I know, I know, the sirens sound
Just before the walls come down
Pain is a well-intentioned weatherman
Predicting God as best he can
But God I want to feel again

Touch — Sleeping at Last

Era cedo. Tão cedo que os raios de sol, mesmo que despontassem ao longe, ainda não haviam deixado o horizonte para alcançar as ruas. Tão cedo que a cidade ainda estava imersa no silêncio sagrado da madrugada, e cada barulho parecia um estrondo entre os prédios. Tão cedo que Nastya, rodeada pela solidão e o silêncio, se permitia um momento de calmaria antes de iniciar seu dia.

Os dias vinham sendo difíceis. Mal dormira na noite anterior, os pensamentos em atividade constante, fazendo a dissertação mental dos argumentos que tinha para apresentar ao júri. Aquele caso estava deixando-a louca. Louca. Fora do que seus colegas tinham lhe chamado quando ela foi a única a aceitar a advogar em favor da senhora que queria mover um processo contra uma enorme empresa de construção que queria comprar o terreno de sua casa para fazer um arranha-céu. Natasha Klimova, sua cliente, era doce, só e possuidora de uma vontade de ferro. Nastya não conseguia se convencer a desistir dela, por mais que toda sua racionalidade lhe apontasse que era um caso perdido.

Hoje era o dia. Usaria toda sua artimanha, argumentação e cartas (ou documentos que comprovavam corrupção de certa empresa) na manga. Podia ganhar aquele caso contra todas as chances, sabia que podia, mas precisava se acalmar. Se sentia prestes de desabar há dias sempre que pisava em casa – até voltara a ter problemas com comida novamente, merda –, mas agora precisava se recompor. Era disso de que buscava se convencer enquanto olhava seu reflexo trêmulo nas águas da fonte da estufa do centro da cidade. Observava a moça vestida em um elegante tailleur cinza, com a maquiagem impecável que não deixava traços das olheiras que andara cultivando. Os olhos verdes eram absolutamente sérios. Era essa quem devia se tornar, essa advogada composta e firme: sua própria imagem.

Deixando de encarar a si mesma, um pouco mais segura, passou a observar o jardim exuberante ao seu redor. Aquele era seu santuário em dias difíceis, pois, sendo uma estufa, se mantinha florido durante inverno e verão. Sentia-se quase abraçada pelas cores fortes e pelo perfume gostoso que preenchia cada centímetro do lugar. Distraída, correu os dedos pela superfície da água, instantaneamente sentindo sua magia se agitar com o contato. Se permitiu brincar com seu elemento por um instante, fazendo pequenos redemoinhos e correntes com a ponta do dedo. Era por isso que gostava de ir ali tão cedo; por essas pequenas liberdades.

Quando deixou a estufa em passo ritmado, não saberia diferenciar sua imagem de seu interior. Era o que parecia, ou o que deveria parecer, pelo menos naquele dia.

*

A oficina de Abigail tinha sua própria sinfonia. O zumbido baixinho e incessante das máquinas, o tilintar dos materiais, os bips irregulares dos computadores e geradores. Era uma melodia metálica e descompassada, mas Abby não se incomodava com o som. Aquele era seu ambiente, sua zona de poder e ação, nada ali poderia perturbá-la. Claro, havia também o fato de ter os fones de ouvido bloqueando o ambiente externo com música a todo volume.

Era alta madrugada, mas ela não pensava em parar seu trabalho ferrenho. Aquela era sua hora mais produtiva, além de ainda ser sábado. Poderia compensar o sono no dia seguinte se necessário fosse – muito provavelmente não seria, dormia pouco – e estaria novinha em folha para seu trabalho oficial como TI em uma loja de departamento na segunda-feira.

Finalmente tivera a epifania de que precisava. As notícias corriam o mundo bruxo com uma rapidez impressionante, e claro que ela ficara sabendo do embate em Loye que deixara muitos dominadores de terra feridos e alguns mortos. Cada partícula de sensibilidade em seu corpo gritava de dor e revolta a cada acontecimento desses, mas há muito ela aprendera a tornar essa indignação em algo efetivamente útil, como o aparelho que começava a tomar forma à sua frente. Tinha outras maneiras de ativamente tentar mudar a situação bruxos versus caçadores, mas dessa vez a criação fora o meio que escolhera, e estava trabalhando até mais rápido do que esperava.

Rodando pela oficina em busca de ferramentas espalhadas organizadamente por todo o lugar, Abby exalava uma confiança que pouco exibia no mundo exterior. Tanto por estar sozinha quanto por estar mexendo com algo em que reconhecia ser muito boa, ali Abby tomava suas decisões com pouca hesitação e os olhos repletos de inteligência afiada. Sua feição entregava o turbilhão em que sua mente estava imersa, mas ela estava calma. Estava rodeada por música, certificara-se disso antes de começar, escolhendo sua playlist favorita.

Ela nunca perceberia sozinha, mas seus movimentos eram música. Talvez por isso não se cansava: sua dinâmica acompanhava os graves, a batida, a melodia e, irremediavelmente, as pausas. Sentia-se em um certo estado de paz, vendo sua invenção se construir diante de seus olhos, tão parecida ao que imaginara.

Passou a cantarolar, sua voz forte se misturando aos sons tecnológicos da oficina. Era um dueto intrigante e que, na verdade, dizia muito sobre ela. Era doçura, timidez e melodia, como também era metal, terra e força. Mas ela não sabia disso. Não, Abigail ainda tinha que se enxergar muito melhor para conseguir se ver de verdade.

*

Naquele momento, se dissessem a Virginia que ela fazia parte de um dos quadros bucólicos de algum pintor muito antigo, ela não duvidaria.

Andava pela floresta há algumas horas, os olhos treinados ao serviço de procurar pelas ervas medicinais de que Sonya precisava. O inverno nunca era melhor estação para sua busca, mas alguns tipos de planta nasciam somente nessa época, e eram ervas importantes – Sonya costumava dizer que eram essas que resultavam nos remédios mais poderosos. Afinal, o que mais poderia se esperar de algo que consegue se fazer brotar mesmo rodeado de neve e gelo?

A cena era pura. Virginia, com um grande sobretudo vinho cobrindo as roupas quentes e costumeiras, com as botas surradas enfiadas na neve e uma cesta grande de vime nas mãos, passeando tranquilamente por entre as árvores antigas, um olhar despreocupado no rosto. De vez em quando parava para brincar com a neve, montando bonecos de neve com um movimento de mão. No fim das contas, neve não era nada mais do que água congelada. Claro que era imprudente usar seus poderes em um local tão aberto, mas poucas pessoas iam ali de qualquer maneira. E, se fossem, bastaria um estalar de dedos e Virginia estaria livre de qualquer perigo de exposição.

Percebeu, um tanto aborrecida, uma mancha de sangue seco na barra de sua camiseta. Tsc, era sempre um inferno tirá-las das roupas, perderia uma boa hora esfregando o tecido no tanque aos fundos da casa. Sempre se esquecia de usar o casaco velho que separara para as noites de reunião no Coven, justamente para não ter que lavar nada depois. Pensando bem, provavelmente já era hora de eleger outro casaco. E queimar o antigo. Se alguma pessoa indesejada pusesse a mão naquela coisa, nem com sua lábia mais refinada Virginia seria capaz de convencer que aquilo tudo era molho de tomate.

Logo começaria a escurecer e ela estava desejando o conforto da lareira de casa, seus pés estavam começando a ficar bem ensopados, enfiados na neve. Tomou o caminho de casa, automaticamente contando quantas ervas conseguira colher.

A cena era ironicamente pura. Virginia, com um grande sobretudo vinho cobrindo as roupas quentes e costumeiras, com as botas surradas enfiadas na neve e uma cesta grande de vime nas mãos. Parecia-se tanto com a menina da capa vermelha dos contos de fada.

Na realidade, era o lobo.

*

Theresa atirou as cobertas para o lado e saiu da cama, dirigindo-se para a cozinha. Sinceramente, esperara que conseguisse dormir em paz dessa vez, mas a insônia era infalível. À essa altura, mal se frustrava, apenas se levantava e se punha a fazer algo útil. Odiava perder tempo.

Enquanto a água do chá fervia sobre o fogão, Tessa espalhou os livros de que precisaria sobre a mesa da cozinha, com os movimentos silenciosos de alguém que já fizera aquilo muitas vezes para não acordar o resto dos moradores da casa.

Se permitiu um meio suspiro antes de começar a ler a papelada. O trabalho estava bem adiantado, como provavam as anotações cobrindo cada centímetro dos laudos à sua frente, mas ela estava longe de estar satisfeita. Impressionante como os casos mais difíceis – envolvendo ou não bruxos – acabava em suas mãos. Não que achasse ruim. Essa era a prova concreta de que até mesmo seus colegas mais orgulhosos tinham que reconhecer sua excelência, e ela não fazia por menos. Já vira inúmeros advogados engolindo em seco ao saber que seria ela quem teriam de enfrentar na oposição.

Terminou antes do que esperava. Não podia fazer muito mais sem a reunião com o cliente no dia seguinte, e, um tanto surpreendida, percebeu que ainda faltavam boas horas até que alguém sequer pensasse em acordar. Podia cozinhar. Não o fazia há algumas semanas, o trabalho e alguns assuntos do Coven vinham lhe exigindo muito. A lembrança dos gêmeos reclamando da falta de doces no café da manhã lhe arrancou um meio sorriso, incentivada a fazer a coisa mais açucarada possível para os pequenos. Cassie dizia que ela tinha que parar de mimá-los, mas ela também era suspeita para dizer isso. Tanto por paparicar as crianças quanto por nunca deixar de comer dos doces que Tessa fazia.

Enquanto preparava a massa do bolo, ia colocando o pensamento em ordem. Faria algo arriscado no dia seguinte. Todo esse caso em particular era altamente arriscado, diga-se de passagem. Tessa decidira aceitar defender um homem que acusava a esposa de bruxaria. Em um dia normal, Theresa estaria defendendo a esposa, não o marido, mas dessa vez era diferente. A mulher era claramente uma bruxa de verdade, Tessa soubera no momento que pusera os olhos nela. Como também soubera que o homem não tinha a menor noção disso, e estava tentando se livrar de algo. Tessa apostava em violência doméstica. Só precisava fazê-lo confessar para virar o jogo. Não tinha como dar errado, afinal interpretara o papel de simpatizante à história do homem com perfeição. Ele estava a ponto de falar mais do que deveria e, se não estivesse, ela faria com que falasse. Não com magia, não, por mais que suas habilidades manipulativas beirassem o fantástico.

De manhã, quando se dirigia ao escritório de advocacia, Tessa ainda cheirava levemente a camomila e baunilha. Cheiros tão doces quanto o sorriso que abriu ao homem que lhe esperava na porta. Pobre criatura, nunca imaginaria o quão ácidas seriam as palavras que ouviria.

*

De vez em quando, Aleksei se permitia sentir saudades fúteis.

Não estava tão tarde assim, mas ele realmente precisara de uma pausa, então abriu as janelas e deixou que o frio e os tímidos flocos de neves lhe beijassem o rosto. As folhas que tinha de ler para a reunião na manhã seguinte não estavam nem na metade, mas ele quis ficar ali um pouco mais, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo, observando o mundo enevoado do lado de fora.

Ah, aquela era uma noite extremamente propícia, e seu ser inteiro sabia disso. Quando o sentimento familiar começou a crescer no peito de Aleksei, ele deixou. Deixou que as memórias viessem e lhe inundassem a mente. Suas saudades fúteis.

Sentia falta dos dias em que sua mãe lhe ensinava dança de salão entre suas obrigações de aprendiz de Czar. Sentia tanta falta de quando lhe elogiavam pela graça e pelo talento nato. Sentia falta de ser disputado como um par nos bailes, quando não perdia uma música e nunca se cansava. Sentia falta de quando finalmente começara a ter aulas de dança e adorara tanto quanto gostava das aulas de História ou de esgrima. Sentia falta dos dias em que aquilo era um talento, uma dádiva. Não mais uma extensão de sua maldição.

Aos catorze anos, aquela felicidade doce morreu abruptamente, sem um aviso. Morreu quando Aleksei percebeu que mais alguém dentro dele gostava da dança. “A coisa” adorava-a. Se pudesse fazer sons, ronronaria. E era perigosa. Pois não despertava abruptamente, como em qualquer outra situação. Não. Ia se avolumando suavemente, tanto que Aleksei dificilmente perceberia antes de ser tarde demais. Assim, acabaram-se as aulas, os bailes e os elogios. E tornaram-se saudades.

Fúteis. Repetiu Aleksei para si mesmo, para que não esquecesse. Para que não fraquejasse.

Fúteis. Disse para si mesmo, fechando as janelas e voltando ao trabalho. Antes que não pudesse mais fingir que ainda precisava se convencer daquilo toda vez.