The Kostroma Dynasty

Parte II: Noite Plena de Estrelas


“Slowly, gently, night unfurls its splendour

Grasp it, sense it, tremulous and tender

Turn your face away from the garish light of day

Turn your face away from cold, unfeeling light

And listen to the music of the night”

The Music of the Night— Sarah Brightman

Na época do baile de abertura da Seleção, Leena tinha escolhido seu vestido e máscara sem grandes segundas intenções. Queria um vestido bonito, com tanto tule e leveza quanto podia sem chamar atenção demais. A máscara em formato de lobo, admitia, fora uma tentativa de trazer um pedacinho de casa para uma situação tão completamente oposta a tudo que ela tinha vivido até então. Mesmo assim, era um motivo bastante simples.

Depois de algumas horas de baile ela tinha percebido, pelo tipo de olhar que lhe era direcionado e pelas perguntas diretas e um tanto rudes que ela tinha começado a esperar de um tipo de nobre, que sua escolha de máscara tinha ocultado a parte mais chamativa de sua aparência, de certa forma. As cicatrizes largas e com o formato inconfundível de garras em seu rosto e pescoço eram um complemento dramático à máscara que escolhera. Um trabalho excelente de maquiagem artística, tinha lhe dito, alguns com deboche pouco contido pela selecionada que se empolgara demais, mas outros com admiração genuína. E, apesar dessas interações estranhas, foi uma noite fantástica. Fazia muitos anos que ela não era abordada pelos outros com tanta facilidade, sem a cautela que via emanando deles quando olhavam para ela — a cicatriz, não Leena.

Já tinha considerado que o baile dessa noite seria um pouco fora de sua zona de conforto – se é que era possível ter alguma naquele ambiente –, tendo deixado Madeleine, sua criada, dar mais opiniões sobre sua roupa. A mulher tinha ficado inconsolável por Leena ter escolhido um vestido cinza da última vez, o que a selecionada demorou um bocado para compreender, afinal aquela era a roupa mais sofisticada em que ela tinha botado as mãos, colorida ou não. Decidiu dar mais abertura, afinal a outra deveria ter mais senso do que ela sobre o que seria apropriado àquelas ocasiões, e acabou gostando bastante do vestido azul escuro e cintilante a que tinham chegado. Com os ajustes para fechar a fenda em um dos lados da saia e subir um pouco mais o decote, ela até tinha se sentido confortável dentro dele, arriscando, por meio segundo na solidão do seu quarto, achar-se bonita. Coisa que, claro, evaporou assim que pisou no corredor.

Madeleine tinha lhe convencido a arriscar um pouco mais ao afirmar que “querer se esconder demais só chama atenção”. Mesmo na hora Leena tinha considerado que aquilo não devia se aplicar a ela e, agora, tinha certeza de que estava certa.

Porque não havia mais pretexto para os rasgos em seu rosto e, assim, voltaram os olhos carregados de choque, susto, repulsa, pena. Inferno, ela preferiria até os olhares de zombaria da última vez, pelo menos não a faziam sentir tão isolada, tão inalcançável.

Achava que tinha se acostumado com aquela dinâmica, mas estava errada. Ou talvez fosse o ambiente, o salão grandioso e brilhante, lotado de gente em suas melhores roupas, suas melhores joias. Um lugar como esse parecia convidar apenas às coisas mais belas, mais refinadas. Leena certamente não era nenhum dos dois.

Não, ela era o sol do meio-dia, impossível de ignorar, mas doloroso demais de encarar, não havendo outro remédio a não ser desviar o olhar e procurar por uma sombra para fugir da luz violenta que ela emanava.

— Leena? Você não vai entrar? — A voz de Abby puxou-a do buraco em que seus pensamentos estavam lhe enfiando. Havia mais curiosidade do que preocupação na expressão da outra, o que acalmou Leena do susto de ter sido pega em um momento frágil.

Abby tinha aquela hesitação tímida de sempre na aproximação dela, mas já deixava Leena muito feliz que ela se sentisse confortável em começar uma conversa. Gostava da outra e vinha tentando uma amizade há várias semanas, tendo reparado no quanto Abigail costumava ficar sozinha se Tessa, a única pessoa com quem tinha uma relação próxima ali dentro, não estivesse por perto. Leena não deixaria ninguém se sentir isolado se pudesse evitar, ainda mais alguém tão simpática quanto Abby lhe parecia.

— Vou sim, só estava olhando o salão. — A mentira veio tão rápido e naturalmente quanto o sorriso que lhe ocupou o rosto. — Não quero parecer pretensiosa nem nada, mas esperava algo mais diferente, levando em conta o quanto falaram do tema desse baile.

Apesar de ter sido uma estratégia de último segundo para escapar de qualquer conversa profunda sobre o que estava sentindo, Leena de fato estava surpresa com a “simplicidade” da decoração do salão. Havia grandes lustres prateados no teto abobadado, pareciam correntes finas e delicadas, mas simples. As cortinas, toalhas de mesa e todo o resto estavam em tons de branco, preto e prata, tudo liso, sem uma única estampa. Para um baile com tema de “noite estrelada”, estava tudo muito claro e sem uma única estrelinha para ajudar a criar o clima que Leena esperava.

— Não é? — disse Abby, enquanto adentravam o salão a passos vagarosos. — Passei os últimos dias me convencendo de que não teria uma lua gigante de papel, igual aquelas de baile de formatura brega, mas nenhuma lua me parece um absurdo.

Leena riu, de verdade dessa vez, diante da imagem de uma lua amarela de papel e estrelas tortas de papel metálico penduradas pelo ambiente chique do palácio. A parte mais hilária era imaginar os comentaristas se desdobrando para chamar a decoração de alguma coisa que não fosse “ridícula”. “Vintage” talvez fosse uma boa palavra. Ou “rústico”?

Gastaram mais tempo do que seria sensato admitir rindo daquela piada boba, mas era tudo de que Leena estava precisando. Não sabia quanto tempo teria demorado para entrar no salão se não fosse a ajuda, mesmo que não intencional, de Abby. Com companhia, Leena se sentia um pouco mais corajosa, um pouco mais como a figura inabalável e permanentemente animada que projetava para os outros. Estava se sentindo bem o suficiente para fingir que aquele nervosismo e desconforto não voltariam mais, mesmo que fosse o que mais andava experienciando desde que pisara naquele palácio.

— Aliás, eu tenho uma pergunta — começou Leena, quando se acomodaram em uma das mesas perto das janelas, onde era mais quieto e vazio. — Você é boa com tecnologia, né?

— O suficiente, fui uma boa funcionária na loja de TI em que eu trabalhava — ela disse, com uma cautela que não se esperaria de um assunto tão banal. — Por quê?

— Eu preciso desesperadamente de ajuda para mexer na seção digitalizada da biblioteca — continuou Leena, como se não estivesse vendo os sinais apontando para que talvez sua teoria não fosse tão maluca assim. — A bibliotecária me jurou que eu posso mexer nos hologramas, aumentar o tamanho das coisas e até entrar mais fundo na imagem, mas até agora tudo o que eu consegui foi fazer as imagens sairem de foco e acabar com a paciência da pobre da mulher que já me explicou a mesma coisa cinco vezes.

Abby, mais tranquila, riu da situação – para ela aquilo devia ser algo tão simples que a falta de habilidade de Leena nem devia fazer sentido, mas não havia maldade na risada, só surpresa.

— Posso ajudar, claro! Não me aventurei nessa parte da biblioteca ainda, vai ser bom para nós duas. Só uma pergunta — começou ela, como Leena tinha desejado que ela fizesse — como sabe que eu sei mexer nessas coisas?

— Eu vi você e a Tessa jogando um jogo de tabuleiro muito esquisito no jardim outro dia. Parecia xadrez? As peças se mexiam sozinhas e tudo mais. Ouvi ela comentando que foi você quem construiu. — De repente Leena percebeu como aquilo podia soar, e se corrigiu depressa. — Eu não estava ouvindo a conversa de vocês nem nada! Só passei por perto na hora.

Abby riu, espantando a preocupação de Leena.

— Não se preocupe, não é como se estivéssemos nos escondendo.

Leena assentiu, se preparando para fazer sua próxima pergunta.

— E… Você só usa essas habilidades fantásticas para jogos e consertar computadores?

Ela piscou, a cautela de volta em sua postura com força total. Talvez ter aquela conversa no baile não tivesse sido a melhor ideia do mundo, mas a questão vinha rondando a cabeça de Leena há dias e fora a primeira coisa a sair de sua boca quando quis puxar um assunto. Essa língua grande ia matá-la um dia, sinceramente.

— O quê…? — Abby nem conseguiu formular uma pergunta antes de Leena continuar.

— O jogo, quando olhei bem, me pareceu muito familiar. Quase como… uma assinatura, e uma que eu vi várias e várias vezes em outras coisas. — Leena parou, debatendo consigo mesma por alguns segundos se queria continuar com aquilo. A curiosidade venceu, porém. — Coisas como rastreadores.

O silêncio nervoso de Abby fez Leena se sentir até mal. Tinha acertado em seu chute, pelo jeito. Achava que era um assunto sensível, mas não tanto.

— Não estou te acusando, é só que… — Leena respirou fundo. Um segredo por outro, para balancear as coisas e tentar resolver aquela confusão. — Meu irmão é um dos seus clientes. Um caçador.

Leena teve que se valer dos eufemismos, não poderia, em sã consciência, revelar em voz alta que Niklaus era um caçador de Caçadores, e um muito bom. Bom demais para que Leena ficasse tranquila quando pensava nisso. A expressão de Abby relaxou um pouco – bem pouco –, o que foi prova de que ela entendeu.

— Ah. — Mais silêncio e um princípio de um sorriso. — De todos os lugares em que poderiam me reconhecer, meu chute não era a Seleção. É tão óbvio assim?

— Nem um pouco. Eu só passo muito tempo olhando aquelas coisas e tentando entendê-las do jeito que meu irmão entende, o suficiente para enxergar um padrão.

Era bem verdade. Leena não mexia no que era de Niklaus, mas quando ele deixava as coisas espalhadas pela sala depois de voltar para casa de manhã, após uma noite inteira de caçada, era impossível não ver as armas, os mapas, os rastreadores com que tinha perseguido algum grupo de Caçadores.

— Uma assinatura. Nunca imaginei que meu trabalho tinha isso.

— Digo isso como o maior dos elogios. Se meu irmão tivesse alguns parafusos a mais na cabeça, estaria muito mais seguro usando suas criações.

— E como ele não tem…?

— Usa para se meter em mais perigo — disse Leena, com um suspiro preocupado que se esperaria de uma mãe, não uma irmã mais velha. Para Niklaus, estava mais próxima da primeira opção, de qualquer maneira.

— É difícil controlar os usos que as pessoas fazem para o que eu crio… Mesmo assim, eu sinto muito por isso.

— Não sinta, a culpa é toda dele — disse, espantando as preocupações de Abby com um balançar de mão. — E eu nem posso mais falar muita coisa, olha onde eu vim parar.

A outra riu, diminuindo, graças aos deuses, aquele clima triste que Leena tinha criado sem querer. De fato, havia lugar mais perigoso para se estar do que o palácio?

— Eu adoraria conversar sobre isso com você depois. Tenho um anonimato pelo qual zelar, afinal — disse ela, levando a situação muito bem, para a surpresa de Leena.

— Claro — respondeu, aliviada de aquela conversa não ter resultado no caos para o qual tinha potencial. Leena tinha que se lembrar de ter mais cautela, mesmo que fosse passar dias rolando na cama com perguntas sem solução na cabeça. — Por enquanto, você podia me contar como aquele seu tabuleiro de xadrez funciona?

Ouvindo Abby falar, ficava um pouco mais fácil entender a tranquilidade dela depois de tanta cautela: ela adorava o que fazia. Dava para ver pelo brilho em seus olhos enquanto explicava aquele jogo de xadrez ainda mais complicado. Mais do que fazer as peças mexerem por contra própria, a ideia daquele jogo modificado era trazer a parte da estratégia e das táticas (de guerra, principalmente) para o tabuleiro. Não era tão simples quanto tirar peças de campo: cada encontro entre peças inimigas que podiam resultar em eliminação abria a oportunidade de negociações estipuladas pela categoria da peça. Peões podiam tentar convencer outros peões a mudarem de lado, mas não podiam fazê-lo com patentes mais altas. Bispos negociariam com cavaleiros, rainhas com reis e por aí vai. Apesar de nunca ter tido muita prática em xadrez, Leena achou uma ideia bastante fantástica, ainda que absurdamente complicada. Isso porque nem tinham chegado na parte tecnológica daquilo ainda.

Assim, apesar de não entender muito do que a outra estava explicando, Leena se divertiu naquela conversa, principalmente com as histórias dos protótipos que tinham dado errado – onde já se viu um tabuleiro de xadrez que tinha um foco de aquecimento e subsequente incêndio num quadrante só?

Com o passar da conversa o salão foi enchendo, lotado de gente vestida com constelações de todos os tipos. Se faltavam estrelas na decoração, o figurino de todos ali compensava por isso. Seria essa a ideia? Leena admitia que não era ruim, mas ainda era um tanto decepcionante.

Os convidados começaram a se movimentar para o centro do salão de dança, chamando a atenção de Leena, que não demorou a achar o motivo: no palco montado ao canto do salão estava Aberash, arrumando o microfone enquanto esperava a orquestra terminar a música suave que estava tocando.

— Acho que vai acontecer alguma coisa por ali — disse para Abby, apontando para o palco. — Vamos chegar mais perto?

Ela concordou, se levantando e seguindo Leena até lá. Bem a tempo, pois a cantora começou a falar assim que encontraram um bom lugar para pararem.

— Boa noite — a voz de Aberash se espalhou pelo salão, e as conversas restantes silenciaram-se depressa. Leena podia não ter prática de bailes, mas sabia que era comum que a cantora se apresentasse. A dominadora de água tinha que admitir que estava com altas expectativas para o que veria. — Sejam muito bem-vindos! Espero que todos aproveitem essa comemoração tão bonita que foi preparada por centenas de mãos muito cuidadosas e competentes.

A cantora passou a listar os grupos que participaram da organização, puxando uma salva de palmas para eles, num ato de reconhecimento de que Leena gostou bastante. A surpresa veio, porém, na menção a engenheiros, programadores e técnicos de luz renomados, como Abby lhe apontou. Não conseguia ver o que precisaria desse tipo de profissional naquele salão. Deu para perceber que a maioria das pessoas ali dentro também ficou intrigada, começando um burburinho que parou quando Aberash retomou a palavra.

— Espero que mantenham os olhos e ouvidos abertos, pois temos uma surpresa que com certeza agradará a todos. Algo para deixá-los um pouco mais no clima do tema deste baile — disse, com uma piscadela para a plateia. Era impressionante a facilidade com que ela capturou a atenção de todos ali. Depois de tanto mistério, não haveria uma pessoa que conseguiria ficar distraída durante a apresentação. — Antes de começarmos, porém, peço que me deem licença para deixar meu profissionalismo de lado por um momento e me dirigir ao motivo desta festa, nosso querido czareviche.

Os olhares se voltaram a Aleksei, que, apesar do sorriso sem graça diante do foco de atenção que recebeu, estava radiante. Leena já tinha visto o czareviche mais cedo, surpreendendo-se com a escolha por roupas não tão tradicionais. Parecia um príncipe de histórias de fantasia, coberto de azul, prata e estrelas. Tinha se forçado a desviar o olhar naquele momento e fazia o mesmo agora, desconcertada com o magnetismo que ele exercia quando parecia tão genuinamente feliz. Era quase injusto o quão bonito ficava, constatou, ignorando o calor em seu rosto diante do pensamento.

— Eu te agradeço por todos esses anos de amizade, Aleksei, e espero que se sinta celebrado hoje como amigo, filho, irmão e governante, pela sua dedicação a cada um desses papeis. Eu poderia dizer muito, muito mais, mas acho que já testei a paciência dos convidados o suficiente e, mais importante, acho melhor guardar as boas histórias para o dia do seu casamento. — O comentário foi o suficiente para uma onda de conversas e risadas passar pelo salão, com as selecionadas virando um ponto de atenção também. Era fácil demais ficar envolvidas em políticas de coven e na preocupação em permanecer vivas e esquecer que, para a população no geral, o único objetivo das mulheres naquele salão (ou pelo menos o principal) era matrimônio. Leena raramente se esquecia daquilo, mas não tinha a menor ilusão de que ia experimentar qualquer fiapo de romance naquele palácio, talvez por isso tenha sido pega tão de surpresa. Aleksei, por outro lado, permanecia tranquilo, mas Leena podia jurar que tinha visto aquele olhar de “eu te adoro, mas você me paga por essa”, que Niklaus lhe dirigia às vezes, passar pela expressão dele. Aberash devia saber muito bem o que estava fazendo, sem conseguir segurar uma risada antes de continuar e acabar com aquele burburinho. — Vamos começar, sim?

Após um momento de silêncio prolongado pela expectativa, a orquestra se pôs em movimento, tocando uma melodia suave. Quando Aberash começou a cantar, sua postura era outra, parecia ocupar o palco inteiro. Carregava a mesma suavidade dos instrumentos na voz, cantando cada trecho como se fosse uma história. Com o perdão da palavra, mas era quase como mágica, chamando cada ouvinte a imaginar a noite entrando pelas portas e janelas daquele salão.

E foi exatamente o que aconteceu.

Como que sob o comando da voz da cantora, as luzes foram diminuindo, passando do branco forte ao amarelo, laranja, vermelho e roxo. Um pôr do Sol, percebeu Leena. E quando se fez escuridão total, justamente no momento da música em que Aberash e a orquestra se silenciaram em uma pausa, vieram as estrelas.

Num crescendo com a orquestra, tocando mais alto e com mais riqueza de som, e com a voz de Aberash mais forte que antes, estrelas se acenderam no teto do salão, numa cópia perfeita de um céu estrelado, daqueles que só se pode ver em áreas rurais, longe de todas as luzes artificiais da cidade. Um céu que lembrava Leena de sua casa, o céu que olhava com seus pais e seu irmão quando o mundo foi quieto, silencioso e apenas deles quatro. Por um momento ela se esqueceu de onde estava e se sentiu com cinco anos de novo, cheia de possibilidades à sua frente e preenchida apenas por curiosidade, confiança e nem um pouquinho de medo.

Quando Leena achou que não poderia se surpreender mais, inundada por saudade em cada pedaço de seu corpo, as estrelas passaram a descer sobre eles. Estrelas douradas flutuavam entre os convidados, algumas pousando no chão, algumas permanecendo logo acima de suas cabeças. O chão, um mármore bem polido, refletia cada luz, dando a impressão de estarem suspensos no meio do céu noturno.

Era a coisa mais linda que Leena já tinha visto na vida. Estava incapaz de fazer algo além de olhar e ouvir, como Aberash tinha pedido que fizessem no começo. Pela primeira vez em muitos, muitos anos, sentia aquele encantamento infantil que torna as crianças tão propensas ao sonho – o que era bastante fácil quando parecia estar no meio de um.

Leena arriscou um olhar na direção de Aleksei. Será que ele compreendia, de verdade, o que estava sendo cantado? Depois de alguns meses de convivência com Aberash, Leena começava a entender que ela costumava ter muitas razões para o que fazia ou dizia, nada era simples coincidência. Aquela canção sobre a beleza da noite, um convite à escuridão e seus encantos tinha que ser uma mensagem, não? Ela mal compreendia qual era a dimensão do poder do czareviche, mas sabia que ele precisaria aprender a usar a própria magia antes do fim daquela Seleção e aquilo parecia um empurrão naquela direção.

Difícil dizer se qualquer uma dessas coisas passava pela cabeça de Aleksei, que parecia envolto na mesma fascinação que o resto dos convidados. Mas, por um momento, ele fechou os olhos e a expressão de encantamento se transformou em outra coisa bem mais turbulenta que Leena não sabia traduzir. E pareceu que algo tinha acontecido ali, mas o que?

Talvez ele pudesse sentir o olhar de Leena lhe fazendo dezenas de perguntas silenciosas, porque, de repente, ele virou a cabeça na direção dela, os olhos escuros de Leena encontrando as írises azuis do czareviche.

Assustada, pega fazendo algo que não devia, Leena voltou sua atenção para frente, para o palco, como se nunca tivesse saído de lá. É claro que ele não estava olhando para mim, disse a si mesma, tentando se acalmar. Tinha tanta gente ao seu redor, o czareviche provavelmente só estava correndo os olhos pelo salão. Ele não tinha motivo algum para procurá-la no meio daquela multidão. É, com certeza era isso. Por favor, que ele não esteja me procurando, pediu para ninguém em particular.

Leena voltou para a música, o céu e as estrelas dançando ao seu redor, aproveitando a mágica enquanto a canção terminava e, com sucesso, conseguindo ignorar seus próprios pensamentos e voltar ao estado pacífico em que estava antes. Se pudesse, pediria para ver tudo de novo, desde o começo.

A música se aproximava de sua conclusão e Leena não precisava de nada mais para encarar a apresentação como uma das coisas mais fantásticas que tinha visto na vida, mas o grand finale veio mesmo assim. Enquanto o som forte da orquestra e a voz melodiosa de Aberash preenchiam cada pedaço do salão, um ponto de luz apareceu na mão esquerda da cantora. Aumentando aos poucos, a luz foi tomando forma, prateada e redonda. A Lua, percebeu Leena. No crescendo final da música, Aberash gentilmente empurrou a esfera para cima, subindo para o teto enquanto aumentava de tamanho. Ao fim, uma grande lua pairava sobre eles, tingindo o chão da área dedicada à dança de prata e banhando o salão, antes bastante escuro, já que clareado só pelas estrelas, em uma luz etérea e agradável.

Houve outro momento de silêncio antes dos aplausos ensurdecedores que vieram quando os convidados acordaram do estado de deslumbramento em que a apresentação os tinha colocado. Foram necessários alguns minutos até que a orquestra pudesse começar de novo, agora tocando para que as pessoas pudessem rodopiar pela pista de dança, a maioria parecendo muito feliz em valsar entre estrelas.

Distraída, Leena esperava que Abby voltasse. Algo sobre achar Tessa, ela tinha dito. Leena tinha que confessar que não tinha prestado tanta atenção quanto deveria. E poderiam culpá-la, quando parecia que tinha sido colocada em um conto de fadas?

O salão tinha sido completamente transformado, iluminado em tons de prata e dourado, mas restava escuridão ainda, criando uma atmosfera bastante onírica. Tudo reluzia, percebeu, até as toalhas de mesa. Realmente, agora sim podia chamar aquilo de um baile dedicado à noite e às constelações.

— Senhorita Volkov. — Leena quase sentiu o coração sair pela boca ao escutar a voz do czareviche ao seu lado. Talvez ela tenha dado um pulinho de susto, para piorar sua situação. — Desculpe, não queria te assustar.

— Não… Quer dizer, sim, mas não tem problema, vossa alteza. Eu estava muito distraída — disse, tentando não pensar em Madeleine e sua máxima sobre “se esconder demais”. Justo quando queria evitar o czareviche, ele vinha falar com ela? Abriu um sorriso, tentando se recuperar depressa. — Feliz aniversário! Como está se sentindo?

— Muito bem, obrigado. Fazia tempo que não recebia uma festa tão grande, as surpresas têm sido boas — disse, abrindo um sorriso suave, mas ensaiado, nada parecido com o que ela tinha visto mais cedo. — E a senhorita, como está?

— Ainda pensando em como é possível estar andando no meio de estrelas — disse, com uma admiração sincera. — Se esse tipo de coisa acontece em todo baile, vou começar a entender por que a aristocracia gosta tanto de organizá-los.

Antes mesmo que ela tivesse tempo de ter noção do que tinha acabado de dizer, Aleksei soltou uma risada engasgada, do tipo que surpreende até quem ri.

— Sinto informar que isso foi surpresa até para mim, prepararam um espetáculo sem igual hoje. Se bem que é possível que vá ser reproduzido em outros bailes daqui para frente. — De algum jeito ele tinha conseguido transformar o riso pela metade em uma expressão de curiosidade, o que era um tanto admirável. Ela imaginava que ele tinha bastante prática nesse tipo de controle de danos. — Os bailes não lhe agradaram?

— Não, eu só… — eu que não sirvo para eles, era a resposta mais verdadeira, mas não diria isso para Aleksei. — É bem diferente do que eu vivi até agora, não estou acostumada a festas tão grandes.

Nas festas de sua cidade – as poucas que ela frequentava –, todo mundo conhecia todo mundo, a música ao vivo era uma das bandas locais (se tivessem sorte, seria a banda do vocalista que conseguia cantar notas agudas sem gritar) e a coisa mais fantástica que acontecia era uma eventual queima de fogos de artifício. O que acontecia no palácio era muito além de sua alçada.

— Isso eu consigo entender. — Ele deve ter reparado no olhar pouco convencido de Leena. — Algumas pessoas nascem sabendo lidar com eventos sociais tão grandes, eu não fui uma delas.

— É difícil acreditar nisso, vossa alteza.

— Com vinte e seis anos de prática, se eu não tivesse desenvolvido alguma habilidade seria preocupante, não acha? — Leena acabou rindo, concordando. — E devo acrescentar que não adivinharia que tem dificuldades com isso, a senhorita comanda atenção com muita naturalidade.

Leena foi pega de surpresa pelo comentário. Lidava com situações sociais como podia, mais dada a ser expansiva do que ficar quieta em um canto, mas se imaginar comandando alguma coisa era um pouco demais.

— Como alguém que tem muito tempo de convivência comigo, vossa alteza, não sei se posso concordar com isso. Não sou uma boa líder. — Ah. Isso não era bom, era? — Menos um para a minha lista de “boas características de uma futura governante”.

— Ainda não estou fazendo listas, senhorita Volkov, muito menos riscando itens — comentou ele, em um tom de voz que era um pouquinho mais sério do que Leena esperava. Ela tinha que admitir que ficava um pouco espantada que Aleksei estivesse entretendo aquela conversa sem sentido com ela. Ou ele tinha muito mais paciência do que ela antecipara ou muito mais senso de humor. — Mas, tudo bem, talvez eu possa estar errado. Acho que só com o tempo vamos descobrir, não?

Leena imaginou quanto tempo teria ali dentro. Certamente não o suficiente para que ela se tornasse alguém capaz de ser Czarina. Precisaria nascer de novo para isso.

— Acho que sim? De qualquer maneira, talvez vossa alteza possa me ajudar no meu desconhecimento dos bailes. O que lhe fez começar a gostar deles?

Dessa vez ele demorou um momento para responder, correndo os olhos pelo salão. Leena não esperava que fosse justo ali que ele deixaria a honestidade de lado, o que lhe aguçou a curiosidade.

— Eu posso não ser o melhor nisso, mas estou rodeado de pessoas muitíssimo extrovertidas que adoram grandes situações sociais como essa. Acho que tomei gosto por ver meus amigos e minha família reunidos e se divertindo. Mesmo que eu estivesse no dia mais miserável, ficaria mais feliz. — Era verdade. Mesmo com o pouco tempo de convivência, dava para perceber o quanto o czareviche se importava com as pessoas próximas a ele. Ainda assim, ela se perguntava qual seria a resposta que ele decidiu não dar a ela. — Isso não deve ajudar muito, imagino.

— Na realidade, ajuda sim — respondeu, e é claro que estava pensando em Niklaus. — Metade das festas de que participei foram para acompanhar meu irmão mais novo e ver ele se divertindo era recompensa o suficiente — Ela riu. — Ele cresceu e parou de precisar de mim para essas coisas, acho que foi desde então que perdi a prática.

Aleksei assentiu, provavelmente compreendendo o papel de irmão mais velho, pelo menos um pouco. Ela tinha que admitir que era um tanto difícil imaginar Catherina precisando de proteção, mesmo quando criança. A fama letal da czarevna lançava uma sombra bem grande sobre a mulher, obscurecendo qualquer outra faceta de sua personalidade para Leena.

Apesar de estar mais confortável naquela conversa do que esperava, Leena estava se segurando para não perguntar por que o czareviche tinha vindo falar com ela. Estava ciente de que ele precisava falar com as selecionadas e ela talvez fosse a primeira da noite, apenas. Ou talvez fosse ele quem estivesse esperando algo, já que era ela quem tinha ficado o encarando mais cedo. Estava se preparando para contar a mentira mais deslavada se Aleksei de fato lhe fizesse alguma pergunta sobre isso, quando ele interrompeu o silêncio:

— Você está diferente hoje.

A mente de Leena, que estava trabalhando em milhares de maneiras de continuar aquela conversa, ficou em branco diante da afirmação do czareviche. Ela só conseguiu olhar para ele, um tanto chocada, até conseguir formular alguma coisa.

— O que… Como assim, vossa alteza?

Ele mesmo parecia incerto do que estava dizendo e demorou um tempo para responder Leena, como se decidindo se queria ir adiante com aquele assunto mesmo.

— É só que… A senhorita parecia muito confortável no último baile, e digo isso da melhor maneira possível. Hoje parece que está se escondendo nos cantos escuros do salão. — Dessa vez, o tom dele perdeu um tanto da polidez de sempre, e Leena escutou na voz do czareviche a preocupação e nervosismo que devia estar sentindo. Naquele momento ele estava, também, fora de sua alçada e isso confortou ela um pouco. Bem pouco. — Aconteceu alguma coisa?

Leena tinha imaginado que poderia ter deixado uma primeira impressão forte no czareviche, decidindo apresentar a si mesma daquela forma – ainda que fosse só para fugir de Catherina. Ela sabia muito bem que estava com muito menos coragem agora do que antes e sabia porque, mas não tinha a menor chance de discutir isso com Aleksei. Era hora de mudar o rumo daquela conversa e depressa.

— Só estou me aclimatando, vossa alteza, foi uma noite cheia de surpresas e ela mal começou — disse, abrindo seu melhor sorriso de “estou perfeitamente bem”. — Mas talvez eu seja do tipo que piora com a prática, não o contrário. Se bobear, no próximo baile vão me encontrar escondida atrás de alguma cortina do salão.

Aleksei entendeu o recado com rapidez, abrindo um sorriso que pelo menos parecia um pouquinho sincero diante da piada boba dela.

— Entendo. — E, assim, a voz dele voltou a ter o tom de sempre, ambos dando um passo atrás naquela dança estranha de sinceridades e polidez que estavam fazendo. Podia ser menos honesto, mas pelo menos era terreno firme. — Me perdoe por me intrometer onde não deveria. — Leena gesticulou com as mãos, como se espantando as preocupações do czareviche. Não estava ofendida nem nada do tipo, só preocupada em estar sendo transparente demais. Haveria lugar pior para ser facilmente decifrável do que ali? — Por outro lado, acho que é um bom exemplo da falta de jeito natural de que eu falei antes.

— Quem sabe haja esperança para mim, então? — disse Leena, rindo, um tanto admirada que o czareviche fizesse esse tipo de constatação crítica sobre si mesmo e, por isso, um pouco mais confortável em propor a ideia que lhe passou pela cabeça. — Se vossa alteza quiser muito se redimir, que tal me apresentar os amigos que lhe ajudaram a gostar dos bailes?

A expressão dele se iluminou tão genuinamente que Leena até sentiu o rosto esquentar um pouco. Tinha feito a sugestão para não terminar a conversa naquele clima esquisito, não esperava que ele gostasse tanto da ideia. Aleksei era surpreendente: fácil de agradar em algumas coisas, perceptivo demais em outras, perfeito em sua apresentação como realeza, mas ainda assim com algumas rachaduras de humanidade naquela sua elegância de porcelana.

— Mesmo?

— Sim, se vossa alteza não se incomodar — disse, agora empolgada de verdade com a ideia.

Aleksei lhe estendeu o braço e ela aceitou, deixando que ele a guiasse até um grupinho formado por Abesash, um homem branco e loiro e um negro e forte na outra ponta do salão.

— Acho que vai gostar deles. Só não acredite em metade do que falam, eles não mentem só… Exageram.

Leena sorriu, tranquila o suficiente para nem perceber que estava bem mais perto do centro do salão do que planejara meros minutos antes.

— Não se preocupe, sou muito boa em saber qual metade é verdade.

***

Lara não esperava reencontrar o lado espanhol de sua família justamente no palácio.

Claro, seus primos tinham passado mais tempo naquele lugar do que ela, mas, com o fim do noivado – como sua família havia fofocado sobre isso na época… – Lara não conseguia imaginar que Leonor pisaria naquele país de novo por vontade própria. A conclusão lógica era que ela estava ali obrigada, claro.

Não que ela deixasse isso transparecer. Parte de ser um bom governante era ser um mentiroso (ou um ator, se quisesse ser gentil) habilidoso. Fingir familiaridade onde não havia, esconder bem o desconforto, abrir sorrisos amistosos para as pessoas que você mais odiava no mundo, tudo isso era necessário para manter a coroa na cabeça. Leonor era fantástica nisso. Ezequiel, por outro lado, era sincero demais para seu próprio bem.

Ele tinha melhorado em suas mentiras. Se Lara não o conhecesse desde criança, talvez comprasse as atitudes e palavras cada vez piores que ele escolhia, mas, bem, não era o caso. Como o retrato de Dorian Gray, que envelhecia e apodrecia por ele, os olhos de Ezequiel iam acumulando a tristeza de cada escolha ruim que ele fazia, mesmo que o resto permanecesse intacto. De fato, houve ocasiões em que ela nem conseguia olhar muito tempo para ele sem sentir uma melancolia horrorosa.

Entre qual dos Agramunt enfrentar primeiro, porém, Lara acabou escolhendo Ezequiel. Em parte porque, distraído olhando as estrelas flutuando pelo salão, ele parecia com aquele adolescente que tinha sido um bom amigo de Lara, antes que o rei começasse a estragá-lo e ele continuasse o serviço.

Terminamos bastante lejos de casa, ¿no? — disse, sentando-se ao lado dele. Ele sorriu diante do uso de sua primeira língua, mas respondeu em russo, como costumava fazer. Antes Lara achava que era para o conforto dela, mas, quanto mais cresciam, mais ela achava que era um jeito de não ter que lidar com assuntos sentimentais em espanhol: as palavras sempre soam um pouco sinceras demais quando estão na língua materna, afinal.

— Se você consegue chamar aquilo de casa… — Ele parecia cansado, como sempre, mas havia um alívio na postura dele depois de sua chegada. Difícil saber de que tipo de espiral de pensamento sufocante ele tinha saído para participar daquela conversa. — Oi, Lara. Como anda a vida de selecionada?

— Bem diferente do que eu esperava. — Ela riu, já conseguindo pensar em certas confusões com algum humor. — Bem mais divertida, na realidade.

— Você sempre foi meio esquisita mesmo.

— Deixa de ser cínico — respondeu, dando um tapinha no ombro dele, que riu, mas ainda parecia nem um pouco convencido. — Estou falando sério. As outras garotas são muito mais interessantes do que qualquer perfil que você possa ter visto em alguma coluna de fofoca e Aleksei… Não faça essa cara.

— Não fiz cara nenhuma — disse ele, e Lara não conseguiu decidir se ele estava percebendo ou não a expressão de desgosto que tinha ocupado seu rosto. Escolheu a última opção para não se irritar.

— Eu sei que você não gosta dele e eu até entendo, sempre fiz questão de detestar as ex-namoradas dos meus irmãos na mesma intensidade que eles. — Pelo sorrisinho que Ezequiel lhe deu, devia lembrar muito bem do término histórico de Miguel com Isabella Ortiz havia uns cinco anos. — Mas eu também tive o senso de saber quando meus irmãos erraram ou quando estavam magoados demais para não detestar um ex-parceiro. Você deve ter discernimento o suficiente para admitir que Aleksei não é uma pessoa ruim.

Ezequiel suspirou, tentando achar alguma paciência para ter aquela conversa, provavelmente. Lara nem se abalou: àquela altura ele deveria estar acostumado com ela e seu hábito de não ficar rodeando assuntos complexos.

— Eu sei. Odiei ele com tanta veemência por três anos que é difícil largar do hábito — confessou ele de repente, fazendo Lara lembrar de uma conversa, anos antes em outro baile e em outro país, com um Ezequiel desesperado por perder sua irmã para um casamento com um dos reinos mais fechados da época, deixado sozinho com uma coroa e um trono que não queria. — Por outro lado, nós não poderíamos ser mais opostos e, sinceramente, não acho que teríamos uma boa relação nem se Leonor não estivesse envolvida.

Lara não conseguiu conter uma risada só um pouquinho sarcástica. Geralmente ela tinha bem mais paciência, mas Ezequiel e suas confusões a deixavam maluca. Como ele podia ser tão perceptivo e tão ignorante ao mesmo tempo?

— O quê? — perguntou ele, absolutamente ofendido com o que ela estava implicando.

— Em que você é tão diferente dele?

— Lara, você costumava ser boa de observação — respondeu ele, seco. Em seguida, levantou a mão esquerda e começou a contar cada um de seus argumentos nos dedos. — Eu tenho alguma vivacidade, sei lá. Não sou formal, frio, distante. Ah, e também não estou interpretando um personagem perfeito o tempo inteiro. Não ligo a mínima para a etiqueta que ele segue à risca, não sei mentir para agradar nobres, sei expressar emoções normais como um ser humano normal… Preciso continuar?

— Eu digo isso com todo o amor do mundo, e você sabe que por você eu tenho bastante: se enxerga. — Dessa vez ela nem tentou encobrir sua irritação. Era um misto de questões cutucando seus nervos, desde aquela camaradagem estranha que tinha nascido nela ao saber da magia que Aleksei carregava e dos fardos que deviam vir com ela até a preocupação genuína com Ezequiel e seu terrível hábito de queimar suas chances de relações com os outros de todos os jeitos possíveis. — Só porque sua apresentação é expansiva, inconsequente e errática não deixa de ser uma apresentação, um personagem, de qualquer maneira. O seu teatro funciona para algumas coisas, o dele para outras.

Ele a encarou com olhos arregalados, sem saber o que responder. A irritação de Lara esfriou diante da possibilidade de ter erguido mais uma parede entre ela e o primo, e continuou falando de maneira bem mais amena:

— O que quero dizer é que você deveria julgá-lo um pouco menos, personagens feitos para o público não nascem sem motivo, e nós dois sabemos disso. — Ela pigarreou, falando a próxima parte em um tom bem mais baixo. — Eu vi você crescendo, afinal.

O silêncio que caiu sobre eles foi diferente, bem mais triste.

Lara detestava visitar o palácio espanhol quando criança. O rei e a rainha sempre foram absolutamente distantes e assustadores, Leonor, já mais velha que Lara, pareceu amadurecer e se cansar dos interesses infantis da prima bem mais rápido que o normal e o resto da nobreza ao redor deles não era muito mais receptivo. Ezequiel, apesar da rebeldia adolescente que já tinha torrado a paciência de todo mundo quando Lara tinha só 7 anos, era uma das poucas pessoas ali dentro com quem ela podia conversar e que até se submetia a brincar com ela, mesmo se achando adulto demais para aquilo, provavelmente. Tinha vivacidade nele, uma determinação em ter liberdade que Lara chegou a admirar e tomar como exemplo quando ficou mais velha e entendeu as limitações da posição dele e da sua. Com os anos, porém, a vivacidade se foi. Ezequiel parecia se arrastar por aí, por mais que suas atitudes expansivas quisessem dizer o contrário.

— Eu não… — ele suspirou, desistindo de se defender no meio do caminho. — Tudo bem, não há nada de errado que você goste dele, imagino que tenha alguma coisa de interessante ali no meio. Sei que não estou sendo justo, mas nunca me propus a ser, de qualquer maneira. — Ela abriu a boca para rebater, mas ele a interrompeu. — Não vamos falar disso hoje, ok? Daqui a uns meses, se você estiver entre as finalistas e eu sóbrio, nós voltamos ao assunto.

Ainda que ele estivesse querendo falar de sua implicância com Aleksei, era bem óbvio de que questão estava fugindo, na verdade. Não era a primeira vez que Lara tocava naquele assunto, mas era a primeira vez em que tinha idade o suficiente para entender, de verdade, sua urgência. Teria a conversa mais desconfortável de sua vida se isso significasse livrar Ezequiel daquele teatro que ele apresentava há anos.

— Não vou esquecer dessa promessa, pode esperar uma ligação muito longa quando o dia chegar — disse, decidindo não forçar mais. Estavam em uma festa, pelo amor dos deuses, ela de fato gostaria de tratar de coisas mais agradáveis.

— Eu sei que não vai, você herdou os genes teimosos da nossa família — disse, dando mais um gole na taça que segurava. — Mas, falando sério, não achei que te veria na Seleção. E a Anna?

Lara suspirou. Ela e Anna nunca tinham chegado a se chamar de namoradas, mas se conheciam a tempos e Lara confiava nela de olhos fechados. Dividiram afeto, amizade e atração, mas, entre a pressão familiar e a independência natural de Lara, nunca realmente se tornaram nada sério. Tinha que admitir que sentia mais saudade de Anna do que esperara e ainda não tinha decidido o que isso significava.

— Nós conversamos semana passada e ela está bem, mas acho que isso é tudo. Vim para essa Seleção para tentar de verdade. — Ela não gostou nem um pouco do olhar que Ezequiel lhe dirigiu.

— Seu pai te obrigou a vir? Se esse é o jeito dele te arrumar um casamento arranjado…

Ela levantou as sobrancelhas, um tanto surpresa com a franqueza da pergunta, mas não tanto com a preocupação na voz do primo. Como um ramo da família real espanhola, os Anadyr os espelhavam de várias maneiras – a dificuldade de lidar com as “ovelhas bissexuais” da família sendo uma delas. Para Lara as coisas eram em escala menor, ela gostar de mulheres era mais um passo para longe da vida que seu pai queria para ela. Apostava que se aceitasse, finalmente, trabalhar na empresa da família e se filiar ao coven, metade do desgosto dele desapareceria na hora. Para o lado da família de Ezequiel, o preconceito era maior e mais violento. Ele nunca tinha falado sobre o dia em que seus pais tinham descoberto, mas o silêncio era pista o suficiente de que tinha sido desastroso. Entre essas coisas não ditas, se apoiavam há anos.

— Não, ele já sabe que não consegue me obrigar a nada. Fui eu quem decidi vir, essa Seleção é importante, mais do que você imagina. — Não eram poucas as vezes em que ela se pegava considerando se Ezequiel seria capaz de compreender a magia dela como todo o resto. Será que ele entenderia como a política aldiana estava se movimentando só por causa de dominadores como Lara? — Sendo sincera, não sei se vou sair dessa com um amor novo e uma coroa na cabeça ou com boas histórias para contar e novas amigas, mas não estou com medo de descobrir. Está tudo bem, prometo.

Ele assentiu, satisfeito. Em seguida, abriu um sorriso, um de verdade, pela primeira vez naquela conversa:

— Se mudar de ideia, estou a uma ligação de distância para vir te resgatar. Só não prometo enfrentar o inverno russo para te salvar, a gente bem sabe como isso acaba para os invasores.

— Fala sério! — Ele riu, parecendo um pouquinho mais com o Ezequiel que ela tinha conhecido quando criança. — E o senhor pare de falar mal do meu país, você gostaria muito mais de Aldan se não ficasse fechado no palácio toda vez que vem para cá. Tem muita coisa interessante para ver por aí.

— Quem sabe no próximo verão eu te abençoe com a minha presença. — Ele bebeu mais um gole, ficando pensativo de novo. Tinha alguma coisa acontecendo, percebeu. Ele estava esperando algo? Dava para vê-lo correndo os olhos pelo salão, com um olhar crítico demais para ser de admiração. — Devo estar bem mais livre até lá.

Talvez Lara devesse manter um pouco de sua atenção no primo durante a noite. Sabia que não tiraria nada dele se perguntasse, não depois de já tê-lo pressionado uma vez naquela conversa. Também sabia que seus planos nunca terminavam bem para ele e para as pessoas à sua volta e ele estava arquitetando alguma coisa, tinha certeza.

— Pois venha, quando nosso tour terminar vou adorar ver você engolir cada insulto a este país gelado, viu? — disse ela, sorrindo e optando por fingir não ter percebido ao continuar a conversa naquele tom descontraído. Teria o resto da noite para adivinhar quais seriam as intenções dele, afinal.

*

Se Lara não conhecesse seus primos, diria que eles tinham combinado de se apresentar das formas mais diametralmente opostas que pudessem para ela. Enquanto a conversa com Ezequiel tinha sido longa, cheia de altos e baixos e significados escondidos, Leonor tinha ido direto ao ponto, puxando-a para um canto depois de alguma desculpa convincente para o grupo de convidados em que haviam acabado se esbarrando:

No quería creer que terminaste aquí — disse a princesa, em um espanhol rápido e carregado de julgamento em cada palavra. — Ao menos você deveria ter tido um pouco mais de senso.

Havia um milhão de jeitos para aquela conversa se desenvolver. Lara não achava que Leonor estava agindo daquele jeito por ciúmes. Ela estava acima deste tipo de chilique mesmo se tivesse sentimentos por Aleksei, e a princesa tinha sido muito clara sobre não ter nenhum. A outra opção é que ela estava agindo por preocupação, o que não era impossível, mas absolutamente bizarro. Por hora, decidiu por jogar na defensiva e esperar que Leonor fosse mais clara com suas intenções do que seu irmão.

— Às vezes eu queria que você e Ezequiel conversassem mais, — disse, mantendo a conversa em espanhol. Podia não saber o que Leonor queria, mas a barreira linguística era um mínimo de proteção que podia oferecer para poderem ser um pouco mais honestas naquele salão lotado — aí eu não precisaria explicar a mesma coisa duas vezes. Sim, estou aqui, estou ciente do que a Seleção implica e de quem Aleksei é e pretendo continuar até onde me for permitido.

Leonor balançou a cabeça, enfática.

— Você não sabe quem ele é, Lara. — Nem você, pensou, imaginando, não pela primeira vez, quanto a magia dele teria impactado no relacionamento dos dois. A magia dela já havia impactado os relacionamentos da Anadyr, e olhe que ela lidava em uma escala de coisas bem menor. — Não quebrei uma aliança importante à toa, por capricho. Você tem a possibilidade de sair daqui quando quiser, não fique.

— Leonor, eu não vou embora por um aviso tão vago, nem vindo de você. — As duas podiam não ter o relacionamento mais próximo, mas Lara respeitava as decisões da prima, geralmente bem certeiras. Dessa vez ela não conseguia entender, porém. — E eu consigo pensar em vários motivos para você querer sair do seu casamento que não tem nada a ver com o czareviche.

Demorou meio segundo para a princesa entender o ponto de Lara e, quando o fez, a resposta veio na forma de uma risada sarcástica.

— Por favor, essa situação toda só me deixou mais longe de herdar a coroa, não o contrário.

Lara se impediu de expressar qualquer tristeza com a afirmação, tendo torcido por anos para que o rei tivesse um momento de clareza e deixasse o governo para a filha. Sabia que Leonor odiava que sentissem pena dela e, de fato, era o último sentimento que ela evocaria com aquela aura de confiança inquebrável e genuína. Era um tipo de segurança que Lara nunca conseguiria ter, a certeza de quem tem pouco a esconder.

— Tudo bem, então me dê algo concreto. Qual o seu problema com Aleksei?

Não houve hesitação alguma na resposta.

— Ele não é uma pessoa normal, Lara. Tem segredos demais se acumulando ao seu redor para ser possível confiar nele. — Lara tinha certeza de que sua expressão traduzia o quão pouca diferença aquilo fazia. Ela sabia que segredo era esse, ou pelo menos era isso o que achava até Leonor continuar. — Eu já vi… Escute, você sabe que não sou idiota nem supersticiosa, não estou exagerando. Eu vi alguma coisa escura nos olhos dele várias vezes, como o ar em volta dele parecia ficar mais denso, como dormir do lado dele sempre me dava os piores pesadelos, literalmente. Eu não sei o que é, mas tem alguma coisa errada. Deixe de ser curiosa uma vez na vida e não tente descobrir o que é, só volte para casa.

Tomando o silêncio chocado de Lara como entendimento do aviso que estava sendo dado, Leonor se despediu da prima e voltou a encantar outros convidados, com um sorriso no rosto que não entregava nada da conversa espinhosa que acabara de ter.

Lara não soube o que responder. Poderia tudo aquilo ser uma extensão dos poderes de Aleksei? Mesmo que sim, que tipo de magia era aquela que afetava tanto as pessoas que estavam ao redor dele? Nada do que conhecia sobre dominações combinava com o que Leonor tinha descrito, então, de fato, tinha alguma coisa errada.

Ela correu os olhos pelo salão em busca de Aleksei, encontrando-o em uma roda de conversa, sorridente, lindo, elegante como sempre. Não parecia haver escuridão alguma se escondendo ali, nenhum monstro devorador de sonhos. O quanto da percepção de Leonor seria só a aversão que os não-bruxos pareciam ter ao que desconheciam? O quanto seria uma verdade sombria?

Me perdoe, prima, pensou, mas vou ter que ficar para descobrir.

***

— Aquilo foi fantástico — disse Nikolai, parando ao lado de Aberash em um dos poucos momentos em que ela ficou sozinha. Ela abriu um sorriso diante do elogio, aceitando-o com a graciosidade de quem já estava acostumado a maravilhar os outros. — Foi por isso que insistiu tanto para que eu viesse?

— Ora, que artista não quer que seus amigos assistam uma apresentação sua?

— Amigo? — disse, antes que pudesse parar a si mesmo.

— Eu considero isso aqui uma amizade, à essa altura — respondeu ela, dando de ombros. — Nos encontramos várias vezes por semana, comemos juntos, eu sei um bocado da sua história e você sabe um bocado da minha. Não é o suficiente?

— Talvez, mas… — Ele ponderou se deveria continuar, ciente de que não era a coisa mais educada do mundo a se dizer. Se soubesse segurar a língua nesses momentos, contudo, não seria ele mesmo. — Só fazemos isso por causa das circunstâncias. Você é a única pessoa de confiança que eu tenho aqui dentro e, ao mesmo tempo, a única que poderia esmigalhar essa farsa com algumas palavras. Eu também tenho um segredo seu nas mãos, então faz sentido me manter sob vigilância, não faz?

Ela levantou as sobrancelhas, surpresa. Não parecia ofendida, o que era ótimo, já que Nikolai não queria ser rude com ela, apesar de perceber o quão mal aquilo tinha soado assim que terminou de dizê-lo.

— Eu entendo que você não confie completamente em mim e seria muita hipocrisia da minha parte não admitir que estou te vigiando em certa medida, sim. Mas isso não muda o fato de que grande parte da minha vida foi uma série de circunstâncias e que eu tive que aprender a fazer amigos no meio delas. Seria muito solitário de outro jeito, sabe? — disse, abrindo um sorriso tranquilo. — Você pode esperar as circunstâncias terminarem para decidir se fomos amigos ou conhecidos, mas, da minha parte, eu não preciso esperar, se não te incomodar.

Nikolai ficou sem saber o que responder. Adoraria entender plenamente o sentido do que Aberash estava lhe dizendo, enxergar por baixo das camadas de segredos que ela carregava por aí como se fossem leves. Talvez fossem mesmo ou, no mínimo, fossem comuns, as tragédias que pareciam se acumular ao redor de todos os bruxos que Nikolai conhecia. Quando se tratava dos residentes daquele palácio, porém, ele já tinha começado a admitir que não entendia nem metade do que se passava.

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— Não me incomodo — Acabou dizendo, finalmente. Não custava baixar a guarda um pouquinho, ciente de que admitir certas coisas não diminuía a cautela que tinha com a mulher parada ao seu lado. — Com circunstâncias ou não, eu já teria estrangulado algum dos meus colegas se não fosse ter você para conversar.

— Foi um dos motivos pelos quais insisti para que você viesse — disse ela, retomando o começo da conversa. — Precisa espairecer nas oportunidades que tem, senão seu desafio vai ficar muito mais difícil.

— Por que parece que você está falando a partir de experiência própria? — disse, mais afirmando do que perguntando.

Nikolai ficou esperando uma resposta no mínimo sarcástica diante daquela curiosidade crônica dele, a incapacidade de segurar uma pergunta, mas tudo que ela fez foi dar de ombros, não se dando ao trabalho de negar o que ele tinha apontado.

— Posso te contar como foi meu primeiro ano neste palácio na próxima vez que você tiver um tempo livre. Não tive que dividir o quarto com caçadores, mas, para uma garota que mal tinha completado 16 anos, era bem fácil me sentir sobrecarregada.

— Essa é uma história que eu quero ouvir — A lembrança de quando seria seu próximo “tempo livre”, porém, foi o suficiente para trocar a curiosidade por um misto de nervosismo e irritação. — Só que isso vai ser só depois da próxima avaliação, daqui três dias.

Ah, então eu estava certa em te arrastar para fora daquele centro de treinamento?

— Nem comece — rebateu ele, mas não conseguiu deixar de rir.

— Brincadeiras à parte, eventos sociais como esse também são bons para os seus objetivos. Todos os outros caçadores em treinamento estão aqui, assim como os caçadores mais próximos da Catherina e das posições mais altas. Ficar de fora só te colocaria num foco de atenção negativo.

Nikolai suspirou, sabendo que ela estava certa. Lhe dava nos nervos ter que se fazer de simpático para os caçadores que adorariam matá-lo e para a nobreza que os sustentava e aplaudia, mas encarar aquilo fazia parte daquele plano, no fim das contas, por mais cansativo que fosse. Não pela primeira vez, agradeceu a escolha de Aberash de inventar uma história que envolvia poucos feitiços de mudança de aparência. Estando sob aquele nível de pressão, já teria cometido um deslize se tivesse que andar por aí com um rosto completamente diferente do seu. Não ajudava que tinha se especializado em feitiçaria de materialização, tendo renegado a transfiguração em seu treinamento. Nem podia se culpar por isso: em que momento de sua formação ia se imaginar infiltrado no palácio?

— Eu sei. Prometo que vou tentar aproveitar os poucos momentos livres que me restam.

— Com uma veia dramática tão forte, tenho certeza de que vai ser fácil conquistar metade do salão — alfinetou ela, arrancando uma risada de Nikolai. — Como têm ido os treinos, inclusive?

— Menos horríveis a cada dia. Já faz um tempo que não levanto da cama sentindo dores em lugares que eu nem sabia que existiam, o que deve ser um bom sinal — ela assentiu, satisfeita. — E as selecionadas? Teve algum problema até agora?

— Houveram alguns picos de tensão, mas as coisas vão bem. Acho que algumas delas podem te reconhecer hoje, então tome cuidado. A decisão sobre que história contar é toda sua, confirmarei o que você quiser.

Nikolai ponderou por um momento, percebendo que não era uma escolha tão óbvia. O que ele estava fazendo, tentando se infiltrar na Caçada atrás de um segredo tão bem guardado, seria benéfico aos covens se desse certo. Contudo, ainda era uma variável não prevista naquele plano de trazer duas dúzias de bruxas para o palácio. Conhecendo seus colegas, não era difícil imaginar que muitos teriam uma reação adversa ao saber que ele estava ali, apresentando-se como um risco de exposição a mais.

— Até segunda ordem, estou aqui a mando seu para vigiar os movimentos dos caçadores e tentar manter as selecionadas seguras — Ela assentiu, aceitando a mentira sem nem pestanejar. — Eles provavelmente vão querer uma explicação para o por que da minha presença não ter sido informada antes. Tudo bem para você lidar com eles?

— Vai ser só mais uma coisa na lista de reclamações, de qualquer maneira. Já sabia que teria que lidar com esse tipo de coisa quando me meti nisso aqui.

Umas trinta perguntas diferentes apareceram na cabeça de Nikolai: “Que outras reclamações?” “Por que orquestrar essa Seleção?”. Ele sabia que aquele não era o lugar para nenhuma daquelas perguntas, assim como via na expressão de Aberash que ela não responderia nenhuma delas se ele deixasse seu bom senso de lado e as verbalizasse. Mas deveria fazê-las em algum momento, entender no que, exatamente, estava se metendo. Quem sabe dali três dias não fosse, enfim, a hora certa para tal.

— Obrigado — disse e, percebendo pela aproximação de um grupo de pessoas que os minutos de solidão da cantora estavam acabando, decidiu que era hora de encerrar aquela conversa. — Acho que é minha deixa para te deixar ouvir novos elogios.

— Você pode ficar, se quiser — Ela riu diante da expressão que ele deve ter feito. — Tudo bem, tudo bem, não vou te obrigar a conversar com a nobreza. Mas vá fazer outra coisa além de ficar bebendo de pé em algum canto!

— Eu vou, mas me coloco no direito de pedir resgate no primeiro fã da Caçada que vier falar comigo.

— E eu prometo ir ajudar assim que ver o sinal de fumaça — respondeu ela, rindo mais e empurrando ele para o meio do salão.

Com bem mais ânimo depois daquela conversa, Nikolai foi usar de toda sua extroversão para ganhar algumas conexões. E, por mais que ele jamais fosse admitir aquilo, foi bem menos pior do que ele esperava.

Seus colegas, pelo menos os mais simpáticos, eram outras pessoas longe do ambiente das salas de treinamento. Alguns deles finalmente pareciam os adolescentes que eram, outros abriam sorrisos e davam risadas que Nikolai nunca tinha visto em todos aqueles meses de convivência intensa. Para maioria, parecia haver um acordo não dito de esquecer a competitividade e pressão que compartilhavam todos os dias e só se concentrarem em dançar, beber e conversar sobre qualquer coisa que não fosse a Caçada.

Havia os que ignoravam por completo aquele pacto que permitia mais simpatia entre eles e era muito fácil identificá-los. Eram os que tinham, sim, boas conversas e abriam sorrisos charmosos, mas apenas para instrutores, comandantes e nobreza. Os que se recusavam a gastar aquela noite com frivolidades e iriam usar a oportunidade de estar na presença das pessoas mais influentes do país ao seu favor. As intenções de Nikolai pareciam muito mais com as do último grupo, mas ele via aquela abordagem agressiva como absolutamente deselegante. Ambição escancarada podia ganhar a curiosidade e respeito de uma parcela das pessoas daquele salão, mas nem de longe tanto quanto escondê-la com um bocado de charme e alguma bajulação. Amadores.

Sendo sincero, porém, Nikolai admitia que nem tudo o que ele estava fazendo ali era calculado. Em circunstâncias normais já seria difícil não se perder um pouco na magnitude daquele salão, mas, depois de meses resumidos a treino pesado e a tolerar a convivência com gente sendo treinada para matar outros como ele, era impossível não se perder um pouco nas conversas despreocupadas, na comida boa, na música. Já tinha perdido a conta de quantos convites tinha aceitado e quantos tinha feito para uma dança, mais do que feliz em mover seu corpo para outra coisa que não fosse empunhar espadas ou praticar socos.

Nesse equilíbrio entre criar conexões e só se divertir um pouco pela primeira vez em meses, Nikolai tinha um terceiro fator influenciando suas ações: evitar Catherina. Desde a última conversa que tiveram, depois de sua derrota vergonhosa para Reed, ele vinha tentando sondar se tinha piorado as suspeitas dela depois de falar demais – culpava o cansaço excessivo que caíra sobre ele e afetara sua capacidade de auto censura. Pelo que conseguira até agora, ela parecia mais curiosa do que desconfiada, mas não tinha coragem de engajar em uma conversa mais longa para descobrir se estava certo, pelo menos não naquele baile. Não quando não estava totalmente sóbrio e não quando sentia revoltantes e absurdas ondas de atração toda vez que olhava para ela. Ele tinha certeza, claro, que aquele palácio finalmente o tinha deixado maluco.

Já tinha tentado racionalizar aquela insanidade de todos os jeitos possíveis, mas a maioria tinha soado como desculpas esfarrapadas até para ele mesmo. Não era como se ele esquecesse por um segundo sequer quem Catherina era e o que representava. Não conseguiria nem se quisesse. Era só que… Era mais fácil vê-la somente como A Caçadora, a personificação do que ele odiava, quando estavam naquele centro de treinamento e ela estava armada até os dentes. Era um pouco mais difícil fazer isso quando ela parecia estar refletindo cada luz do salão, mais deusa da noite do que princesa.

Detestando-a ou não, Nikolai não negaria que Catherina era linda. E não era como se nunca tivesse visto-a trajada como realeza, qualquer cidadão de Aldan que assistisse às notícias a veria com uma coroa na cabeça e roupas de gala pelo menos uma vez. Não devia fazer diferença alguma vê-la ao vivo ou em uma tela, mas, pelo jeito, fazia. Havia algo de magnético na presença dela, nos sorrisos (dos mais diplomáticos aos mais genuínos) que ela estava distribuindo, na naturalidade em que ela se movia naquele vestido azul cintilante. Era tão cativante, de fato, que ela estava cercada de gente permanentemente, um campo gravitacional daquele salão.

E Nikolai estava fazendo o possível para ficar bem longe da órbita dela.

Não era nenhum crime sentir atração por ela, tinha decidido. Era culpa do seu corpo, seus hormônios, que não sabiam o que seu cérebro sabia. E, disse a si mesmo com muita resolução ao caminhar a uma das sacadas do salão em busca de ar fresco, era seu cérebro quem mandava naquele sistema todo. Sobreviveria àquela insanidade momentânea.

— Está me evitando, Ayres?

Por algum milagre ele conseguiu não xingar alto ao ver Catherina à porta da sacada. Aquilo era algum tipo de piada elaborada do universo? Até demorou um segundo para entender o que ela tinha lhe perguntado e, antes que pudesse negar, ela continuou:

— Claro, posso estar sendo absolutamente egocêntrica, mas todos os outros novatos já vieram fazer sua tentativa de me impressionar e, para alguém que olhou tanto na minha direção, você estava fazendo um ótimo trabalho em estar o mais longe possível de onde eu estava.

Quão ruim seria se ele pulasse daquela sacada? Eram, o que, 12 metros até o chão? Com alguma sorte e meio feitiço ele sairia daquela com duas pernas quebradas, o que não devia ser muito pior do que Catherina e sua capacidade de perceber coisas demais.

— Evitar não seria a palavra certa, — disse, se obrigando a ignorar as pontadas de vergonha que estava sentindo e se recompor — acho que me preparando seria melhor.

Ela levantou as sobrancelhas, saindo da porta e parando ao lado dele na sacada.

— Não achei que você fosse o tipo que se intimida.

— Não sou — respondeu. — Mas também não sou como meus colegas. Imagino que os assuntos com eles tenham sido muito interessantes…

Catherina fez uma careta, confirmando o chute dele.

— É até um pouco preocupante tantos deles acharem que eu não sei seus nomes nem suas aspirações se forem aceitos. Estava tudo nas fichas de recrutamento, pelo amor de Deus — Nikolai soltou um riso curto. Se por um lado era justamente o que ele imaginava que seus colegas fariam, também era compreensível que achassem que Catherina não saberiam quem eram eles. Eram mais de 100 recrutas, afinal. — Mas você ainda não respondeu minha pergunta. Quer dizer que tinha algum outro assunto fantástico em mente?

— Não, justamente por isso não tinha ido fazer minha tentativa — mentiu, com mais confiança agora, dando ênfase na última palavra — ainda. Mas já que vossa alteza atrapalhou todo o meu processo, acredito que vai ter que se contentar com uma lista de todos os meus pontos fortes como caçador em potencial recitada com muito, muito entusiasmo.

Catherina riu, parecendo surpreender até a si mesma. Era bem verdade que Nikolai estava tentando escapar daquela conversa com humor, mas não esperava que ela achasse graça. Nunca tinha ouvido ela rir e não acreditava que era ele quem tinha causado aquilo. Acreditava muito menos que estava um tanto satisfeito de tê-lo feito.

— Tudo bem, peço desculpas por acabar com a sua preparação — disse ela, por fim. — Como compensação, um conselho para facilitar sua estratégia para próximos bailes: as melhores conexões e discussões políticas acontecem na pista de dança, afinal você tem a atenção da outra pessoa até a música acabar. Isto é, se você não for um dançarino terrível.

Nikolai encarou Catherina por uns segundos, pensando qual seria o melhor passo a se tomar depois de ter seus planos arruinados de maneira tão colossal. O fato era que haviam vários alarmes soando em sua cabeça porque a czarevna viera procurá-lo e, querendo ou não, estava ali sua oportunidade para descobrir em que ponto na escala da confiança dela ele estava. Seria muita estupidez não fazer uso daquela abertura.

— Sou excelente. Na verdade, — ele estendeu a mão para Catherina — podemos colocar isso à prova agora mesmo.

— Vamos ver que tipo de pergunta você quer me fazer, Ayres — respondeu ela, adivinhando as intenções dele em um segundo, mas aceitando ser conduzida até a pista de dança mesmo assim.

Em silêncio eles se prepararam para os primeiros acordes da música que não tardou a encher o ambiente. Agora que estavam ali, de mãos dadas, mas com uma distância bastante generosa entre os dois, Nikolai perdeu a resolução que os levara ali em primeiro lugar. Era culpa daquela atração revoltante de novo, mas não pelos mesmos motivos.

Àquela distância, ela ainda estava bonita daquele jeito gracioso e radiante de antes, mas a proximidade evidenciava que não dava para separar a Catherina filha de um Czar da Catherina que liderava o braço militar mais temido do país. Isso porque a mão que ele estava segurando enquanto valsavam era forte e calejada como a de nenhum nobre naquele salão seria. Porque o vestido sem mangas dela revelava braços torneados e fortes, cheios de cicatrizes que ela não fazia questão alguma de esconder, mesmo que tivesse a tecnologia e recursos para fazê-lo. E isso tudo, de algum jeito, atiçava mais aquele desejo ilógico do que a ideia dela como realeza em sua apresentação mais pura.

Voltou para a realidade depois de tempo demais, diante de um olhar interrogativo de Catherina. Era melhor que ele tomasse o controle da situação antes que ela fizesse alguma pergunta que ele detestaria responder. De qualquer maneira, a conversa que teriam não poderia ser pior do que os pensamentos que estavam rodeando sua cabeça enquanto eles estavam em silêncio.

— Peço desculpas pela indelicadeza, — começou, com cuidado, — mas não acredito que vossa alteza me procurou só por achar que eu estava lhe evitando. Agradeceria se me dissesse o motivo verdadeiro.

Se ela ficou surpresa com o pedido, não demonstrou.

— Não fui até aquela sacada por você. Eu estava encarregada de ficar de olho em uma certa situação e calhou de ela sair para o jardim no momento em que você saiu também — Catherina tinha, de fato, olhado mais para os jardins abaixo deles do que para ele durante a conversa que tinham tido do lado de fora. Na hora ele mal se atentara a isso, porém, ainda sem saber o que fazer com a aparição repentina da czarevna. — Aproveitei a oportunidade de ter de ir até lá para tentar entender porque você parecia estar se escondendo, admito.

— E a situação não precisa de supervisão?

— Ah, não, agora tem alguém muito melhor do que eu cuidando disso — respondeu ela, com um sorriso carregado de um humor que ele não entendia. Adoraria saber quem era a pessoa que precisava ser vigiada, menos por preocupação e mais por curiosidade. Duvidava que Catherina se referiria a uma possível investigação séria com tanta displicência ou que sequer a revelaria para um novato como ele.

Interromperam a conversa para executar uma parte mais complexa da dança, com giros e rápidas trocas de posição de mãos. Catherina era boa naquilo, ele concluiu sem muita surpresa e um tanto grato por uma parceira que era capaz de entrar no ritmo da música com ele, não pisar em seus dedos. Era bastante óbvio que ela seria uma boa dançarina, não só pelas extensas aulas que deveria ter tido sobre, mas pelo seu nível de habilidade como lutadora. Pés ágeis, consciência corporal e equilíbrio eram características bem vindas tanto num campo de batalha quanto em um salão de valsa, afinal.

— Outra pergunta: — começou ele, assim que voltaram à valsa tranquila de antes — por que vossa alteza prestou tanta atenção em mim, o suficiente para saber onde eu estava durante toda a noite?

Tinha sido ela quem começara aquela conversa com honestidade demais e ele tomou aquilo como permissão para fazer o mesmo, pelo menos naquela noite. Era a maneira mais direta de saber o que diabos Catherina achava dele, ou o mais próximo que conseguiria chegar nos próximos dois minutos, quando aquela música chegaria ao fim.

Em defesa de Catherina, não houve alteração nenhuma em sua expressão diante do questionamento:

— Prestei atenção em todos vocês, Ayres. Sei quais de vocês ficaram sozinhos em alguma mesa, e por isso mandei meus amigos mais extrovertidos para fazer uma “aparição estratégica”. Sei quais já devem estar caídos em algum canto pela velocidade em que estavam bebendo, quais nem sequer vieram — Ela deu de ombros. — Também faz parte do trabalho.

— O baile também é um teste, então?

— Sim e não. É importante sabermos como vocês agem sob menos pressão e supervisão e, claro, certas atitudes repreensíveis teriam consequências, mas nada aqui vale pontos. É só uma oportunidade de conhecê-los que não devemos jogar fora. — Nikolai não queria admitir, mas estava um pouco impressionado. Parte sua não podia deixar de imaginar que Catherina estava exagerando o quanto se importava, mas também não podia negar o quanto a maioria de seus colegas parecia bem integrada na multidão, mesmo os mais reticentes em estar ali. Alguma parte dessa impressão devia ter ficado evidente em seu rosto, porque Catherina logo continuou. — Não vou dizer que não é nada demais, porque não é, principalmente no começo. É uma habilidade que aprendi, que o comandante anterior me ensinou a ter, mas, na forma mais simples, é só saber prestar atenção e agir quando se deve.

Ele assentiu, entendendo o que ela queria dizer. Ele fazia isso o tempo inteiro quando tocava seu coven, lembrou, não sem uma pontada de saudade. Estava sempre prestando atenção nos membros, observando suas reações, suas socializações e intervindo quando algo parecia prestes a sair do controle. Nikolai também tinha aprendido aquilo com alguém que era um exemplo para ele e, por isso, lhe parecia uma habilidade que bons líderes deveriam ter. A conclusão lógica era que Catherina era, também, uma boa liderança – o que ele tinha muito mais dificuldade em entender.

Ainda que fosse uma boa resposta, Nikolai tinha a sensação de que Catherina tinha evitado sua pergunta.

— Posso considerar esta conversa como uma ação interventiva de vossa alteza, então? — disse, tentando uma última vez. Ela abriu um sorriso fino, com um quê de desafio em sua postura.

— Você se saiu muito bem sem intervenção nenhuma — disse ela e, ao fundo, a música chegou ao fim. — Pode considerar como curiosidade, apenas.

Nikolai, que, depois dessa resposta final, já tinha desistido de tirar qualquer coisa de Catherina naquele baile, ficou genuinamente chocado quando ela o impediu de sair da pista de dança, lhe estendendo a mão como ele fizera antes:

— Mais uma valsa? Você não mentiu quando disse que era um bom parceiro.

Se a regra era uma dança por uma pergunta, era evidente que ele aceitava.

— Onde aprendeu a dançar? — perguntou ela, entrando em um território muito mais ameno para aquela segunda rodada. Ele conseguia perceber o que ela estava fazendo: sondando quem ele era do jeito mais sutil possível, fazendo ele se abrir e, quem sabe, escorregar e dizer algo que não deveria. Ali não existiam problemas, porém, não haviam furos para Catherina encontrar.

— Em vários verões com meus avós. Eles são ciganos e me ensinaram a gostar da maioria das coisas bonitas de que gosto hoje.

Catherina levantou os olhos para ele, surpreendida pela primeira vez naquela conversa. Ele demorou um segundo para entender porque. Não tinha sido intencional: falar de sua família e da sua infância era alcançar suas memórias mais adoradas. Nunca tinha sido capaz de falar delas com sarcasmo ou pouco caso.

— Você deve amá-los muito — disse ela, simplesmente, e soou verdadeiro.

— É claro. Que neto não ama seus avós? — respondeu, desconversando. Não daria aquele tipo de vulnerabilidade a ela. — E vossa alteza, como aprendeu?

— A minha história é muito mais sem graça. Tive aulas até pararem de me obrigar a tê-las.

— Vossa alteza não dança como se tivesse sido obrigada a aprender — disse ele, antes que conseguisse parar. Ela sorriu, mas dessa vez tinha alguma coisa melancólica na expressão.

— Nunca foi meu maior amor, mas alguém me ensinou a gostar. Quando ele parou de amar tanto a dança, meu incentivo foi embora junto — ela pigarreou, parecendo puxar a si mesma da melancolia em que havia se colocado, e continuou de maneira bem mais displicente. — De qualquer jeito, gosto da música, de dançar em bailes e de trocar conversas, não de ensaiar.

— Eu também não gostava de ensaiar. Em algum momento meus avós desistiram e passaram a me deixar a fazer solos de improvisação — comentou ele, querendo animá-la e, para seu estranho alívio, ela riu um pouco.

— Tenho certeza de que foi uma ótima solução, criatividade é muito mais divertido de se ensinar a uma criança do que disciplina.

Ele sorriu diante do comentário. Não era sempre que sua ascendência e criação não eram julgados ou, no mínimo, taxados como estranhos, mesmo em uma conversa tão superficial como aquela. Talvez por isso ele continuou conversando com Catherina sobre besteiras da infância, música e viagens mesmo depois de a música ter terminado.

Mais tarde, já longe daquele salão de baile, no silêncio de seu minúsculo alojamento, ele repassaria a conversa inteira em sua cabeça, se certificando pela terceira vez de que não dissera nada demais, que tinham trocado amenidades, apenas. Naquela madrugada, embriagado e cansado demais para lutar contra seus próprios pensamentos, ele pensaria em como aquela conversa besta tinha sido uma das mais relevantes da noite, em como Catherina tinha camadas demais, no quanto ela era bonita e em como isso era revoltante. E dormiria pensando nela, sem se revoltar de verdade com nenhuma dessas coisas.