The Truth Untold

A Verdade Não Contada


Mais um dia. Mais um dia no meu próprio castelo de areia florido. O qual floresceu repleto de espinhos e solidão. É neste jardim que me prendo e existo. E foi neste jardim que a vi pela primeira vez. Tão bela quanto minhas flores.

Foi uma invasão, eu sei, devia tê-la repreendido, é o que o bom senso pedia. Mas como dispensar uma das minhas únicas companhias, ainda que ela não saiba disso. Todos os dias espero ansioso por vê-la, nem que veja por poucos minutos enquanto ela rouba algumas de minhas flores.

Me posiciono ansioso no meu lugar de sempre e penso o quanto é ridículo me esconder em minha própria casa, mas não posso mudar os fatos. Me esconder e a única forma de vê-la. Se observá-la de longe é tudo o que posso ter então estou mais que disposto a pagar o preço do ridículo.

Já estava inquieto quando ela chegou, como um raio de sol. Cada dia se tornava mais brilhante e me sentia aguardando agitado pelo próximo.

Seu vestido era azul, reparei que ela utilizava muito tal cor, e de fato combinava com ela. Azul era calmo, sereno.

— As flores então mais bonitas hoje — disse ela colhendo um smeraldo branco — Me pergunto quem as cultiva... — comentou ela para si mesma enquanto colhia mais alguns.

Você não gostaria de saber pensei comigo mesmo. Você não gostaria de me conhecer. Eu não posso cometer tal erro e te assustar. Suspirei frustrado e me ajeitei em meu esconderijo para observá-la melhor enquanto ela flutuava pelo meu jardim. E tão rápido quando ela veio, ela se foi. A garota nunca se demorava muito, apenas surgia como um raio de sol ao alvorecer, colhia algumas flores, observava ao redor por alguns instantes e então partia. Era sempre o mesmo ritual. E isso estava começando a me instigar. Ela sempre vinha no mesmo horário, durante a noite, me perguntava se não teria meio da escuridão, eu já não a temia há tempos, as sombras se tornaram parte de quem seu. Não sabia o motivo de suas visitas tão tardias, mas inconscientemente passei a deixar uma lâmpada acessa.

Isso já durava dois meses. Nos primeiros dias eu fazia barulhos para afugentá-la, mas parecia que o motivo que a levava ate ali era mais forte que o seu medo. E depois do primeiro mês eu apenas deixava que levasse minhas preciosas flores, mesmo que isso fosse totalmente contra meu bom senso.

Eu amava cultivar minhas flores. Colocava todo meu amor e afeto em seus caules e pétalas. Por isso a principio me irritava tanto que aquela ladra de flores tivesse a ousadia de tomar minhas plantas com tamanho descaramento na calada da noite.

A noite passou e outro dia chegou. Passei todo ele regando e cultivando a terra, ansioso pelo momento que ela chegaria, e lá estava ela, dia após dia, seu semblante por vezes extremamente cansado, às vezes esperançoso, às vezes sem expressão, às vezes triste e outras conformado.

A garota a se tornara minha obsessão e sopro de vida diário. Observá-la já não parecia suprir minha curiosidade. Eu queria mais, queria conversar, conhecê-la, saber porque e para que roubava minhas flores, mas não podia, não podia me mostrar, deixar que ela conhece o monstro que eu era.

Mas um dia chegou e passou e lá estava ela, se esgueirando pelo meu castelo. Qual o seu nome? Eu queria perguntar. Você tem um lugar para ir? Você pode me contar? Frases e perguntas para as quais eu nunca teria resposta.

A constatação desse fato me acertou como um raio. Eu realmente morreria sem saber quem era a minha ladra de flores? Foi com essa questão inquietadora que tomei a decisão assustadora de segui-la. E faria isso o mais rápido possível, no próximo dia talvez, antes que eu perdesse o pouco de coragem que possuía.

Assim que ela se foi, comecei a me preparar. Um casaco preto, o boné que as vezes usava quando precisava sair para comprar suplementos para casa e para o jardim e meus óculos escuros. Meu traje, minha mascara para o mundo externo, ninguém precisava ver o quando horrendo eu era.

Esperei pacientemente pela hora que ela chegaria, temendo que se deixasse a ansiedade tomar conta fosse me acovardar e mudar de ideia. Não demorou muito até que ela chegasse. Seu semblante hoje estava cansado e ela colheu as flores com mais lentidão do que de costume. Perguntei-me o que a deixara tão exausta.

Assim que ela terminou e deixou o jardim eu a segui. Não havia tantas pessoas nas ruas, mas o suficiente para me deixar nervoso. A garota não morava muito longe dali, cinco ou seis quadras. Sua casa estava caindo aos pedaços e me surpreendia que alguém sequer pudesse morar em um lugar nessas condições.

Agora que já sabia onde ela morava, voltei para casa determinado a voltar lá no dia seguinte assim que amanhecesse e ver o que ela fazia com as minhas flores, pois era um tanto demais para usar apenas como decoração e, por mais cruel que fosse, pelo estado de sua casa não me parecia muito que ela se incomodava em enfeitá-las com algumas flores.

Fiz o caminho de volta na metade do tempo, ela andava demasiadamente devagar.

A noite passou lenta, parecia que estava rindo de mim. E depois de séculos lá estava os primeiros raios de sol. Me arrumei como na noite anterior e parti. Por pouco não a perco, ela á estava saindo de casa quando cheguei. Minhas flores em um cesto surrado.

Segui-a ate um pequena praça quando ela começou a montar uma pequena barraca.

— Flores! Belíssimas flores!

Então era isso. A pobre garota realmente era pobre e vendias minhas flores para sobreviver. Esse fato me deixou enervado e mal notei quando caminhava em sua direção. Quando já estava perigosamente perto eu soube. Que todo seu calor era real, e eu queria segurar sua mão que colhia a flor azul.

— Olá senhor, que tal uma bela orquídea? — Disse ela quando parei a sua frente, protegido pela sombra de uma arvore e a salvo pelo meu traje, minha máscara.

Não sorria. Não me ilumine. Eu queria dizer. Porque eu não posso me aproximar de você, não há um nome pelo qual você possa me chamar. Esse e meu destino.

Sai dali o mais rápido possível. Cheguei em casa ofegante, assustado com meu ato, com o quão perto eu estive de dela.

Mesmo envergonhado com a minha covardia, nos próximos dias continuei colocando minha mascara de indo até ela. Sem nunca me mostrar, porque ela saberia que eu não posso, não posso me entregar assim, não posso mostrar essa parte arruinada de mim, então todos os dias eu coloco minha máscara e vou ate ela. Apenas observando-a de longe.

Mas eu ainda a quero.

Voltei para casa naquele dia determinado a cultivar a mais bela flor para ela, talvez se eu apresentasse uma a flor mais única e bela do mundo ela pudesse relevar o mostro que eu era. Talvez assim eu pudesse me mostrar.

Passei dias cultivando no meu jardim de solidão uma flor que se parecesse com ela, eu queria entregá-la para ela depois que eu tirasse essa mascara tola.

Mas eu se sei que não posso fazer isso para sempre, eu preciso me esconder, porque eu sou um monstro. E eu estou com medo, estou despedaçado, com tanto medo de ser deixado sozinho novamente no fim. Que mais uma vez coloco minha mascara e vou ate ela.

Observá-la me enche novamente de esperança. Não pude vê-la me roubando nos últimos dias, estava cansado e obcecado demais tentando criar a flor perfeita.

Passei horas olhando-a e quando voltei para casa naquele dia estava renovado. A única coisa que poderia fazer nesse jardim, nesse mundo, é florescer uma flor linda que se parecesse com ela e respirar através dela o eu que eu queria que ela conhecesse.

Levou dias e dias para que a flor florescesse e quando finalmente aconteceu eu estava extasiado. Naquela noite esperei ansioso que ela viesse, mas ela não chegou. Esperei ate bem tarde da noite, e mesmo sabendo que ela não viria mais não consegui ir me deitar com medo que por algum milagre ela aparece. Mas como milagres não acontecem em minha vida a noite passou e ela não veio. Isso apenas me intrigou e me deixou mais nervoso e ansioso, sua ausência me perturbava mais que sua presença. Mas dias se passaram e minha ladra não aparecia. Isso a estava me levando a loucura.

Coloquei minha mascara novamente e fui ao encontro.

Ninguém em sua casa, tampouco em as tenda. Onde diabos ela se enfiou. Estava quase enlouquecendo quando peguei uma conversa de duas senhoras perto do local onde outrora a garota vendia suas, minhas, flores.

— Tão novinha, a pobrezinha. Soube que foi uma forte gripe — disse um delas.

— Morreu tão jovem. Foi a pobreza, ninguém se cura de uma gripe como essa sendo tão pobre. Aquelas flores por mais lindas que fossem mal dava para se sustentar — lamentou a outra.

Morta.

Morta.

A garota estava morta.

Não sei como cheguei em casa, não me lembro do caminho, só sentia minha mente longe, aquela parava pairando no ar como um maldição.

Como ela poderia estar morta? Como uma coisa tão bela poderia morrer?

Sentei na minha estufa e mal sentia as lágrimas rolarem por minha face. Esta chorando, caído, o pouco de mim que restava desapareceu. Só restava o completo vazio.

Estava novamente sozinho no meu castelo de areia florido olhando para minha mascara quebrada.

Morta. Mas eu ainda a quero.

Morta. Mas eu ainda a quero.

Não sei quanto tempo fiquei ali, contemplando minha miséria.

Meses se passaram e eu ainda a queria.

Talvez naquela época, um pouco, apenas um pouco. Se eu tivesse apenas um pouco de coragem para ficar diante dela, tudo seria diferente agora?

Anos se passaram, e eu ainda a quero. Mas não há nada dela, e ainda assim eu ainda a quero.

A verdade não contada? Séculos podem se passar e eu ainda a quero.

No meu castelo florido, no qual floresceu repleto de espinhos e solidão, resta apenas uma flor azul que se parece com ela.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.