulher esperava que ele continuasse, a respiração profunda e apreensiva.

— Meus pais prometeram que estávamos seguros, que a guerra estava no fim e que tudo ficaria bem... então nossa casa foi bombardeada e eles morreram num ataque surpresa da Ostania. – Loid vociferou, as mãos tremendo levemente, frias contra a pele quente de Yor. A mulher segurou os dedos dele e o ato tão pequeno pareceu impulsioná-lo a prosseguir. – Reencontrei meus amigos de infância no exército e eles prometeram que nos falaríamos de novo, que relembraríamos os velhos tempos depois que voltassem da missão secreta na fronteira de Westalis...e foram mortos a sangue frio pelo exército inimigo. E a cada promessa quebrada eu criava essa armadura ao meu redor entendendo que a confiança só pode estar em nós mesmo, é a única forma de não se decepcionar.

Ele suspirou, os olhos intensos sobre Yor, suplicando que ela compreendesse.

— Quando surgiu a oportunidade de entrar para a espionagem eu não pensei duas vezes. Estava cansado de ser aquele homem quebrado e tão vulnerável. Aquela era uma chance de ser alguém totalmente diferente, de construir alguém novo e forte. Então abandonei meu nome e tudo que eu era e passei a confiar apenas nas minhas habilidades e instintos, tendo as pessoas como meras peças e meios para um fim. Mas então você apareceu, Yor.

Ele ergueu uma mão, aproximando-a lentamente do rosto de Yor, dando chance para ela se afastar se quisesse. Para seu alívio, ela permaneceu parada e respirou fundo quando os dedos dele tocaram sua bochecha.

— Tudo em você era maravilhoso, brilhante, cheio de vida. Foi como acordar depois de anos de inanição! Eu me apaixonei por cada detalhe, cada palavra, cada sorriso e quando você me contou seu segredo eu me apaixonei ainda mais pela sua força e coragem, sua determinação e confiança. A vida de espião se tornou insuficiente, insignificante diante de tudo que eu poderia viver ao seu lado, e eu estava disposto a abrir mão de tudo por você, mas... a droga da confiança...

Ele fechou os olhos por segundos, irado com sua própria fraqueza.

— Passei tanto tempo construindo essa muralha ao meu redor que pareceu impossível derrubá-la quando foi necessário. E esse foi meu pior erro porque no fundo eu sempre, sempre soube que poderia confiar em você, mas fui covarde demais para demonstrar isso a tempo. – Ele abriu os olhos e riu sem humor, a garganta ardendo como se tivesse engolido ácido. – E você só me prova cada vez mais como fui idiota. Soube meu segredo por todo esse tempo e nunca revelou, nunca me entregou para a polícia secreta mesmo podendo ser condenada por traição junto comigo se eu fosse descoberto.

Yor negou, os olhos arregalados.

— Eu nunca faria isso. Nunca poderia...

— Eu sei. Agora eu tenho certeza. – Loid sorriu triste, o polegar acariciando a pele corada da mulher. – Mesmo sendo tarde, mesmo não mudando nada, eu não quero que haja mais segredos entre nós.

Ele suspirou e deixou tudo vir, como uma avalanche irrefreável.

— Não, não me chamo Loid Forger, esse é apenas o nome que adotei para essa missão. Meu nome verdadeiro eu não uso desde o exército. Me chamo Owen Hughes, tenho trinta anos, amo cozinhar e sou um espião de Westalis em missão para impedir que Donovan Desmond use seus planos secretos para quebrar o acordo de paz frágil e retomar a guerra entre os dois países.

Yor piscou, atônita.

— Sempre acreditei que os espiões estivessem armando para que a guerra fosse retomada. Algo sobre a luta de poder ser boa para a evolução armamentista e tecnológica.

Loid riu, o clima tenso se dissipando um pouco.

— Esse são objetivos políticos, na verdade. Os espiões só querem impedir que o mundo se exploda.

Yor inclinou a cabeça, concordando. Então ergueu uma sobrancelha.

— E Anya? Como ela fica nessa história toda?

Loid sentiu o clima pesado voltar, seu peito apertando a cada palavra.

— Adotei Anya há pouco meses quando recebi essa missão. Precisava de uma criança e uma família estável para poder concorrer à vaga no colégio Éden e me aproximar de Desmond, ele só aparece em público nos raros eventos da escola do filho. Foi pura sorte ele me convidar para a mansão naquele dia e...

Loid parou ao ver o olhar perplexo de Yor, a boca entreaberta e os olhos angustiados.

— Anya, ela...ela não é sua filha de verdade? É apenas parte da missão?

— Sim, ela era. Mas... – Loid crispou os lábios, os olhos se arregalando quando a percepção de algo que vinha crescendo a tanto tempo se tornou concreta, irreversível. Ele encarou Yor com a surpresa do próprio entendimento. – Mas eu aprendi a amá-la e não pretendo abandoná-la ao fim da missão. Não tinha realmente pensado nisso tão a fundo, mas eu simplesmente sei que não sou capaz de ficar longe de Anya. Ela é minha filha... nossa filha...

Yor sentiu o coração palpitar com a afirmação tão direta de Loid, os olhos dele parecendo ler até sua alma. Ela sentiu o rosto corar, mas as palavras saíram firmes.

— Como pretende criar uma criança sendo espião? Como pretender ter uma família com essa vida? E quando for mandado para outro lugar? Se tiver que fugir as pressas ou for capturado, como Anya vai ficar? Como eu ficaria se você fosse morto?

Loid não conteve o sorriso ao perceber a preocupação de Yor.

— Achei que estivesse furiosa comigo.

— E eu estou, mas não quer dizer que quero ver você morto! E você não respondeu a minha pergunta!

Loid deu de ombros, displicente.

— A resposta é simples: vou deixar de ser espião ao fim dessa missão. Talvez forje minha morte, isso sim seria bem dramático. A questão é que vai ser como se o agente Twilight nunca tivesse existido!

Yor se engasgou, os olhos tão abertos que poderiam saltar do rosto a qualquer momento. Ela apertou o braço de Loid tão forte que o homem resmungou, surpreso.

— V-Você é o Twilight? O cara mais procurado pela polícia secreta?

Loid sentiu o rosto esquentar com a surpresa quase devota presente nas feições delicadas do rosto de Yor.

— Sim, eu... como você sabe disso?

Yor deu de ombros.

— O Jardim não é tão secreto assim para o governo ostaniano, eles só fazem vista grossa já que nosso trabalho os beneficia. Dane-se os meios se o fim os agradar. – Ela suspirou, enojada por perceber a cada dia como se afundara tanto naquilo tudo. Ela brincou distraída com uma cicatriz no punho de Loid, o cenho franzido. – Tem uma recompensa enorme pela sua captura, vivo ou morto. O Lojista tá de olho nela há um tempo, mas nunca descobrimos nada sobre você.

O sorriso de Loid se alargou com a notícia, tudo cooperando bem demais para seu plano.

— Perfeito!

Yor ergueu uma sobrancelha, confusa.

— Como assim? Eu digo que sua cabeça tá a prêmio e você acha isso bom?

— Porque é bom para o meu plano.

A expressão de Yor passou de surpresa a desconfiança em segundos, os braços se cruzando e o olhar incisivo sobre o homem.

— Que plano... Owen?

O som de seu nome verdadeiro nos lábios de Yor agiu contrário ao temor que ela gostaria de infligir, um arrepio de desejo correndo pelo corpo dele ao ouvir a pessoa que mais amava usando aquele nome tão íntimo para si. Ele piscou, buscando retomar o foco, desviando os olhos daqueles lábios cheios e apertados. Ele explicou rapidamente sobre a nova missão a que foi designado, como o Lojista possuía arquivos confidenciais de extrema importância e o que pretendia fazer com eles.

— Então eu preciso entrar no Jardim e recuperá-los o mais rápido possível. Faz dois meses que ele tem os arquivos, quem sabe o que ele já fez, quão avançado ele já não está em seus planos?

Yor cerrou os olhos, as írises como fendas que transbordavam lava ígnea.

— Então foi por isso que finalmente contou seu segredo, por que queria me usar para entrar no Jardim? Seu...

Loid puxou o corpo dela para perto, impedindo que ela escapasse de seu aperto.

— Não, eu já queria sim contar, mas admito que isso acelerou as coisas. E eu não quero te usar, quero sua ajuda para acabarmos de uma vez por todas com o Lojista e suas ameaças. Não vou mais trabalhar sozinho. Nós somos uma equipe e essa missão apenas adiantou meus planos de acabar com a raça desse desgraçado que ousou ameaçar nossa família.

As palavras ferozes de Loid deixaram Yor lívida, ainda indignada com toda aquela história, mas disposta a entrar naquilo tudo de cabeça.

É isso que dá se apaixonar por um espião idiota!

Yor bufou, mas Loid sabia que tinha conseguido convencê-la.

— Certo, posso te ajudar a entrar, mas como pretende chegar ao Lojista sem levantar suspeitas? Ele tem uma guarda pessoal e recebe em sua ilustre presença apenas aqueles que ele mesmo requisitou. Vamos entrar lutando e torcer para chegarmos vivos até a estufa que ele fica?

— Espera, ele fica numa estufa? – Loid gargalhou e se calou com o olhar feroz de Yor. – Ok, esse não é um plano ruim, mas pensei em algo mais discreto.

Os lábios dele se alargaram num sorriso perigoso e Yor podia jurar que ele tinha enlouquecido, o tal “plano discreto” ficando estampado nas feições delineadas.

— Não... você não pode...

— Você com certeza seria requisitada à ilustre presença dele se levasse o cara mais procurado de toda a Ostania como prisioneiro. E vivo, de preferência.

Yor sentiu o sangue gelar, as mãos se prendendo à roupa de Loid como garras.

— Você enlouqueceu, tá completamente pirado! Que parte do “eu te odeio, mas não quero você morto” você não entendeu? E te levar como prisioneiro para o Lojista é o mesmo que assinar sua sentença de morte!

Loid segurou o rosto de Yor com as duas mãos, acalmando-a.

— Não pretendo permanecer como prisioneiro por muito tempo. Você me deixa com ele enquanto procura os arquivos. Quando encontrar é só voltar e nós dois o capturamos.

Yor entreabriu os lábios, cética.

— E como eu vou encontrar esses arquivos? Não sei nem por onde começar?

Loid sorriu retirando algo do bolso. Era pequeno, quase do tamanho de um botão, redondo e maciço. Loid entregou um à Yor e colocou o outro no ouvido.

— Esses dispositivos ainda estão em fase de teste, mas com muita insistência consegui dois protótipos. Se chama PEI: Ponto Eletrônico Invisível. Promete ser uma revolução no mundo da tecnologia – Ele inclinou a cabeça para que Yor colocasse o pequeno objeto no ouvido e ela o fez. Loid tocou levemente no seu próprio ouvido, ativando o dispositivo. – Na escuta, Thorn Princess?

Yor revirou os olhos, mas saltou admirada quando a voz de Loid ecoou em seu ouvido pelo ponto, falhada e arranhada, mas compreensível. Ela arregalou os olhos e assentiu, abismada.

— Sim, escutando bem, Twilight.

Loid sorriu.

— Viu? Vou dar um jeito do Lojista falar algo que nos ajude a encontrar os arquivos enquanto você vasculha pela sede do Jardim. Você vai conseguir ouvir toda a nossa conversa.

— Certo, isso pode até funcionar. – Yor concordou a contragosto e devolveu o PEI à Loid. – Mas tem outro problema: como ele vai acreditar que logo eu consegui capturar o grande Twilight assim, do nada?

— A Thorn Princess é a única capaz de derrotar o Twilight. – Loid brincou, leve apesar da criticidade da situação. – Acredite, eu sei.

— Muito engraçado, mas acho que o Lojista não vai cair nessa. – Yor rebateu, séria. – Dezenas de assassinos e policiais procuram por você dia e noite e, de repente, você cai de paraquedas na minha porta? Ele não é burro, Loid!

Loid assentiu, aquilo fazia sentido. Ele estalou os dedos, uma ideia surgindo.

— Eu posso ter ido atrás de você porque você abateu um de nossos agentes. Você era minha nova missão e eu fui te enfrentar sem saber que você era uma assassina treinada e acabei derrotado.

Yor pensou naquilo, a cabeça inclinada, a mão sobre o queixo.

— Seria uma boa explicação, mas como eu confirmaria para o Lojista que você é mesmo o Twilight? Com certeza você não chega anunciando seu codinome para os seus alvos ou já estaria morto a muito tempo. Não, tem que ser algo mais pessoal, algo que comprove sem dúvida alguma que você é o Twilight...

Loid ergueu os olhos para o teto, pensativo.

— Talvez se você viesse me investigando há um tempo, tivesse suspeitas e elas finalmente fossem confirmadas por alguma conversa que você ouviu.

Yor se animou, os olhos brilhando.

— Isso! Mas você é um mestre dos disfarces, com certeza não vai ser prisioneiro com esse rosto, não é? – Loid negou como se fosse óbvio. Revelar que o rosto conhecido de Loid Forger é o mesmo de Twilight seria uma catástrofe que poderia atingir Anya e ele nunca permitiria isso. Yor mordeu os lábios, a cabeça a mil. – Então tem que ser o rosto de alguém próximo da família que eu sempre visse e acabasse suspeitando que era um espião. Alguém que entendesse toda essa loucura e aceitasse ser “usado” de certa forma...

Loid e Yor se encararam cúmplices, o sorriso de um se espelhando no rosto do outro.

Uma única pessoa em mente.

[...]

— Por que diabos eu aceitei isso?

Frank encarava seu próprio rosto quadrado no corpo musculoso e alto de Twilight. Era como olhar para um espelho maluco onde ele permanecia com aquele rosto sem graça enquanto tinha o físico dos sonhos. Loid respondeu com a sua boca, os mesmos olhos grandes e castanhos que Frank arregalava, em Loid estavam apertados em superioridade.

— Porque seu rosto pode salvar o mundo.

Frank bufou, desviando os olhos daquele “Frankstein”.

— Espero que isso me traga mais gatinhas do que nunca! Ser herói mundial tem que ter as suas vantagens.

Yor riu da cara indignada de Frank e deixou um beijo doce na testa do homem baixinho.

— Pode deixar que te apresento a umas amigas quando tudo isso acabar. Você merece.

Frank ficou em êxtase, os olhos brilhando de animação. Loid revirou os olhos ajeitando o ponto eletrônico no ouvido, mas logo sua atenção foi completamente dominada pela presença de Yor que caminhava em sua direção com os passos lentos e deliberados. Ele não conseguiu conter seus olhos famintos que desceram pelo corpo de dela coberto pelo vestido preto colado, a saia longa o suficiente apenas para cobrir as cicatrizes que ela tinha nas coxas. O tecido se apertava como uma segunda pele e apesar de já tê-la visto nele tantas outras vezes, agora parecia diferente de alguma forma. Talvez porque ele soubesse que aquele vestido malditamente sexy transformava a doce Yor na perigosa Thorn Princess e isso fazia seu corpo arder de desejo. Merda, eu não sou a porcaria de um adolescente! Loid engoliu em seco quando a mulher se postou a sua frente, o queixo erguido, os lábios com aquele batom tão vermelho quanto a cor de seus olhos que estavam fixados em Loid, uma sobrancelha perfeita erguida em indagação. Então ela sorriu maliciosa, a mão erguida na direção dos lábios de Loid.

— Tem um pouco de baba escorrendo bem aqui...

Loid sentiu o rosto corar e bufou, desviando os olhos diante da risada de Yor.

— Nunca pensei que viveria para ver o agente Twilight tão envergonhado! – Frank comentou, rindo. – Yor sempre proporcionando os melhores momentos.

A mulher fez uma reverência exagerada e Frank riu ainda mais.

— Bem, se já cansaram de rir da minha cara, temos trabalho a fazer.

Loid tirou o outro PEI do bolso e colocou na orelha de Yor. A mulher sentiu um arrepio percorrer seu pescoço com o toque leve do homem que se afastou rápido demais. Eles se encararam por segundos, o desejo de um contato mais íntimo suprimido pelo clima ainda pesado das revelações tão recentes.

— Vocês sabem que não terão nenhum suporte, não é? – Frank interrompeu os olhares, encarando um e outro com uma seriedade atípica de sua personalidade. – Serão apenas vocês.

Loid assentiu, um olhar de relance para Yor que permanecia decidida ao seu lado.

— Yor é todo o apoio que preciso. Vamos ficar bem.

As palavras tão diretas e sinceras dele deixaram Yor desconcertada, os punhos cerrados ao lado do corpo. Frank assentiu, um sorriso pequeno nos lábios.

— Bem, então, boa sorte! – Ele apertou a mão de Loid e puxou Yor para um abraço apertado, murmurando no ouvido dela. – Sei que incentivei Twilight a não revelar seu segredo, mas que bom que ele não seguiu meu conselho. Você é família e Anya nunca vai te perdoar se você morrer, então volte bem.

Ele se afastou fungando, tentando esconder o rosto choroso.

— Não importa o que aconteça, apenas voltem sãos e salvos, entenderam? E você, Twilight, cuide bem do meu rosto!

Os dois assentiram com sorrisos enquanto Frank se despedia e sumia pela porta.

Loid se olhou no espelho uma última vez, satisfeito com mais um disfarce. A peruca de cabelos tão volumosos ainda era estranha, mas nada que não pudesse suportar. Ele ajeitou o terno e entregou as algemas para Yor. Seus olhos se encontraram e paralisaram.

— Pronta?

Ela assentiu e quando Loid se virou para sair do apartamento, Yor segurou seu braço e o puxou de volta.

— Na verdade, faltou uma coisa.

Ela segurou a gola da camisa e deixou seus lábios pousarem sobre os dele com firmeza, um beijo lento e profundo, os corpos apertados enquanto as bocas se exploravam com uma saudade aterradora.

— Merda, nunca odiei tanto estar usando um disfarce. – Loid resmungou quando o beijo acabou, os braços ainda rodeando a cintura de Yor.

— Não, se preocupe, ainda é seu gosto nesses lábios. – Ela riu e encostou a testa na dele. – Não pense que está totalmente perdoado.

— Nunca pensaria isso. – Loid rebateu, um sorriso malicioso nos lábios. – Sei que vou ter que lutar para te reconquistar.

Yor deixou mais um beijo estalado nos lábios dele, viciada naquele sabor de hortelã desde a primeira vez.

— Permaneça vivo, esse é um bom começo, Twilight.

Loid alargou o sorriso, os olhos admirando aquele rosto que povoava todos os seus sonhos, dormindo ou acordado.

— Digo o mesmo, Thorn Princess.

[..]

Eles desceram do táxi em frente a um beco, a rua escura e deserta atuando como uma camuflagem natural e perfeita. Yor olhou ao redor cautelosa, a entrada secreta para a sede do Jardim ficava no fim do beco, mas ainda faltava um detalhe para eles poderem começar aquele teatro.

— Certo, eu vou ter que fazer algo, mas não leve pro pessoal. – Yor começou incerta diante do olhar que Loid lhe lançou. Ela sorriu amarelo. – Juro que não é vingança.

Então ela socou-o no estômago, acotovelou seu pescoço e golpeou seu rosto bem sobre o olho direito, tudo numa sequência tão rápida que Loid nem ao menos conseguiu se proteger a tempo, sua cabeça girando quando a violência grátis finalmente terminou. Ele piscou, a vista embaçada e duplicada.

— O-O que diabos foi isso?

— O Lojista não vai acreditar nessa história se não ver nenhuma marca de combate em você e em mim. – Ela explicou, ofegante, o olhar preocupado sobre Loid apesar de saber que aquilo não era nada para um espião treinado. Ele tocou o olho e chiou de dor. – Desculpe, mas foi necessário.

— Você poderia ter ao menos avisado!

— Mas eu disse que ia fazer algo e que não era vingança. – Ela rebateu na defensiva, os braços cruzados. – Ao menos não totalmente.

Loid franziu o cenho e grunhiu, até isso fazia a pele ao redor do olho doer. Mas ela tinha razão, uma suposta luta entre uma assassina profissional e um dos espiões mais procurados do mundo tinha que deixar alguma sequela visível. Seu rosto latejava, mas Loid já era acostumado com hematomas então ignorou o inchaço e assentiu, contrariado. A mulher sorriu, as mãos subindo lentamente pelo peito de Loid e puxando o tecido da blusa violentamente, os primeiros botões voando longe. Ela tirou uma das adagas que escondia na bota e fez rasgos precisos nas mangas da blusa e na parte das coxas enquanto Loid apenas observava todo o procedimento com o rosto sério. Satisfeita com o resultado ela encarou o rosto de Loid com um sorriso quase infantil diante do olhar dele.

— Agora você só está se aproveitando da situação. – Ele comentou apontando para o próprio peito, os três botões que sumiram deixando a camisa aberta até o meio do peito largo.

Yor encarou o local que Loid apontava com interesse, mordendo o lábio inferior com malícia.

— A visão é espetacular, realmente. Mas foi tudo friamente calculado, acredite.

Loid revirou os olhos e Yor sorriu grande. A mulher usou a agulha dourada para fazer um corte superficial na própria coxa, chiando baixo no processo, e se preparou a frente de Loid, o rosto erguido e os olhos fechados.

— Agora é sua vez. Faça o seu pior.

Twilight arregalou o olho bom, o corpo travado, se negando a machucar a mulher a sua frente. Ele apertou os punhos, o coração palpitando diante da confiança de Yor que permanecia imóvel, os olhos fechados e os lábios levemente erguidos. É pela missão, apenas pela missão, ele repetia mentalmente, o rosto contorcido numa careta desgostosa. Loid suspirou e sussurrou.

— Desculpe.

O primeiro soco atingiu o maxilar de Yor e o segundo diretamente no olho esquerdo. Ela se encolheu, a cabeça baixando em direção ao tronco, o corpo equilibrado sobre as pernas ainda firmes. Um resmungo e um gemido de dor baixo. Loid se aproximou, segurando o braço dela com preocupação enquanto ela permanecia encolhida, o cabelo longo escondendo o rosto.

— Yor, meu Deus, e-eu juro que não...

Ela ergueu a cabeça lentamente e o que Loid tinha tomado por um gemido era, na verdade, uma risada baixa. Ela ergueu uma sobrancelha limpando o canto da boca que sangrava, o lábio superior já levemente inchado.

— Esse é o seu pior? Esperava mais do espião mais perigoso do mundo...

Loid revirou os olhos da melhor forma possível, mas soltou um suspiro aliviado apesar das provocações de Yor. A mulher sentia o rosto inteiro latejar, mas sorriu diante da preocupação ainda visível nos olhos do homem. Ela segurou a mão dele, os dedos se entrelaçando.

— Eu tô bem, sério. – Ela apontou para o olho roxo e o lábio inchado e deu de ombros. – Isso não é nada comparado a alguns caras que enfrentei. E você sabe que era necessário.

Loid crispou os lábios e concordou, erguendo as mãos juntas atrás do corpo para Yor poder algemá-las. Quando o metal frio repousou sobre os pulsos de Loid, Yor ergueu os olhos para os dele finalmente permitindo que a sua pequena parte angustiada e temerosa com aquele plano viesse a tona. Loid sorriu pequeno, já conhecia as expressões de Yor bem demais. Ele se inclinou para perto dela desajeitado devido às algemas e selou os lábios com delicadeza, o sabor cúprico nos lábios de Yor pelo sangue recente. Ele se afastou admirando o rosto corado e a respiração entrecortada dela.

— Eu amo você.

Ela abriu os olhos, o vermelho vivo e brilhante como rubis. Os lábios inchados se ergueram num sorriso apesar da dor que isso causava.

— Também amo você. – Ela respondeu e apertou a mão dele uma última vez antes de puxá-lo para o fim do beco procurando algo na parede com afinco. – Está aqui em algum lugar...

Ela apertava os tijolos sujos enquanto Loid observava. Então um som metálico de engrenagens soou quando ela apertou um tijolo específico, o terceiro acima do chão. O tijolo entrou na parede e uma pequena alavanca surgiu por trás. Yor abaixou-a e um alçapão surgiu ao lado dos pés de Loid, tão de repente que ele teve de saltar para não cair pelo buraco que se abriu.

Ele olhou para baixo, o cenho franzido. A escuridão do beco se misturou a do fundo do buraco tornando a entrada um poço sem fim. Yor se ergueu, acionou algo no punho da luva e um feixe pequeno de luz iluminou o beco até ela apontá-lo para o buraco, revelando os primeiros degraus de uma escada metálica parecendo antiga e nem um pouco segura. Ela virou a luz na direção do rosto de Loid fazendo o homem cerrar os olhos, deixando-os abertos o suficiente apenas para vislumbrar o sorriso ansioso que se abriu lentamente no rosto de Yor.

— Hora do show!