The Top

Capítulo Único


— Parabéns, Cebolácio.

O choque transpareceu só um segundo, substituído logo por uma máscara perfeitamente educada. Anos de paz e tranquilidade, e justo nessa noite esse fantasma aparece, com um sorriso falso e um topete que não faz sentido num homem de quase trinta anos. Como por mágica, o barman traz um suco de goiaba e seu antigo rival pega um canudo de aço do bolso e começa a beber, os olhos fixos no empresário.

— Soube do novo contrato. E do seu noivado. Parabéns — repetiu, sem se alterar pela reação.

— Boa noite, Maurício.— De repente, a cerveja já não tinha um gosto tão bom. Terminou a garrafa e o barman — que estava atarefado com outros clientes no balcão — quase imediatamente põe outra à sua frente. — Obrigado. Sim, a companhia está num momento muito bom, e o novo contrato é vantajoso. Quanto ao meu noivado, eu e a Mônica estamos felizes. Sei que ela ficará satisfeita de ter notícias suas.

Tentava imaginar o motivo daquela conversa, ou da presença do irmão do Mauro naquele bar, naquela noite. Não acreditava em azar, mas ter o DC na sua frente na semana em que concretizara a parceria com a agência de modelos francesa, parecia de um mau agouro tremendo. Como homem maduro que era, não acreditava nessas coisas, é claro. Mas sendo esse o caso, o que explicaria aquele mal-estar crescente no estômago?

— Eu acredito. Ela parece feliz nas fotos dos jornais, e nem mesmo a convivência com você a faria demonstrar algo que não-

— Ela é feliz comigo, Do Contra — interrompeu, mal contendo a irritação. Mesmo que não fosse perfeito, tinha se esforçado ao máximo para superar o Cebola egocêntrico e arrogante que foi na adolescência, e nunca dar motivos à mulher da sua vida pra se arrepender da sua decisão de ficar com ele. E agora esse idiota… — Não vou desistir dela nunca mais.

Maurício parecia ligeiramente divertido vendo a raiva borbulhar tão próxima à superfície. Aquele contrariado do inferno o tirava do sério sem esforço algum. — Ela não sabe, não é?

O mal-estar piorou. Quase abriu a boca pra se defender pela milésima vez daquela acusação de assédio — Quantas vezes ele teria que provar que não teve nada com aquela atriz? — mas calou-se. Não devia explicações a ninguém além de sua noiva e sua diretoria, e ambos acreditaram nele.

O idiota oriental pareceu por um instante concentrado em mexer o copo cheio mais uma vez com o canudo — o barman estava se superando com a velocidade de atendimento, Maurício chegou a passar dois segundos com o copo vazio? — e até o barulho do metal batendo no vidro parecia irritante demais agora.

— Ela não sabe que a sócia majoritária da agência Maillard é a Penha, sabe, Cebola? — Insistiu, já sem qualquer humor na voz.

— Vou contar a ela esta noite. Minha relação com a Penha é estritamente profissional, e Mônica confia em mim, Maurício. Sabe que não tenho qualquer interesse naquela mulher. Eu amo a minha noiva.

Os olhos se deslocaram para as luvas de couro que o outro usava, mesmo dentro do bar fechado. Ficou curioso, mas o DC sempre foi esquisito mesmo e a maior parte de si estava concentrada em provar o quanto ele e Mônica estavam bem pra um cretino que não viu na última década. Mal se importava com o quão irracional era se comportar assim, provaria pro DC e para si mesmo que ela escolhera bem, que ela estava correta ao decidir ficar com ele.

O sorriso do Maurício ficou incrivelmente amargo. — Eu também a amo, Cebolácio. Talvez nunca deixe de amá-la. Mas nós dois sabemos que não somos muito bons nessa coisa de amor.

Terminou o suco e sinalizou pro homem atrás do balcão que tinha encerrado. — Cancele esse negócio, Cebolácio. Hoje.

Cebola o encarou, sem acreditar. Em que mundo aquele cretino vivia? Pensava que podia aparecer do nada e só dizer: Cancele um contrato de sessenta milhões de dólares, e o Cebola simplesmente responderia “Sim, claro. Porque não pensei nisso antes?” Maurício continuou, sem notar ou se importar com a indignação do seu interlocutor:

— Você está cego pelo dinheiro, acha que tem o controle da situação. Poucas pessoas no mundo odeiam mais sua noiva que a Penha, e você sabe disso. Ela encontrará uma forma de destruir a Mônica. Se você a ama como diz, tem a obrigação de cancelar tudo e se afastar. Quanto antes melhor.

Cebolácio ficou em pé, segurando com força as bordas da madeira polida pra não arrancar a tranquilidade do rosto do sujeito a socos. — O que te faz pensar que pode chegar aqui e fingir se preocupar com ela? Você perdeu esse direito há muito tempo, quando sumiu completamente da vida dela. Nenhuma resposta, sequer uma ligação, lembra? Tem ideia do quanto a magoou?

Não devia satisfações ao patife, mas não aguentaria calado vê-lo duvidar de seu compromisso com a mulher que amava. — Quando ela precisou dos amigos, naquela gestação complicada, você não estava lá. Quando ela estava chorando com a Magá por causa do pai dela, você não estava lá. Então suma mais uma vez, Maurício, é o que você faz de melhor.

Do Contra não pareceu dar a mínima, digitando alguma coisa naquele celular velho. Inferno, aquele cara o tirava completamente do sério! — Está me ouvindo, infeliz?

Chega. Não era obrigado a ficar no mesmo espaço que o imbecil, e se ficasse, envergonharia a si mesmo e à Mônica com o comportamento imaturo que o Mauricio com certeza esperava dele agora. Ligaria e marcaria outro local pra esperá-la.

Por menos que lhe agradasse, não podia deixar de pensar nos pequenos sinais durante as reuniões dos últimos dias, todas as coisas pequeninas que separadas não significavam nada, mas agora que olhava o conjunto… Não, pensaria nisso mais tarde. O Do Contra estava fazendo exatamente o que sugeria o apelido: Invertendo toda a lógica, fazendo-o pensar e agir ao contrário de qualquer bom senso. Eram adultos, e as rivalidades da adolescência eram passado. Nem mesmo a Penha afundaria a própria empresa por um desentendimento de infância.

Mesmo assim… Droga, não ficaria em paz até conferir toda a papelada novamente, conversar com o setor jurídico, acionar seus contatos e checar com seu assistente toda… Merda, isso levaria duas semanas ou mais, teria que reagendar metade dos compromissos do mês. Como o Maurício conseguiu estragar os próximos quinze ou vinte dias só com uma conversa rápida?

Deixou uma nota alta na bancada, resmungando ao homem que ficasse com o troco, e na pressa quase não ouviu o que o outro disse.

— Como disse?

A seriedade no olhar do DC não era algo que ele já tinha visto antes. Ele também parecia pronto pra partir. — Disse que ela escolheu você, Cebolácio. Poderia ter sido eu, por muito pouco não foi, mas agora não importa. No final, ela te escolheu. Cuide bem da Mônica, cumpra suas promessas dessa vez, faça-a feliz. Ela sempre será uma das melhores coisas que já nos aconteceu.

Cebola se ergueu, decidido. — Eu farei. Tenha certeza disso.

— Que bom. — A voz tinha uma pitada de satisfação, porém algo nos olhos lhe dava arrepios. O DC guardou o canudo no bolso do casaco e pagou a conta. — Porque esse será seu único aviso. Ajude-a a ser feliz, e nunca mais me verá outra vez.

Checou novamente o celular e misturou-se às pessoas na saída, desaparecendo enquanto Cebola tentava decifrar o significado das últimas palavras. O maldito tivera mesmo a audácia de ameaçá-lo?

— Senhor? — Porque o barman o chamava com aquele tom mais urgente?

— Sim?

O olhar do homem oscilou, e voltou à formalidade. — Tome cuidado na volta pra casa. As ruas estão cheias de neve.

Cebola não entendeu a mudança, e estava prestes a perguntar quando um par de braços o envolveu e a voz mais esperada da noite chegou em seus ouvidos. Ela não tinha as mãos cheias de sacolas, como esperaria de qualquer garota voltando de um passeio nas maiores avenidas de Manhattan, mas bem, sua garota não era igual às outras.

— Você tinha razão, Cê, eu deveria ter vindo a Nova Iorque antes com você. Tem tantas coisas interessantes pra ver, e os prédios… Poderia ficar um dia inteiro olhando as pessoas e os prédios na rua. E a neve… é simplesmente linda.

Os olhos brilhavam de excitação, parecia uma criança antes do Natal. — E esse bar...Uau. Não imaginava um bar com uma vista tão fantástica da cidade. Onde você descobriu esse lugar? Cê?

A animação de Mônica esfriou ao ver a expressão sombria do noivo. — O que aconteceu, amor? Parece que viu um fantasma.

Teve vontade de retrucar que sim, tinha acontecido exatamente isso, mas não deixaria o DC, ou a Penha, ou qualquer um estragar essa viagem com a Mônica. Abriu um sorriso terno pra única mulher que já amou. — Um problema no trabalho. Prefere o balcão ou quer que eu consiga uma mesa?

— Prefiro uma mesa. Você disse que tinha uma coisa importante pra falar.

Ter os olhos dela fixos nele, com tanto carinho e um pouco de preocupação fez Cebola concordar com o Maurício, apesar da raiva. Teria um prejuízo enorme, o triplo de trabalho e se algo mais desse errado teria que adiar o casamento pela segunda vez. Mas algumas coisas simplesmente valiam qualquer preço.

A paz da mulher à sua frente era uma delas. — Era importante, mas agora aconteceu um imprevisto, e acho que o melhor é cancelar tudo. Desculpe, amor, uma ligação e eu estarei lá com você. Não vou deixar o trabalho nos atrapalhar novamente essa noite.

Mônica foi ao lugar que o garçom apontou um pouco relutante, enquanto via o Cebola discutir com seu assistente numa voz rápida e aborrecida. Estranho, ele parecia tão certo pela manhã. Quando ele acertasse tudo e estivesse mais calmo, conversariam a respeito.

Assim como seu... noivo (ainda parecia bom demais pra ser verdade) se esforçava pra ser mais honesto e confiante, ela fazia o seu melhor pra ter paciência e não explodir ao primeiro sinal de problema. Ele a amava, e enquanto caminhava na direção dela, o telefone guardado e a postura confiante mais uma vez, ela sabia que o que quer que fosse, passariam por aquilo juntos.

***

Deu umas voltas pelo quarteirão, não foi realmente difícil lidar com os outros. Agora cuidaria do motorista com o adesivo do Uber parado numa rua secundária há quase uma hora, sem tirar os olhos da saída do bar. Bateu no vidro do passageiro com gentileza.

— Cara, meu celular descarregou. Quanto dá uma corrida até a Quinta Avenida?

Recebeu uma cara feia quando o outro baixou o vidro — Ei, cara, esse carro já tá ocupado. Não vai rolar.

— Cara, me ajuda. Eu já deveria estar lá há vinte minutos, e não se acha táxi a essa hora — O mau humor dos motoristas novaiorquinos era famoso, mas sabia que não era aquele o caso.

— Ei, esquisito, já disse que estou esperando alguém. Cai fora.

— Seriam um homem de cabelos espetados e terno, com uma jovem de dentes salientes?

Viu com prazer a compreensão espantada surgir na expressão do homem, e ele tentar subir o vidro, mas foi mais rápido e abriu a porta. Mesmo desarmado, não é como se o oponente tivesse chance. Havia vários bons motivos pra usar luvas.

Saiu em silêncio minutos depois, e os pedestres apressados pra escapar do frio não perceberam nada. Quando percebessem que o carro nas sombras estava ocupado e o motorista não estava só dormindo, já estaria longe, e a câmera da rua não filmou seu rosto.

Inspirou fundo o ar gelado da noite. Cinco assassinos de aluguel para um único alvo era um exagero, mas restava apenas um, e depois poderia dormir sossegado. Puxou um telefone descartável e respondeu a mensagem que dizia data e hora que Cebola e sua noiva se encontrariam naquele bar elegante de Manhattan.

“Alvo recusado. Adiantamento devolvido.”

Todos no seu mundo sabiam que ele só trabalhava segundo os próprios critérios, porém quando o nome do Cebolácio surgiu entre os alvos ofertados na Deep Web, ficou curioso e aceitou. Não demorou a descobrir que a contratante era a Penha, e uma olhada nas colunas sociais e nas páginas financeiras lhe contou o resto da história.

Cássio tinha lhe dito o quanto o verdura mudara, mas teria a chance de conferir com os próprios olhos, e talvez, só talvez…

Não, não a veria novamente. Apesar de ainda ser divertido ver o Cebolácio irritado, aquela conversa lhe disse tudo que precisava saber. Ele a amava, mais que a si mesmo dessa vez, e estava disposto a fazer as coisas do jeito certo.

Na manhã seguinte, o FBI e a Interpol veriam suas listas de procurados encolherem mais uma vez, e o recado seria claro a todo o submundo: Cebolácio e sua noiva eram terreno proibido, assim como um certo mágico brasileiro famoso na Broadway. Havia motivo por que Maurício permanecia vivo e livre, quando seus alvos normais eram serial killers e outros assassinos, com um ditador ocasional.

Olhou o recorte do anúncio do casamento deles. Mônica estava feliz, e isso bastava. Enquanto Cebola fizesse bem a ela, a fizesse sorrir daquela forma radiante, estaria seguro também. Ele garantiria isso.

Infelizmente, Penha não se encaixava (ainda) nos seus critérios de eleição, e o casamento seria em pouco mais de um mês. Puxou um velho telefone de teclado, enquanto caminhava na calçada abarrotada em direção à moto que o esperava no estacionamento.

— Mano, sou eu. É, acabou mais cedo mesmo. Escuta, você ainda me consegue um ingresso pro seu espetáculo essa noite? É, te levo pra jantar em troca.

— ...

— Não, não o The Top. O barman precisa de uma folga dos meus pedidos únicos. Que tal o restaurante coreano? Isso, aquele na Hudson.

— …?

— É, parece que vou ficar um tempo na cidade.

FIM

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.