"Notícias com muitas explicações são sempre más notícias."

Raphael Draccon _ Dragões de Éter, Caçadores de Bruxas.

Alguém disse uma vez que há pessoas que nascem para se tornarem história. Há pessoas que vêm ao mundo para gerar espanto, ser o assunto dos contos que o vento murmura nas noites de verão, para causarem descrença e o revirar de olhos de pessoas que se recusam a acreditar em narrativas tão mirabolantes que parecem mentira, por mais que sejam pura verdade.

Aleksei Kostroma já prometia ser uma dessas pessoas-história desde antes de chegar ao mundo. Os criados do Palácio gostavam de contar sobre aquela noite de março, comentando baixinho sobre as coisas fora do comum naquela madrugada. E a parte interessante é que os boatos passavam bem perto da verdade.

Vinte e quatro de março, quase duas e meia da manhã. O Palácio se encontrava em plena atividade, apesar da hora avançada. Há exatas oito horas a Czarina daquela nação, Yeva Kostroma, havia entrado em trabalho de parto. Yeva passava por complicações e até mesmo nos olhos do médico que conduzia o parto, um profissional extremamente capaz, era possível ver apreensão. O Czar, Damian, perdera sua compostura de monarca há muitas horas, rendido à preocupação que parecia a ponto de devorar seu coração.

No momento em que Aleksei nasceu, cada pessoa acordada naquele Palácio soltou um suspiro de alívio. Porque, como um dos médicos prometeu a um Damian ansioso, a Czarina ficaria bem e, a partir daquele instante, Aldan finalmente tinha um herdeiro.

Mas muitas coisas mais aconteceram no instante em que o czareviche teve seu primeiro contato com esse mundo. E eram sobre essas coisas que as pessoas gostavam de sussurrar.

Naquela madrugada, o vento soprava com uma força descomunal, o assobio que fazia ao passar pelas frestas de janelas e portas do palácio assemelhava-se a um uivo melancólico e incessante. Mais de vinte funcionários juraram ter ouvido um burburinho de vozes pelos corredores do Palácio. Talvez fosse o vento enganando seus ouvidos, mas, como já foi dito, naquela noite o vento era o som de uma fera, e o que as pessoas ouviram foram vozes, conversas e pedaços de histórias tão antigas quanto os carvalhos ancestrais que habitavam a floresta aos fundos do castelo.

Naquela noite, nas províncias, muitos plebeus presenciaram movimentações estranhas. Caçadores relataram um inquietante silêncio nas florestas, os animais noturnos, predadores dos quais qualquer um preferia manter distância, pareciam envoltos num transe, completamente alheios ao seu redor. Como se ouvindo algo que os ouvidos humanos não eram capazes de captar. Nenhum caçador sentiu-se corajoso o suficiente para abater aquelas feras atipicamente indefesas e contemplativas.

Naquela noite, porém, aconteceram coisas que nem o mais criativo dos boatos conseguiu alcançar. Como as canções entoadas no fundo das florestas, marcando o renascimento de algo que juravam há muito estar acabado. Ou o riso rouco de uma anciã que há muito tempo previra o que começava naquela madrugada.

E pensar que tudo isso acontecia orquestrado por um garotinho que mal respirara pela primeira vez.

*

— Alek? Eu sei que xadrez é um jogo estratégico e tal, mas já faz cinco minutos que você está pensando.

Aleksei piscou, despertando de seu transe. Catherina mirava-o pacientemente, acostumada às “saídas do ar” do irmão. O que a preocupava era o fato de estarem se tornando constantes.

— Desculpe, me distraí – “jura?” pensou ela. Os olhos dele ainda estava fora de foco enquanto ele fazia sua jogada.

— Já é a terceira vez que você faz isso só hoje, Alek – começou Cat, movendo seu bispo – O que você tem ultimamente?

Catherina observou o irmão mais velho suspirar, cansado. Ela obviamente reparara nas olheiras que ele cultivara nos últimos dias, porém tinham pouquíssimos momentos como aquele, em que podiam conversar sem interrupções. Afinal, ela era Catherina, A Caçadora, e seu irmão era Aleksei Kostroma, o czareviche daquela nação. Tempo livre e juntos era quase um milagre para os dois.

—É você quem anda pelas ruas todos os dias, Cat. – respondeu ele, seco.

— Os ataques? – perguntou a garota. – Não é tão ruim, Aleksei – mentiu.

— Não é tão ruim? Pra cima de mim não, Catherina. – disse, perdendo a paciência – O país inteiro está movimentando-se para uma guerra civil, já começaram a ocorrer mortes e você acha que essa tentativa ridícula de me dizer que está tudo bem vai me acalmar?

Grosso. Cat tinha de admitir que o que dissera fora qualquer coisa menos inteligente, era uma péssima mentirosa, mas o tom ríspido do irmão a irritou profundamente.

— O que você quer ouvir, então? – prometera ao pai que não falaria nada, mas a promessa ia sumindo em sua mente à medida que a irritação crescia – A verdade? Pois bem. As pessoas estão se armando para a guerra. Os Círculos de Bruxaria estão aumentando, há pelo menos um em cada cidade. Ouvi que estão recrutando crianças com inclinação à magia, e as famílias não mostram oposição nenhuma a isso. Os líderes de Igrejas estão formando pequenos exércitos de fiéis ou ao menos cedendo suas paróquias para encontros de grupos de Caçadores não autorizados. Na última semana houve pelo menos quatro relatos de queima em praça pública de pessoas que foram acusadas de bruxaria... Duas eram inocentes. As pessoas não aguentam esperar que o exército chegue para fazer o julgamento primeiro. É, não está tudo bem.

Alek levantou-se abruptamente da cadeira, abrindo a janela da sala e agarrando o batente da mesma, ainda que nevasse do lado de fora. Durante todo seu relato, a czarevna pudera ver a expressão no rosto de Alek se endurecendo, fechando-se para esconder qualquer emoção que estivesse fervendo dentro do peito dele. Catherina podia ver as mãos do irmão tremendo, provavelmente de raiva. Aleksei perdia o controle fácil, mas a garota não se arrependia de ter contado, ao menos não muito. Que tipo de Czar ele seria se não soubesse exatamente o que acontecia em seu país? O pai dos dois tinha que parar de proteger o primogênito do mundo em que viviam.

*

Aleksei sentia suas emoções saindo de controle, um pouco mais e aquilo ia acordar. Não podia explodir agora, não tinha o direito, fora ele quem provocara Catherina para receber uma informação verdadeira. O esforço que fazia para se acalmar era quase físico. Respirou fundo uma, duas, três vezes. Não podia deixar aquela coisa acordar, não naquele momento, nem nunca.

Seus pensamentos giravam descontrolados em sua cabeça. Uma raiva fervente do pai por não lhe contar a real situação do país se misturava com uma preocupação que parecia que iria sufocá-lo. Sabia o quão descontrolado tudo estava, mas e daí? As pessoas estavam se vendendo a discursos fervorosos de padres ou entregando-se aos Círculos de Bruxaria, tudo começava a se tornar extremo. E, quanto mais as pessoas se voltassem para os limites, mais rápido a frágil balança que era a paz em Aldan penderia para um lado, ou, pior, se quebraria no meio.

Tentou pôr as ideias em ordem, usando a técnica antiga que sempre funcionava: respirou profundamente uma vez e enfileirou todos os sentimentos emergindo em seu interior: raiva, desespero, confusão e mais medo do que gostaria de admitir. Respirou profundamente uma segunda vez, e concentrou-se em guardar cada um desses sentimentos em um cantinho de sua mente, em uma caixa imaginária muito bem trancada. Na terceira respiração profunda, já conseguia sentir seus músculos tensionados relaxando.

Alek percebeu que estava acalmando-se, para seu alívio. A fera adormecida que escondia no fundo de seu ser não despertara. Devagar, o czarevich fechou as janelas e sentou-se novamente à frente da irmã. Catherina o observava calada, uma tênue preocupação em seus olhos. Sentiu-se um tanto incomodado pelo olhar fixo da irmã. Tomou coragem para perguntar a questão que estava na ponta de sua língua, só não queria verbalizá-la porque tinha certeza de que Cat sabia a resposta. Até ele sabia. Só não tinha certeza de que queria ouví-la.

— Por que o pai escondeu isso tudo? Eu estou lidando com questões de Estado desde que consigo me lembrar, e acho que já provei uma dezena de vezes que consigo muito bem tomar as decisões certas. Qual o problema dele?

— Papai está morrendo de medo, Alek. – o czareviche percebeu o quão aliviada a irmã estava por poder conversar e quebrar aquele clima esquisito que se instalara na sala por culpa dele – Se essa guerra estourar, as pessoas não vão esperar somente atitudes do Czar Damian Kostroma. Vão esperar atitudes de Ivan Medvedev, o grande matador de bruxas. Papai não sabe segurar uma espada, mal e mal sabe atirar, mas é ele quem vai mover exércitos. Foi ele quem presenciou cada queima de bruxas quando nem você nem eu tínhamos idade para isso. Ele quer poupar todos nós do peso que as histórias dos nossos antepassados representam.

Aleksei suspirou, contrariado, ao perceber a raiva do pai sumindo. Queria muito continuar irritado, não simpatizar-se com as dificuldades dele. Pura teimosia, mas era assim desde pequeno, não mudaria tão cedo. Mas soubera que essa era a resposta, soubera desde o princípio das intenções nobres do pai. A questão era que ele sabia muito bem que a linha entre nobreza e risco era tênue.

—Só para te confortar – disse Catherina, despertando a atenção de Alek – só sei disso tudo porque desobedeci as ordens dele e saí da rota que deveria ter seguido na patrulha pela cidade, além de ter mexido em uns arquivos. Você devia fazer isso também, se ele continuar a te negar informação.

— Pode apostar que vou fazer isso, eu sei onde ele guarda a chave da sala de controle – Catherina riu. Não era nada surpreendente que Aleksei soubesse exatamente como burlar algumas regras – E como andam as caçadas, Cat?

O rosto de Catherina se iluminou um pouco. A czarevna era a melhor Caçadora de sua geração, por isso se tornara a líder dos Caçadores e vice-comandante do Exército, mesmo sendo tão jovem. O trabalho da irmã mais nova de Aleksei não era fácil ou leve, mas Cat gostava de falar nele, pois era no que era boa, no que punha toda a alma.

— O número de denúncias alertando sobre bruxos e bruxas têm aumentado, e a maioria agora é verdadeira, então tenho muito trabalho. Os bruxos estão mais atentos, está cada vez mais difícil encontrá-los. E parece que estão todos mais radicais, prontos para morrer pela “causa”. Posso contar nos dedos quantos concordaram em dar alguma informação útil nesses últimos meses.

Alek soltou um riso curto e sem humor. Há anos tentavam descobrir o que diabos era “a causa”, mas parecia impossível. A melhor teoria que tinham era que queriam tomar o poder, mas o número reduzido de ataques que o palácio sofrera vindo dos usuários de magia tornava essa ideia duvidosa.

— Vai tudo de mal a pior. – reclamou Aleksei, suspirando e continuando o jogo de xadrez dos dois.

— Milagres acontecem, quem sabe papai não está nesse exato momento entrando em contato com o exército extra que ele tem na Nova Ásia?

— Muito engraçado. Mas espero que o senhor nosso pai realmente esteja pensando em alguma coisa, se fez tanta questão de não me pedir ajuda.

A garota deu de ombros, e voltou a encarar o tabuleiro, para depois abrir um sorriso vitorioso.

— Xeque-mate – anunciou a garota, e o czareviche perguntou-se como deixara Catherina ganhar daquele jeito. No mesmo instante, alguém bateu na porta, abrindo-a logo depois. Uma criada com um semblante ansioso entrou, desculpando-se rapidamente pela entrada abrupta.

— Vossa Alteza, o Czar deseja vê-lo. – disse ela.

Aleksei e Catherina trocaram um olhar, ambos intrigados. A atitude ansiosa da criada era prova da urgência do chamado. O czareviche levantou-se e dirigiu-se rapidamente para o escritório do pai.

*

Alek não conseguia acreditar no que estava ouvindo, não podia ser sério. Imaginou se não tinha escutado mal.

— Como é?

— Uma Seleção, Aleksei. – repetiu o Czar, e sua expressão não poderia estar mais séria.