Issa

Saindo da casa, vejo o sol fraco da manhã batendo na neve. A minha mente estava embaralhada, eu não consegui pensar em nada direito. Sem ter um ponto para me concentrar. Aquilo tudo estava fazendo eu perder o controle. Aquela vontade de sangue, de carne humana, de uma criança humana.

– Ahh... – um gemido sai da minha boca inconscientemente. Como era bom a sensação...

Coloco a mão sobre a boca. Fico assustada com os meus próprios pensamentos. Como eu poderia? Uma discussão mental começa, o meu ‘eu’ contra tudo aquilo que é horrível em ser uma bruxa discute com o meu ‘eu’ bruxa, que queria jantar todos dentro da casa. Corro desajeitadamente em direção à floresta. Talvez se eu ficasse longe do que ainda restou da aura do livro... Corro apoiando em algumas árvores para não cair, mas tropeço em uma raiz que se sobressaía.

Caio de cara na neve. Isso ajuda a esfriar a cabeça levemente. Levo minha mão até o tornozelo, que está dolorido. Confirmo que ele torceu. Eu tenho que ir ver se Hali pode fazer algo pelo meu tornozelo. Levanto com o apoio da árvore, me segurando. Percebo que corri mais do que esperava. De onde eu estava não conseguia enxergar a casa. Estendo a mão para tocar na árvore mais próxima para servir de apoio e eu conseguir prosseguir.

Devagar eu fui me aproximando de novo da casa. Parei a alguns metros da casa. Eu não sei se posso me controlar. Se sair fora do controle colocarei eles em perigo... Pode acabar em um grande desastre em que minha irmã acaba morta. Por minha causa. Eu não poderia arriscar. Acabei sentando na neve. Quem sabe se eu esperasse até o anoitecer... Tudo ficaria melhor.

Fechei os olhos para descansar. Fiquei atenta apenas aos barulhos da floresta. Os galhos secos se mexendo com o vento, alguns poucos animais. Escutei alguns passos. O barulho de pés afundando na neve. Abri os olhos devagar. Vi o caçador parado na minha frente. Encarei-o. Ficamos alguns segundos em silêncio, apenas encarando um ao outro, estudando um ao outro.

Levantei devagar, me apoiando na árvore. Acho que está na hora de voltar para dentro da casa. Ele olha para o meu tornozelo, franzindo o cenho.

– O seu pé... Está bem? – ele perguntou tão baixo que foi quase inaudível.

– Como se importasse para você. – sussurrei, para não parecer muito agressiva a resposta. Andar sem o apoio de uma árvore é difícil, me obriga a andar mais devagar e mais pausadamente. Axel segura o meu braço, me impedindo de continuar. Ele me encara e eu encaro de volta. Não consigo ler sua expressão. Seus olhos vibravam em um verde fascinante, não sei se estavam me admirando ou queriam apenas me matar. – Poderia me soltar? – levei minha mão até a sua, para tirá-la do meu braço, mas ele apenas faz mais pressão com as mãos. – Você tem noção de quem eu sou? O que eu sou? – pergunto, um pouco mais agressiva.

– Se me quisesse morto, eu já estaria. – ele me puxa, jogando meu corpo contra o tronco de uma árvore na sua frente. – E eu estou curioso para saber porque não me quer morto. – ele coloca as mãos apoiadas na árvore para bloquear qualquer saída. – Afinal, sou eu quem trouxe tantos problemas, não é? Sou eu quem sempre tentou te matar.

– Se me quisesse morta, eu estaria. – falei, tentando imitar seu tom de voz.

– Não, não estaria. – ele parece não se irritar. – Você provou que é poderosa. Aposto que não morreria tão facilmente, principalmente se isso significasse deixar Halias sozinha. – respirei calmamente, encarando seus olhos. Eu queria saber o que ele queria.

– Ela não está mais sozinha. Eles estão com ela. – suspiro. Talvez eu saiba o que ele quer afinal. Na verdade, eu sempre soube. Mostrei minha varinha para ele e joguei-a longe, fora do alcance do meu olhar. – Você quer me matar? – perguntei em um tom calmo.

Ele sorriu, como se tudo aquilo fosse uma brincadeira. Aquilo me tirou do sério. Ele queria me matar e eu me entreguei, além disso ele ainda fica rindo de mim?

– Vamos! – gritei. – Eu sei que você me odeia! Me mata agora e saia da minha vida! – seu olhar se alterou levemente. – Proteja o seu filho e me mate! – estava quase o desafiando a isso.

– Sa... Sha... – ele disse suspirando, como nunca pude imaginá-lo fazendo. Logo em seguida ele se inclinou para frente, tocando meus lábios com os seus. Minha reação foi rápida. Bati no seu rosto com toda a força, para afastá-lo de mim.

– Qual o seu problema? Não é porque eu deixei você me matar que pode abusar de mim! – gritei, encarando o homem que estava com a mão sobre o rosto. – Nunca beije alguém sem o consentimento da mesma. – repreendi Axel.

– Eu... Me desculpe... – ele parece ter acordado de um sonho. –Eu vim ficar no primeiro turno... Proteger a casa de invasão...

– Mas não era o que estava fazendo.

– Desculpe. – ele apenas se virou e se aproximou novamente da casa, encostando na parede. Caminhei com dificuldade até onde ele estava. Parei no batente da porta. Encarei a mesma. Novamente aquelas sensações estranhas. Acabei decidindo por não entrar na casa. Sentei ao lado de onde o caçador estava em pé. Abracei meus joelhos e encostei meu queixo sobre o topo deles. Ficamos os dois quietos por um bom tempo.

– Ei... Quem é Sasha? – perguntei por fim.

– Sasha era minha esposa... – depois de um tempo respondeu.

– Hum... Era...? – eu sabia que não deveria estar perguntando isso, mas a curiosidade falava mais alto. – O que...?

– Ela se foi. – as três palavras pareciam mais pesadas do que o universo.

– E foi culpa de bruxas... Por isso nos odeia. – não precisava perguntar se aquilo procedia, eu sabia que era aquilo.

– É...

Ficamos quietos novamente. Falar sobre o passado era duro para ele. Assim como era para mim. Afinal erámos parecidos.

– Engraçado... Você falou as mesmas palavras que ela naquele instante. “Eu sei que você me odeia! Me mata agora e saia da minha vida! Proteja o seu filho e me mate!”. – acabei sorrindo, com certa maldade nos lábios.

– Sabia que você era ruim, mas é tão insuportável a ponto de sua mulher pedir para morrer? – perguntei, mesmo sabendo que isso o machucaria. Errado, eu sei. Ele me encarou por alguns segundos, aquele brilho verde nos olhos que facilmente poderia me engolir. – Brincadeira. – sorri.

– Ela foi acusada de bruxaria. Algumas bruxas estavam atrás de nosso filho. Foi uma época complicada. Ninguém estava disposto a nos ajudar. – uma pausa longa, talvez para evitar futuras lágrimas. – Na verdade, ninguém acreditava que ela não era uma bruxa. E diziam que toda essa história de filho perseguido por bruxas era uma fachada. Eles colocaram fogo na nossa casa enquanto dormíamos. Fui pegar Nathan no quarto para sairmos da casa. Tudo estava começando a desmoronar, Sasha tropeçou em uma viga e machucou a perna. Foi nessa hora.

– Não precisa terminar. – falei, sabia que aquilo tudo era pior para ele do que aparentava.

– Eu sabia... Eu ajudei ela a sair da casa, fomos até às árvores. Ela começou a agir estranho, começou a gritar comigo. Dizia que ela realmente era uma bruxa, que eu deveria seguir em frente e deixar ela ali. Pediu para que eu a matasse logo, mas eu estava me recusando. Sabia que ela estava falando isso porque achava que não iríamos conseguir fugir com sua perna ruim. Discutindo, não vimos uma bruxa se aproximar. “Não se compare a nós, vadia”. E a bruxa a matou. A minha sorte foi que alguns aldeões estavam se aproximando e ameaçaram a bruxa com fogo. Na confusão, fugi com Nathan.

Fiquei calada. Realmente, ele tinha motivos para nos odiar. E motivos bons.

– É, eu odeio bruxas. Ou costumava odiar. – ele termina a frase falando tão baixo que mal escuto. – E você... Deve ter uma história interessante. A sua aparência não é como da maioria das pessoas. Seria essa a sua forma de bruxa?

– Se quer dizer que sou feia, pode dizer. E não, a minha forma de bruxa não é essa. Eu apenas sou de um lugar diferente daqui. – esboço um leve sorriso. – Meu pai me encontrou abandonada em um cemitério. Ele me nomeou IssaOotsuka. Disse que eu não estava chorando, então me nomeou de Issa, que significa valente. Até mesmo um sobrenome diferente do dele ele escolheu. Ootsuka significa grande túmulo antigo. Achou adequado. Fui criada pela família do coveiro da cidade. Apesar da situação estranha em que me encontraram, cresci normalmente e amada pela minha família. – fiz alguns círculos na neve, com a mão, enquanto contava a história. – Aos 17 anos, estava noiva de um homem. Eu o amava. Iríamos nos casar e constituir uma família, mas ele não apareceu no dia do casamento.

“Deixou uma mensagem dizendo que não me amava mais. Eu fiquei furiosa. Não acreditei no que estava vendo. Corri pela pequena vila descontrolada. Acho que ele fez a pior escolha possível e percebeu isso quando eu o encontrei na estrada para fora da cidade. Já estava escuro e as árvores na beira da estrada deixavam o ambiente mais escuro. Ele estava acompanhado de uma mulher. Ela era linda e com toda a certeza não era dali. Fiquei cega de raiva e corri na direção do homem que um dia eu amei. Acabei quebrando o seu pescoço e na hora nem percebi o quão ‘impossível’ isso era. Quando me levantei para ver a mulher, ela apontava um graveto para mim. Na hora achei ridículo. Bom, até ela me atingir com magia.

“Bati em uma árvore. Levantei lentamente, enquanto ela se aproximava, rindo. Eu não estava raciocinando bem na hora, eu apenas queria matar aquela mulher. Uma energia estranha passou pelo meu corpo. Corri na direção dela, agarrando o seu pescoço. Com certa facilidade ela me jogou para longe. Foi quando atingi uma colmeia. Incrivelmente as abelhas não me atacaram, apenas ficaram a minha volta. Enquanto a mulher se aproximava, mais abelhas se juntavam. Gritei furiosa com ela e corri novamente na sua direção, mas desta vez com milhares de abelhas me seguindo. Ela arregalou os olhos e sua vassoura apareceu, e ela fugiu.

“Quando me acalmei, percebi o que tinha feito. Eu acabei matando uma pessoa. Não queria essa desonrar o meu pai, então deixei a vila. Peguei um navio e fui para as terras além mar. Eu não sabia o que fazer, então me apoiei na ideia de ir atrás daquela mulher. No caminho, conheci uma bruxa que se dispôs a me treinar. Aprendi tudo o que sei com ela, mas o treinamento foi duro. Bruxas negras não costumam ser bondosas. Muitas noites mal dormidas, pouca comida e torturas. A mestra sempre dizia que a tortura faz uma bruxa crescer. Chegou um dia que apenas pensei ter aprendido tudo que precisava, decidi que para acabar de uma vez por todas com aquilo, iria matar minha mestra.

“Depois de matá-la fui atrás de outras bruxas. Também parei de me alimentar de crianças. Na carne das bruxas achei uma alternativa de comida. Descobri que o que alimenta uma bruxa negra não é a carne humana, mas o desespero. Se quem você está matando está desesperada, com medo, ela se torna alimento. Passei a torturar as bruxas que encontrava, para me alimentar delas e para extrair informações sobre a mulher que arruinara a minha vida.”

Sorri amargamente, encarando Axel. Talvez a narrativa estivesse pesada. Sabia que estava contando coisas que ele talvez nunca fosse imaginar sobre bruxas. Em resposta ele sentou ao meu lado.

– Posso? – ele perguntou. Apenas o encarei, ele então passou o braço pela minha cintura. Encostei a cabeça no seu ombro. Mentalmente estava praguejando-o. Incrivelmente, eu havia passado horas assim com o meu finado noivo. Decidi continuar com a narrativa.

“Quando estava caçando uma bruxa que atormentava uma pequena cidade, acabei me encontrando com Hali. Era estranho uma mulher andando sozinha pela floresta, então eu enchi-a de perguntas, para me certificar de que não era uma caçadora. Acabei deixando ela ir comigo. Ela encontrou a bruxa primeiro e lutou contra ela. Quando cheguei ela estava desacordada no chão, então usei magia para acabar com a bruxa. Admito que para mim era fácil matar. Com a fama de bruxa que comia bruxas, apenas o zumbido de abelhas era capaz de fazer qualquer bruxa fugir. Fui até apelidada de Bartinik, a criadora de abelhas. Apesar do medo, a bruxa resistiu e me causou alguns ferimentos. Não demorou muito para matar a bruxa e ter minha refeição. Depois levei as crianças e Hali para um lugar seguro.

“Hali acordou e me viu ferida. Com seu bom coração, cuidou de mim, me contando que era uma bruxa branca. Era algo relativamente novo para mim, havia me encontrado com poucas delas. Também disse que era uma bruxa, mas com certo medo de repulsa, não disse se era branca ou negra. Acabamos nos juntando e passamos a morar juntas. Desenvolvi um grande amor por ela. Finalmente eu tinha minha pequena família, uma irmã. Estava totalmente disposta a abandonar a procura pela bruxa que estragou o casamento, mas então encontramos ela.”

– A bruxa no castelo...

– Sim. – suspirei. – Eu gostaria de ir embora e apenas esquecer, mas percebi que não consigo. Eu quero matá-la.

– Entendo esse sentimento, mas...

– Não tente dizer que não devo ir atrás dela por vingança. – levantei a cabeça, encarando-o.

– Não. Sou a pior pessoa para dizer isso. – ele ri. – Mas não deixe que ele te consuma. Pode ir atrás dela, mas não deixe que isso te afaste de quem você ainda ama.

– Isso me parece uma tentativa de me impedir de matá-la.

– Jamais. – ele pega uma mecha do meu cabelo, brincando com ela. – Ei... Há quanto tempo não come?

– Posso aguentar muito tempo sem comer, não se preocupe.

– Você tentou... – a voz dele falhou no final. Parecia que se dissesse aquilo, poderia chegar a se tornar realidade.

– Não atacarei Nathan, nem nenhum de vocês. A aura do livro desperta a fome, só isso. – ele ficou em silêncio. – Veja que progresso. Estamos sentados juntos sem tentar nos matar.

– Acho que temos muito em comum, afinal.

– É... – sorri, encarando a neve.

– Posso? – ele perguntou novamente, após alguns segundos de silêncio. Encarei-o, para depois acenar com a cabeça que sim. Ele se aproximou, beijando levemente meu pescoço. Sorri, segurando seu rosto com a minha mão.

– Acho... Que... Nós dois queremos isso... – beijei seus lábios rapidamente, me afastando logo depois.

– Não... – ele disse, tirando minha mão de seu rosto. – Não pare. – se aproximou novamente, aprofundando o beijo.

Um barulho nos afastou rapidamente. Em um reflexo, a mão dele foi até a arma.

– Que lindo os pombinhos. – a bruxa vestida de azul, com as roupas inadequadas para o tempo, ri. Ela estava com a bruxa mais velha, a bruxa branca e Fagan. Atrás deles estavam inúmeras bruxas, prontas para nos atacar. Naquele momento praguejei o momento em que joguei minha varinha.

– Me dá cobertura! – gritei, correndo em direção da varinha, jogada no chão.