“You're not such an easy target

One minute I know you, then I don't

I know you, then I don't

Hello, who are you?”

Who Are You— SVRCINA

Não pela primeira vez naquele dia, Nikolai se pegou encarando seu reflexo e tendo o inquietante sentimento de, por alguns segundos, não se reconhecer por completo. Mesmo que fosse um tanto aflitivo, a genialidade daquilo o maravilhava toda vez e ele começava a acreditar que o plano mirabolante de Aberash poderia, de fato, funcionar.

No dia anterior, quando Nikolai fizera sua primeira aparição como seu gêmeo vingativo em Loye, Aberash o sentara em um banquinho do estabelecimento em que passariam a noite antes de seguir viagem, e passara uma boa meia hora aplicando feitiços de transfiguração no rosto dele. A princípio Nikolai resistira à ideia, convencido que o corte de cabelo - muito sofrido, diga-se de passagem. Depois de tantos anos com os cabelos compridos, era bizarro tê-los tão curtos novamente - e a barba que deixara crescer seriam o suficiente para poder encarnar o papel que deveria performar pelos próximos meses. Aberash buscara convencê-lo com sua paciência etérea a qual ele já estava ficando acostumado: Me anima perceber que você já está pensando como um não-bruxo, Nikolai, mas sua magia continua aí, e você vai precisar de toda a vantagem que conseguir dar a si mesmo. Sua platéia para esse papel é a mais exigente que irá encontrar em toda sua vida. Catherina tem os olhos de um falcão, sabe? Agora fique quieto e me deixe trabalhar.

Um olhar desatento dificilmente perceberia qualquer mudança na fisionomia de Nikolai. Mas a mudança estava ali, e ele, como quem melhor se conhecia, percebia tudo. Aberash fora sutil e sagaz em suas mudanças: uma pinta mudada levemente de lugar, um escurecimento sutil do castanho dos olhos, um par a mais de cílios. Pouco o suficiente para ser uma mudança que não gastaria muita energia mágica para manter, mas na medida certa para causar dúvidas em um olhar atento. Um olhar como o de Catherina.

Já era quase noite quando chegavam ao palácio, e ele se permitiu se deslumbrar por um mísero segundo com a magnitude do lugar, praticamente o mesmo desde a primeira vez que fora reconstruído após a Grande Guerra. Vendo a imponência das torres, a suavidade dos jardins cobertos de neve fina e a consistência das paredes quase intocadas pelo tempo, Nikolai não resistiu a se inclinar para Aberash e perguntar, no tom baixo de quem sabe que diz algo delicado:

— Quantas histórias você costuma ouvir entre essas paredes?

Ela sorriu, claramente entretida pela pergunta. Nikolai duvidava muito que qualquer um dos não bruxos com quem ela convivia pudessem sequer imaginar aquele tipo de indagação, isso é, não de forma séria.

— Tantas quanto há tijolos nessas paredes. No começo pensei que nunca mais seria capaz de dormir, ouvia sussurros de um milhão de histórias diferentes toda noite, mas com o tempo os fantasmas se aquietaram e começaram a contar suas narrativas sem tanta pressa — ela riu — Eles descobriram que sou uma boa ouvinte. Não lhe incomodarão na maior parte do tempo, mas ficam agitados em noites de tempestade.

Nikolai não pode deixar de sorrir, silenciosamente grato pelos maços de alecrim e boldo que enfiara no fundo de sua mala, afinal, por mais curiosidade que tivesse por ouvir sobre o passado da realeza, também queria dormir, e aquelas plantas fariam um bom trabalho em manter os sussurros afastados. Lugares como aquele palácio carregavam história e geralmente tinham alguém ou vários alguéns para contá-la. Fantasmas. O termo não chegava a ser errado, mas os sussurros entre as paredes e os sonhos que induziam tinham pouco a ver com a imagem de espíritos translúcidos e ululantes que os humanos haviam idealizado. Eram ecos de vozes, canções e lamentos que a antiguidade daquela construção absorvera com o passar dos séculos. Enquanto bruxos tinham mais facilidade em ouvir e em aceitar os murmúrios dos antigos, os sem magia no sangue decidiam renomear os sussurros como rangidos de portas velhas e zunido do vento em frestas de janela, mas eles também podiam ouvir. Só escolhiam fingir que não podiam.

Depois de mais alguns minutos caminhando em silêncio, Nikolai finalmente avistou o imponente quartel de treinamento dos caçadores, separado do palácio por metros e metros de jardins, labirintos e, possivelmente, uma cerca em algum lugar que o bruxo não era capaz de avistar de longe. Mesmo distante, Nikolai conseguia ver a figura de Catherina, em uma posição clara de impaciência.

Trocou um rápido olhar com Aberash, e continuaram andando no mesmo passo tranquilo antes, como se nada tivesse acontecido. E não havia de fato: aquilo fora apenas um aviso de que era hora de Nikolai vestir de uma vez o personagem que viera construindo nos últimos dias, com um esmero que dedicara a poucas coisas.

Repassou a história em sua cabeça, e ela lhe veio fluída e naturalmente. Guardou algumas características de sua personalidade em um canto e trouxe outras para o centro da atenção: alimentou o ódio que tinha no peito desde que entendera seu lugar no mundo, subvertendo-o por completo. Engoliu a arrogância e acalmou o sarcasmo, trazendo de dentro de si uma seriedade dura que pouco usava. Se fizesse um esforço conseguia até se convencer que o frio em seu estômago era de ansiedade por estar dando seus primeiros passos em sua carreira de caçador, não o medo e a raiva surda que tudo o que um caçador lhe trazia.

Quando chegaram perto o suficiente para que Catherina o enxergasse com clareza, Nikolai viu sua postura endurecer, e havia um quê de choque em seus olhos. A única coisa a impedindo de saltar sobre Nikolai e o imobilizar no chão era Aberash e a cantora, se tinha consciência disso, fazia um excelente trabalho em não demonstrá-lo.

— Aberash... O que é isso? — perguntou ela, claramente se esforçando para seguir algum protocolo ali. Ainda assim, tinha a mão pousada sobre o cabo da espada em seu cinto.

— Isso se chama Leonid Ayres e deseja se juntar à Caçada. Nos encontramos em Loye quando eu estava voltando dos encontros com as selecionadas, e aceitei trazê-lo comigo — respondeu a bruxa com simplicidade, e Catherina passou uns bons segundos encarando-a antes de dizer alguma coisa.

— Chega a ser cômico o tanto com que ele se parece com um bruxo que me deu um trabalho bem particular um tempo atrás — disse, a voz ganhando uma suavidade perigosa enquanto ela se aproximava de Nikolai, a mão ainda no punho da espada — Não imaginei que existiria alguém sagaz o suficiente para lhe enganar, Aberash, mas existe uma primeira vez para tudo. Então, que mentira ele lhe contou? Afora o nome, claro, que eu me lembre seu nome era Nikolai até um mês e meio atrás.

E, ali, Nikolai deu seu primeiro passo na construção de seu grande ato.

— Perdão, Alteza — Deus, não se lembrava da última vez que fora tão formal com alguém. Ignorou a raiva tremulando em seu peito e continuou — Mas não há mentira alguma. A senhorita Tigist sabia de todas as minhas intenções ao me trazer para o palácio.

Tudo o que dissera era a verdade mais pura, e até Catherina poderia reconhecer isso. Não que esse fato tivesse diminuído a raiva que ela tentava aplacar, mas se mostrava em seus olhos.

— Ah, é? E qual seriam essas intenções, Leonid? — o tom debochado mandava a mensagem clara de que ela não estava comprando a história. Nikolai e Aberash mal haviam começado a contar aquela grande mentira, porém.

— Vingança. — disse, como se não soubesse que Catherina interpretaria aquilo como a prova de que precisava. Com a inocência de quem, de fato, não sabia — Meu irmão partiu minha família no meio e eu quero que ele pague por isso. A Caçada me pareceu a melhor maneira legal de fazê-lo.

— Seu irmão... — Nikolai viu Catherina respirar fundo, e, para seu alívio, alguma dúvida ser instalada em sua expressão — Nikolai é seu irmão. Gêmeo, suponho.

— Exatamente, Alteza.

Ela se calou novamente, os olhos fixados em Nikolai, analisando-o de cima a baixo. Sem mudar um milímetro de sua expressão, ele agradecia Aberash e sua perspicácia. Porque ele sabia que, quanto mais Catherina lhe o observasse, mais ela teria a sensação de que havia alguma coisa fora do lugar. E era disso que ele precisava.

— Se é assim, precisarei que faça um teste antes de permitir sua entrada na Caçada — ela olhou para Aberash, como se pesando a confiança que tinha na amiga contra seus próprios instintos.

— Como quiser, Alteza — respondeu Nikolai, com a tranquilidade de quem não tinha o que temer, e seguiu Catherina até o interior do quartel.

Catherina e Aberash seguiam alguns passos à frente, conversando em voz baixa e com rapidez, e lançando olhares cuidadosos para Nikolai por cima do ombro com frequência. Se se concentrasse, ele conseguia ouvir pedaços do que diziam, como Catherina narrando seu embate com Nikolai semanas antes, e Aberash contando detalhe por detalhe sua história inventada sobre como conhecera Leonid. Não se esforçava muito para ouvir a conversa das duas, porém. Procurava se concentrar em passar no teste que Catherina iria lhe impor, sua prova de fogo.

(***)

A conversa com Aberash devia ter ajudado, pois o olhar de Catherina agora era menos duro e mais duvidoso, mas Nikolai não se permitia relaxar. Parado no centro de uma sala ampla que deveria ser usada para treinos, ele esperava, pacientemente por fora e quase explodindo de impaciência por dentro, por Catherina e seu teste. Aberash estava sentada em um canto da sala, e parecia em perfeito estado de calmaria. Seus olhos, porém, eram firmes e atentos, em um incentivo silencioso para que Nikolai não cedesse. Ele buscava atender ao pedido dela se lembrando do que ela havia lhe recitado várias e várias vezes no dia anterior:

“— Existem basicamente três métodos usados pela Caçada para expor um bruxo. Do primeiro deles é possível se escapar com um pouco de lábia. O segundo, apesar de efetivo, pode ser contornado por um bruxo experiente. O último é brutal e praticamente impossível de evitar, mas causa destruição, então é pouco usado.

O primeiro consiste em embriagar o bruxo, uma vez que é fácil perder controle da magia bêbado, e cercá-lo com fontes básicas dos quatro elementos. Embriagado, o bruxo tem mais chances de ceder ao instinto magnético que seu elemento de domínio causa. Qualquer bruxo com um pouco de prática seria capaz de precaver-se numa situação dessas, concentrando-se no elemento oposto ao seu para calar a magia, mas sempre há os que caem na armadilha. Normalmente usam essa artimanha em eventos sociais, quando o suspeito é uma pessoa influente.

O segundo método consiste em sedar o possível bruxo, e procurar conduzir sua mente a usar a dominação. Os caçadores descobriram como usar certos padrões de som e sentido que se assemelhem com a conexão que um bruxo tem com seu elemento, provavelmente receberam a informação de algum bruxo, por coerção ou espontânea vontade, não há como ter certeza. Inconsciente, há muito pouco que o bruxo possa fazer para conter sua magia se ela começar a responder aos estímulos que lhe são dados. Há bruxos tão experientes no jogo mental que seriam capazes de suprimir seus instintos e calar a magia, porém.

O terceiro método consiste em injetar uma mistura de plantas normalmente usados em rituais mágicos no bruxo. O efeito é arrasador. Perde-se todo o controle sobre seu próprio poder, aumentado pelo efeito da injeção. É comum que os bruxos nessa situação ajam sem consciência alguma do que estão fazendo por minutos a fio, e a destruição de que são capazes dificilmente é possível de ser contida por um caçador, por isso só o usam em situações muito extremas.

Como sabe de tudo isso?

Eu já fui uma estranha a esse palácio também, Nikolai. Tive que passar por meus próprios testes, mas isso é história para outra hora. Acredito que Catherina lhe aplicará o segundo tipo de teste. Estarei lá para te dar apoio, mas grande parte do trabalho será sua. Espero que tenha treinado bem sua mente nos últimos anos.”

Sinceramente, ele também esperava.

Catherina voltou com uma maleta nas mãos e uma cadeira. Mandou que Nikolai se sentasse, e abriu a mala, revelando uma seringa prateada e fina, e mais um monte de coisas que ele não foi capaz de reconhecer. Sentiu um alívio breve ao perceber que o líquido na seringa era amarelado. Aberash lhe garantira que a mistura usada no terceiro método era perfeitamente incolor, o que, na situação em que ele estava, já era um pequeno consolo.

Catherina lhe pediu que estendesse o antebraço, e Nikolai sentiu a picada gelada da agulha na pele, sendo arrastado para a inconsciência segundos depois.

O primeiro som que ouviu lhe lembrava o vento suave que costumava deixar entrar por sua janela no fim de tarde. Era quase como um tilintar, um sino com o som mais suave que ele já escutara. Mas isso era tudo. O som lhe trazia lembranças e até algum conforto, mas não causava o mínimo movimento em sua magia.

Depois, sentiu um calor se apossar de todo o corpo. Do mesmo tipo de quando se coloca a mão alguns centímetros acima de uma vela, num calor bruxuleante que variava entre morno e quase quente o suficiente para queimar. Mas isso era tudo.

O que veio depois foi uma avalanche, e Nikolai forçou sua mente a lutar contra aquilo, ciente de que aquela era sua provação. Era como se cada um de seus sentidos estivesse em polvorosa: sentia cheiro de terra úmida, gosto de metal no céu da boca, a sensação áspera de pedra na ponta dos dedos, o rugido da terra rachando em seus ouvidos e a imagem uma floresta colossal fixada diante de seus olhos. Se não fosse aquela situação esdrúxula, poderia até achar a experiência bonita, mas não tinha tempo para isso. Sentia como se fosse puxado a todo instante para todo lado enquanto reprimia sua magia que tentava responder ao chamado que lhe era dado. A dor de fazer aquilo era quase física, mas ele continuava.

E de repente o terremoto de sensações se esvaiu, e tudo o que Nikolai ouvia era o murmúrio de água corrente, tal qual o riacho que corria perto da casa de sua primeira namorada.

Nikolai abriu os olhos, um pouco tonto, mas sentindo-se vitorioso. Catherina, à sua frente, guardava os objetos na maleta novamente. Ele arriscou um olhar para Aberash, que lhe sorria com os olhos. Conseguira. Conseguira de verdade.

Catherina esperou que Nikolai levantasse, e o analisou por mais alguns segundos antes de falar, finalmente, com um tom que beirava o desapontamento. Nikolai mal podia imaginar o quão confusa a czarevna deveria estar se sentindo, e quase teve pena dela. Quase.

— Bem-vindo à Caçada, Leonid.