“We live in shadows

We live where darkness hides

We'll go where no one goes

We won't give up this fight”

This Is The Hunt — Ruelle

Catherina não tinha notícias do irmão desde que ele a deixara para ir falar com o pai dos dois, e não podia deixar de se perguntar o que havia resultado daquela reunião inesperada. Não podia deixar de se preocupar também. Aleksei andava aéreo e irritadiço e seu pai andava recluso e soturno, algo estava em curso e ela tinha a sensação de não ser uma coisa realmente boa.

Não tinha tempo para se preocupar, porém. Guardou a curiosidade no fundo de sua mente, focando no mapa em sua frente. Estava sozinha em seu quarto, já completamente pronta para sair para a patrulha daquela noite. A mãe de Cat não gostava de vê-la saindo todas as noites, principalmente por as patrulhas serem tão triviais que qualquer um dos Caçadores poderia liderá-las, mas Catherina gostava de ter contato com a cidade. Gostava de saber por si mesma o que estava acontecendo nas ruas, não ficar sentada ouvindo relatórios. Independente de quão bons fossem seus companheiros, de quanto os prezasse, confiava mais em seus próprios olhos e ouvidos.

Observou cuidadosamente o caminho traçado no mapa à sua frente, ciente de que já decorara tudo que estava indicado ali, mas agora preocupava-se em identificar e marcar algumas rotas de fuga, caso fosse necessário. Dificilmente acontecia algo inesperado durante as patrulhas, mas, num trabalho como o de Catherina, prevenção tinha que se tornar um hábito.

Assim que terminou de decorar as rotas, fechou o mapa e dirigiu-se para o quartel dos Caçadores. Ficava a poucos minutos de caminhada do palácio, um tempo que Catherina usava para respirar e equilibrar-se para liderar os Caçadores que estariam esperando-a. Os guardas que vigiavam a porta que dava para o caminho até o quartel reverenciaram Catherina quando ela passou, silenciosa e veloz. Eles pareciam sempre mais cerimoniosos quando Cat estava vestindo o uniforme de Caçadora.

A czarevna Catherina e a Caçadora Catherina tinham apresentações diferentes. Como filha do Czar, Catherina era alguém sempre em cima de saltos altos, vestidos finos, os cabelos castanhos presos em penteados elaborados. Cat gostava dessa versão sua, adorava, na verdade, mas era muito fácil para os outros a confundirem com uma garotinha bela e adorável quando estava dessa forma. O que tinha suas vantagens, às vezes, mas era raro. A Catherina Caçadora não. A Matadora de Bruxos era um ser sempre de preto, uma capa escura nos ombros com o emblema de Chefe da Caçada a prendê-la ao uniforme escuro, feito para aguentar o frio de Aldan, servir como uma espécie de armadura, sem prejudicar a agilidade de quem o vestisse. Essa versão sua metia medo de imediato, sem que a czarevna precisasse pronunciar uma palavra sequer. Catherina amava ambas suas versões, se sentia poderosa de qualquer maneira, porque, embora os outros se esquecessem, Catherina tinha consciência plena de que o que ela vestia nunca importaria mais do que estava por debaixo dos tecidos. Conseguiria ser letal sobre um par de saltos ou com botas de combate, e isso lhe bastava.

Assim que adentrou o quartel, ouviu o volume das conversas se reduzirem a murmúrios. Devagar, os Caçadores foram se colocando em formação, para ouvir as ordens daquela noite. Um grupo de umas dez pessoas se manteve agitado, e Catherina revirou os olhos. Novatos.

— Boa noite a todos – falou, a voz ecoando pelo recinto que finalmente se tornara silencioso – Faremos as patrulhas da forma padrão. Quero um novato em cada grupo de patrulha, e alguém experiente para guiá-los, os mais impulsivos estão proibidos de guiarem. Anthony e Ian, estou falando especialmente com vocês – frisou Catherina, observando os gêmeos fazerem caretas de descontentamento, mas sem contestá-la – Supostamente não há perigos ou acontecimentos fora do normal na cidade, mas dobrem a atenção. Estão todos cientes do quanto a situação piorou, então se virem algo suspeito, investiguem. É uma regra básica, mas, mais do que nunca, evitem ao máximo ficarem sozinhos. Dividam-se em grupos de sete.

Assim que terminou de falar, Catherina percebeu uma movimentação no seu lado esquerdo. Um garoto, não devia ter mais de quinze anos, corria em sua direção, um envelope nas mãos. Um recado.

— Isso... – o garoto estava ofegante, devia ter corrido o caminho inteiro – Isso chegou da cidade há poucos minutos, alteza.

— Obrigada – agradeceu Catherina, e o garoto já ia embora enquanto ela abria o envelope. O quartel era preenchido pelo som da conversa dos outros Caçadores, dividindo-se em grupos.

Um sorriso lento se espalhou pelo rosto de Catherina. Às vezes a czarevna entendia porque alguns a achavam louca; que tipo de pessoa sorriria frente à mensagem que acabara de ler? Mas, ah, que culpa tinha se gostava de saber que aquela noite seria mais interessante do que ela esperava?

— Mudança de planos – falou, o tom de voz alto e firme, se sobrepondo às conversas de seus colegas, que se calaram rapidamente – Viktor, você lidera a patrulha essa noite – o rapaz assentiu, sério como sempre. – Anastasia, Grigoriy, Roman, Grace, Yuri, Olesya e Finn, venham comigo.

Os sete que Catherina havia chamado a seguiram em silêncio até a sala de armas, e a czarevna não precisou nem olhar para saber que os Caçadores que haviam ficado na entrada do quartel sabiam muito bem qual era a mudança de planos, e estavam explicando a situação aos novatos. Se os Caçadores de Bruxas já eram a elite do exército de Aldan, aquele grupo liderado por Catherina era ainda melhor. Era nas mãos daquelas pessoas que se concentrava o sangue das bruxas da capital, até de outros pontos do país, quando necessário. Eram eles, efetivamente, os Assassinos de Bruxos.

— Qual a situação, Cat? – perguntou Olesya, enquanto escolhia vagarosamente as adagas que levaria dessa vez.

— Um coven em Loye. A alegação é de que se reúnem na floresta ao sul da província. Se formos rápidos o suficiente, chegaremos na hora em que se encontram – respondeu Catherina, armando-se até os dentes. Com cuidado especial, vistoriou cada uma das flechas em sua aljava, certificando de que todas estavam embebidas na solução pastosa de feita com as cinzas de mandrágora e cardo. Suprimir os poderes dos bruxos era essencial se queriam capturá-los vivos.

— Alguma informação sobre a dominação? – perguntou Finn, carregando a arma de fogo que sempre levava no cinto. Evitava usá-la, o estrago era sempre muito grande. Lutar com bruxos com armas “antiquadas” sempre funcionara melhor. O metal que compunha suas espadas e adagas, o couro que estava em seus chicotes, a madeira em suas flechas. Eram materiais que se aceitavam com facilidade as modificações químicas que os tornavam intocáveis à dominação de um bruxo. Não conseguiam fazer o mesmo com balas. Quanto mais tecnológica a arma, mais instável podia se tornar contra a magia de um dominador. Contra magia antiga, métodos antigos.

— Nenhuma. A floresta em questão é densa demais para um coven de fogo, mas não tenho como saber se há alguma caverna ou clareira na região, não tive tempo de pesquisa. Precisarei de todos com a atenção redobrada, preparem-se para qualquer tipo de ataque.

Fazendo uma careta de desgosto, Catherina detestou ter de lembrar os companheiros de um evento tão desagradável, mas não poderia deixar que se repetisse, não agora.

— Matar é a última opção. Capturem os mais velhos, e sob hipótese alguma firam as crianças – Catherina disse isso olhando diretamente para Grace, que desviou o olhar, pálida. Cat sabia que a garota não fizera de propósito, tão bem quanto sabia que o poder de um bruxo jovem é descontrolado e assustador, mas não podiam dar mais motivos para as pessoas acharem que eram um bando de loucos sanguinários – Estão todos cientes do caos em que o país está imerso, então precisamos nos mostrar equilibrados e fazer os julgamentos corretamente. Se até nós passarmos a matar baseados em boatos, nada vai parar a população de transformar Aldan numa cópia da Caça às Bruxas da Idade Média. Entendido?

Eles menearam a cabeça em confirmação, e Catherina se deu por satisfeita. Aquelas pessoas eram as mais competentes de todo o país e tinham sua lealdade totalmente dedicada à czarevna, não precisava se preocupar.

Grigoriy era o mais velho da equipe, um dos primeiros da “velha guarda” a aceitar que Catherina era mais competente do que os antigos generais, um dos primeiros a apoiar o comando da czarevna, além de ter sido seu treinador. A relação de respeito entre os dois era tão profunda quanto a confiança que depositavam um no outro, e Catherina esperava contar com a presença de Grigoriy na equipe por muitos anos, evitando pensar no tempo em que ele acabaria por se aposentar.

Yuri, Olesya e Finn eram descendentes de famílias não originais de Aldan. As famílias de Yuri e Olesya já estavam no país há algumas gerações, mas Finn foi o primeiro da família a nascer dentro das fronteiras de Aldan. Olesya estava logo atrás de Grigoriy em questão de idade, e acabava bancando a irmã mais velha de Catherina, por ter a paciência que a garota nunca teve e os melhores conselhos do mundo. Yuri era um ser elétrico, o último a se juntar àquela equipe de elite e Catherina às vezes tinha a impressão de ele estar mais perto de ser um felino do que um ser humano. Finn era um dos amigos mais queridos de Catherina, sendo um piadista ininterrupto e péssimo, além do hábito de falar em irlandês, a língua de seus pais, quando ficava muito agitado.

Roman e Grace eram irmãos, ela dois anos mais velha que ele, e parecia haver uma competição não anunciada entre os dois a todo instante, pareciam estar brigando o tempo todo, mas era claro que, no fim, se adoravam. Bastava ver o olhar sanguinário de um deles quando o outro era ferido em batalha para ter certeza disso.

E havia Anastasia, a melhor amiga de Catherina. A garota, filha de um dos grandes nobres de Aldan, deveria ter sido a dama de companhia da czarevna, mas acabou gostando mais da ideia de manejar uma espada assim como Cat, provando ser uma guerreira muito capaz.

E era engraçado, porque aquelas pessoas pareciam tão, tão normais. E, na verdade eram os matadores mais letais de Aldan. Anastasia era uma arqueira exímia, Grigoriy manejava espadas de uma mão que pareciam pesar uma tonelada como se fosse fácil, Roman era um estrategista nato e impecável, Grace atirava facas com uma precisão assustadora, Yuri tinha reflexos quase sobrenaturais de tão rápidos, Olesya poderia ver o mundo acabar em chamas e ainda assim manter a calma e pensar em uma saída, Finn manejava adagas quase como se fosse uma brincadeira. Todos inteligentes, fortes e, acima de tudo, unidos de uma forma que só a repetida situação de ter a vida nas mãos de seus companheiros poderia proporcionar.

Quando saíram do quartel, suas motos já os esperavam. Podiam ter de abrir mãos de armas tecnológicas, mas nada os impedia de usufruir da tecnologia de ponta que o país tinha a oferecer quando se tratava de sua locomoção, não as usariam em batalha de qualquer forma. Os veículos eram completamente negros, blindados, extremamente bem balanceados e velozes. Catherina não podia deixar de se sentir um tanto como uma super-heroína quando dirigia aquilo.

— Muito bem, meus caros, essa não é a primeira Caçada de vocês, e lutem para que não seja a última – Catherina limitou-se a dizer, pois aquelas pessoas na sua frente não precisavam de discursos encorajadores para reacender o ânimo de seus corações, que queimava sempre em fogo alto. – Protejam uns aos outros, obedeçam minhas ordens, até as que parecerem estúpidas, e, sabem que falo sério quando digo isso, confiem em seus instintos.

Assim, partiram, em velocidade alta e constante. O Sol se pusera por completo, atirando os oito Caçadores em uma escuridão profunda, já que a noite era de lua nova. Ao menos não nevava. Catherina podia sentir o frio ao redor de seu corpo, mas o uniforme negro fazia um excelente trabalho em manter o calor longe de sua pele, isolando-a do ambiente gelado, do frio que a fustigava.

Quase duas horas depois, chegaram à província de Loye. Catherina captou alguns olhares impressionados quando passaram pelas ruas das cidades, dirigindo-se para a área rural de Loye. Aldan tinha essa dicotomia perfeita por todo país: cidades, metrópoles profundamente desenvolvidas cercadas por florestas e vilas que, à primeira vista, pareciam tiradas de um livro de contos de fadas, apesar de estarem, também, incluídas no nível tecnológico do país.

As motos foram deixados às bordas da floresta que o recado indicara a Catherina. A caminhada até o local em que o Coven deveria estar aqueceria os músculos enrijecidos dos Caçadores.

Catherina impedira seus companheiros de acender lanternas, tomando a responsabilidade de guiá-los. Alguma coisa naquela missão parecia demandar cuidado extremo, e a czarevna não estava disposta a ignorar esse pressentimento.

— Catherina, já deveríamos ter avistado alguma coisa – apontou Yuri, um tom de ansiedade em sua voz. – Eu entendo o porque de querer se manter no escuro, mas, na mesma medida que não seremos vistos, também não veremos eles.

Realmente já deviam ter visto algo, mas, ao invés de ficar apreensiva, Catherina estava ficando irritada. A possibilidade de ter recebido uma informação falsa fazia seu sangue ferver. Estava esgotando seus melhores soldados, deixando o palácio e a capital desprotegida contra uma ameaça... E tudo poderia ser em vão. Raiva era pouco para descrever a tempestade que estava se formando no interior da czarevna.

— Ah, mas nós vamos vê-los – murmurou Catherina, tão baixo que só seus companheiros, tão atentos ao que ela dizia, poderiam compreender o grunhido raivoso que saiu de seus lábios – Subam nas árvores. Veremos essa floresta por cima.

Logo, os sete se moviam com destreza pelas copas das árvores e dizer que, da posição em que estavam, pareciam animais noturnos rodeando suas presas não seria mentira.

— Lá! – disse Roman, a voz num tom baixo, mas, no silêncio da floresta, pareceu ecoar entre a vegetação. Ele apontava para um ponto a sudoeste de onde o grupo se encontrava – Algo passou por ali, tenho certeza de que não era um animal.

— A estratégia de pegá-los desprevenidos acabou, pessoal – falou Catherina, a voz ainda em tom baixo. Os bruxos agora provavelmente estavam sob aviso de sua presença ali, mas ainda não sabia com quem estava lidando. Precisaria desse elemento surpresa – Saquem as armas e desçam ao solo, devagar. Preparem-se para um embate.

Desceram das árvores em silêncio, se agrupando rapidamente. Não podia acender luz alguma, ainda não, por mais arriscado que fosse. Precisava de cada segundo em sua relativa clandestinidade para dar a si mesma alguma vantagem.

A imobilidade da floresta era perfeita, mas Catherina não duvidava que os bruxos estava ali, na escuridão. Precisava descobrir a dominação, e logo. Um segundo a mais sabendo com que tipo de magia lidaria, e poderia ter uma missão relativamente limpa de sangue. Um segundo a menos, e talvez tivesse que velar pelo corpo de alguém pela manhã.

— Cat... – começou Finn, mas a garota calou-o.

— Não. Mova. Um. Músculo. – tinha algo errado. A floresta farfalhava, com seus estalidos naturais, as folhas se movendo com o vento... Mas, não, não havia vento. O ar estava na mais pura imobilidade, então porque Catherina ouvia a grama se mover?

— São dominadores de terra! – berrou Catherina, acendendo sua lanterna. A escuridão não poderia oferecer-lhe mais nenhuma vantagem agora. Seus companheiros fizeram o mesmo.

A floresta iluminou-se, revelando o que Catherina já desconfiava: um meio círculo irregular de bruxos estava em volta dos Caçadores. Pareciam tensos como cordas de violino prestes a arrebentar. Um deles se adiantou para fora da pequena aglomeração.

— Não ataque! – falou, levantando as mãos. Era jovem. Tão jovem quanto Catherina e parecia, incrivelmente, liderar aquele grupo. A czarevna se acostumara com líderes velhos e solenes, aquilo lhe surpreendia – Não fizemos mal a ninguém.

— Foram acusados de praticarem magia, o que é, por lei, proibido. Não neguem, um grupo tão grande não se reuniria numa floresta a essa hora da noite por outro motivo. Não atacaremos se vierem conosco de bom grado.

O jovem sorriu. Um sorriso torto e convencido, o que acendeu uma fagulha de ira em Catherina. Não parecia estar brincando, parecia?

— Isso, Caçadora, eu não posso conceder. Afinal, como já disse, não machucamos ninguém, e a lei a que se refere é estúpida. Se nos deixarem ir, poderão voltar com seus corpos ilesos para casa, e do orgulho ferido acho que podem cuidar depois.

Catherina apertou com força o cabo dos chicotes em seu cinto. Respirou uma, duas vezes. Não podia atacar sem ter sido atacada primeiro, mas poderia muito bem prender aquele infeliz por desacato.

— Me parece que está achando isso tudo muito engraçado, bruxo. Mas, estúpida ou não, a lei existe. E se não irão de bom grado, então os levarei à força.

— Por que está deixando ela falar com você desse jeito, Nikolai? – uma garota, devia ter mais ou menos doze anos – Vamos embora!

— Calma, calma, Lorelai. Isso aqui se chama diplomacia, mas a moça ali não parece entender muito de política – respondeu ele calmamente para a garota, como se estivessem em uma reunião amigável, não prestes a entrar em um embate.

Difícil encontrar uma palavra para descrever a ira que Catherina sentiu. Tomava seu corpo, seus pensamentos, sua parca paciência. Ouviu Olesya sussurrar um “merda” e sentiu alguém segurando seu pulso. Grigoriy.

— Controle seus nervos. – disse ele, entre dentes, segurando a mão da garota até que ela deixasse de tentar puxar uma faca do cinto.

Enquanto tentava controlar sua raiva, Catherina percebeu que alguns bruxos em volta deles não estavam tão dispostos à diplomacia que o líder deles queria propor. Alguns carregavam facas, tiravam-nas das capas escuras. Mas esses eram poucos. O que preocupava Catherina era o olhar concentrado de alguns bruxos, o olhar que, ela sabia muito bem, precedia a magia.

— Você realmente não faz ideia com quem está lidando, faz? – rosnou Catherina, pronta para defender-se caso algum dos bruxos atacasse.

— Grupos de Caçadores são todos iguais. Acham que conhecem a verdade do mundo e parece que desaprenderam o uso do diálogo. – respondeu ele, a mesma arrogância na voz, mas agora havia uma ponta de amargor em seu tom. – São tão ignorantes que precisam esconder-se atrás de armas e violência.

— Seus bruxos também não parecem muito inclinados ao diálogo, caro pacifista. Se eles atacarem, não hesitarei em revidar. – Catherina tinha os olhos fixados no bruxo chamado Nikolai, e ele, nela. Era estranho perceber a gelidez do ar em contato com sua pele, quando tudo em seu interior parecia estar explodindo em chamas, em raiva.

Catherina mal precisou virar a cabeça para desviar da adaga que fora atirada em sua direção. Foi instintiva a ação de atirar o braço para o lado e, mais rápido do que os olhos atentos àquela cena puderam prever, a czarevna tinha enrolado a ponta de seu chicote no pulso da agressora. Com um puxão brusco atirou-a de joelhos na neve. Devia ter no máximo quinze anos, jovem demais para o ódio em seu olhar ou para o medo profundo que lhe fazia tremer as mãos. Com mais um puxão, Catherina libertou o pulso da jovem do aperto do chicote, voltando-se para Nikolai.

— Vou perguntar mais uma vez: vão se render? Ou teremos que recorrer à nossa ignorância crônica?

O líder bruxo parecia, pela primeira vez naquela conversa, um tanto surpreendido. Catherina não precisava se perguntar do por que, era muito autoconsciente. Sabia que poucos poderiam se mover na velocidade em que se movia, ter a firmeza que ela tinha.

E, nesse momento de falta de reação de Nikolai, os bruxos deixaram de esperar. Um grupo de cinco, esses parecendo beirar os trinta anos, deixaram a distância segura do meio círculo para correr até o pequeno grupo de Caçadores, um ódio ancestral estampado em seus olhos, e a floresta se movendo a favor deles.

Ah, mas Catherina também tinha um ressentimento ancestral em seu coração. E, mais, tinha também a força dos que vieram antes dela.

A terra tremeu e começou a rachar. O caos se instaurou, e Catherina viu alguns bruxos deixarem a clareira apressados, as crianças em seu encalço.

— Roman, vá atrás deles! – berrou ela, e rapidamente o rapaz tinha sumido entre as sombras das árvores, veloz e compenetrado.

Não estavam lutando contra os bruxos. Estavam lutando contra a própria floresta. Catherina tinha que puxar os pés com força do chão para se livrar da relva que começava a se enrolar em seus tornozelos. A terra se movia, se separava, se erguia e se contraía, tornando a atitude de ficar de pé um suplício. Os galhos dos arbustos de espinhos chicoteavam os Caçadores, Catherina fazia o possível para ignorar a ardência que os inúmeros cortes em seu corpo estavam causando.

Catherina estava ficando sem esperanças. Preferia pular em um dos buracos que os bruxos tinham aberto no chão a bater em retirada, mas a situação estava ficando insustentável. Grigoriy estava ofegante demais, Grace tinha sangue demais nas roupas e Anastasia simplesmente sumira. Poderia lidar com a irritação de perder uma batalha, não com o pesar de perder um de seus amigos.

Mas, de repente, os bruxos começaram a cair e as forças indolentes da natureza contra que lutavam começaram a diminuir em sua fúria. Com o canto dos olhos, Catherina conseguiu vislumbrar Anastasia, empoleirada em cima de uma árvore, atirando flecha atrás de flecha sem errar um alvo. A arqueira acertava os dominadores de terra com sua precisão característica, não nos órgãos vitais, mas exatamente evitando-os. A solução de cinzas de mandrágora e cardo não demorava a fazer seu efeito, e os bruxos perceberam isso. Os que conseguiam se manter de pé, mesmo feridos, passaram para a batalha armada. As espadas rugiam ao choque, preenchendo a noite com seu rumor violento. Os Caçadores lutavam com energia renovada, ignorando suas feridas completamente.

Catherina perdera a conta de quantos bruxos tinha nocauteado quando se viu de frente com Nikolai, o líder deles. Em algum momento a lanterna começara a esquentar em sua mão, e jogara-a em um arbusto antes que estourasse. Estava acostumada com esses ocorridos, os metais do objeto dificilmente resistiria muito sob os efeitos do poder de um dominador, mas, entre isso e tochas que eram extremamente conveniente a dominadores de fogo, era a melhor opção que tinham. Por isso, nesse ponto, um bom pedaço da vegetação que os cercava ardia em chamas. A neve impedia o fogo de se alastrar, mas a luz avermelhada e quente que ele provia parecia ter transformado aquela clareira no próprio inferno.

— Ainda podem facilitar suas vidas e parar essa batalha agora – disse Catherina, duvidando muito que o bruxo cederia, mas devia tentar. Os dois se rodeavam devagar, esperando quem atacaria primeiro.

— Temos orgulho, Caçadora – respondeu ele, girando a espada que tinha em mãos. Um olhar rápido e Catherina percebeu que ele não tinha sido atingido pelas flechas de Anastasia. Poderia esperar lutar contra magia a qualquer instante – Somos gente, não cãezinhos adestrados, como vocês parecem acreditar.

Desviar-se do primeiro golpe de Nikolai foi fácil, desviar-se do segundo foi mais difícil. Seus golpes eram pesados, faziam os braços de Catherina tremerem ao apará-los, mas ele não tinha a graça de um espadachim. Provavelmente fora treinado basicamente, e confiava em sua força bruta. Quando se tem magia, não é necessário preocupar-se muito com habilidades com armas.

— Na verdade, bruxo, nós sabemos de muitas coisas – rosnou ela, devolvendo os golpes de Nikolai com fúria – Saber manusear uma espada não faz o cérebro parar de funcionar, e temo que o ignorante aqui seja você.

A conversa parou por um momento, quando a luta se intensificou. A cada instante, Nikolai parecia mais ciente da força de Catherina, a pressa em seus movimentos atestava isso, mas não conseguiu impedir a czarevna de desarmá-lo. Quando a espada dele foi atirada longe, Catherina tinha certeza de que ele usaria sua dominação, e não estava errada.

A Caçadora foi jogada para trás quando a terra se elevou, ao comando de Nikolai. Ele era definitivamente mais habilidoso que os outros dominadores, e, se havia alguma dúvida, ele provou isso no momento em que uma ponta de metal maior que a perna de Catherina quase a partiu no meio, surgindo de repente do chão.

Toda a gozação sumira dos olhos de Nikolai. Ele agora era a mais pura seriedade, e Catherina estava se complicando para escapar das pedras, dos tremores e das serpentes de metal que tentavam empalá-la. Bom, se ele tinha terminado com a brincadeira, então ela também tinha.

— Antes de morrer, Caçadora, você deveria esclarecer o que a faz ter tanta certeza que o ignorante sou eu – disse ele, a sombra do sorriso arrogante passando por seu rosto de novo.

A distância entre os dois estava diminuindo na proporção em que a ira de Catherina ia crescendo, os obstáculos que Nikolai colocava em seu caminho sendo destruídos mais facilmente.

Quando estavam a alguns metros de distância um do outro, Catherina alcançou o chicote, mirando-o nas pernas do bruxo. Quando ele pulou para desviar-se dela, ela laçou uma de suas mãos. Truque velho, mas funcionava. Puxou-o em sua direção, até ficarem tão perto que podia sentir a respiração dele. O chute que recebeu no estômago a fez dobrar no meio, mas conseguiu desviar do próximo golpe. Nikolai lhe causou hematomas que ficariam bem roxos na manhã seguinte, mas, no fim, ela era a mais qualificada ali. Conseguiu derrubá-lo no chão, imobilizando-o. A terra ainda tremia, fazendo Catherina sentir como se estivesse em um mar revolto.

— Para começar, poderia usar o pronome correto – disse ela, enquanto aplicava a injeção de cardo e mandrágora que carregava no bolso no braço imobilizado de Nikolai – É “vossa alteza” para você, bruxo.

O tremor na terra se aquietou quando a solução entrou na corrente sanguínea de Nikolai. Com esforço, ele se virou para encarar Catherina, surpresa e alguma outra coisa que a garota não conseguia identificar estampadas em seu rosto.

— O quê...

— Não sou uma Caçadora, sou A Caçadora. – disse, querendo encerrar aquilo de uma vez – Mande seus bruxos pararem de lutar, e eu considerarei não te prender por desacato. Bruxaria e desrespeito à realeza não são crimes muito bem vistos separados, imagine juntos...

O sorriso que ele abriu estava vermelho de sangue, do sangue que ele cuspiu antes de berrar algo, uma língua desconhecida aos ouvidos de Catherina, que soava truncada e antiga.

Devia ter sido uma ordem, e muito clara, pois os bruxos começaram a levantar os companheiros caídos, amparando-os. O tremor que sacudiu a terra dessa vez foi tão forte que o barulho pareceu com o de um trovão. Catherina sinceramente achou que o mundo fosse acabar naquele instante. A czarevna perdeu o equilíbrio e caiu, libertando Nikolai de seu aperto de ferro. O bruxo não esperou um segundo para se levantar e correr com seus companheiros, mancando um pouco.

Os tremores cessaram assim que os bruxos sumiram por entre as árvores. O fogo ia se apagando aos poucos, cobrindo a neve, ou o que restara dela, já que agora era quase tudo barro. Seis corpos espalhavam-se pela clareira, dois bruxos inconscientes e quatro mortos. Catherina observou seus amigos indo ao encontro uns dos outros, e pareciam tão esgotados quanto ela própria se sentia. Seus ouvidos apitavam, e era difícil se concentrar no que acontecia ao seu redor, agora que a adrenalina ia esfriando.

Foi levantada por mãos familiares. Finn. Ele lhe disse algo, mas não conseguira escutá-lo.

— O quê? – perguntou ela, tentando parecer menos deslocada do que se sentia.

— Perguntei se está ferida – repetiu ele, e Catherina tentou não reparar no corte consideravelmente grande que se estendia no braço dele.

— Se eu não estivesse ferida, Finn, poderiam me coroar como a próxima deusa da Caça – respondeu ela, achando forças para ser sarcástica, como se tudo estivesse bem – Mas, sim, estou bem, não é nada sério. Roman?

— Não voltou ainda, mas precisamos ir embora. Grace está perdendo sangue demais.

Só naquele instante Catherina se lembrou do ferimento de Grace, e de como deveria ter piorado depois de uma luta tão intensa. A onda de preocupação que lhe atingiu afastou o torpor em que estava imersa.

— Vamos. Roman sabe o caminho de volta, se ele não aparecer em algumas horas, voltamos para procurá-lo. – Finn assentiu, e depois fez um gesto para os bruxos no chão – Amarre os inconscientes, vamos interroga-los quando acordarem. Os mortos... Deixe-os, mas proteja-os de animais. Os bruxos vão querer algo para velar.

Alguns minutos depois, estavam na estrada. Chegariam à capital antes do alvorecer, e esperavam que as bandagens fossem o suficiente para manter Grace estável até chegarem ao palácio. Não falavam, concentrados em viajar rápido, ignorando o cansaço e o pensamento preocupado em Roman. Catherina, mais soturna que o resto, ouvia ecoar em sua cabeça a ordem de Nikolai, sem conseguir esquecer o sorriso sangrento que ele lhe oferecera.