“The price of your greed

Is your son and your daughter

What you gon' do

When there's blood in the water”

Blood//Water — Grandson

Yeva não passava mais tanto tempo em casa. Com o fim do colégio, decidira tirar um ano para decidir o que diabos ia fazer com sua vida. Talvez o mais indicado fosse usar aquele tempo para viajar ou fazer muita auto-reflexão, mas ela se incomodava com a ideia de ficar tão à toa. Arrumou um emprego na floricultura do centro da cidade, uma das maiores de Elista, e passava a maior parte de seu dia ali. Continuava dizendo a si mesma que não fizera com esse propósito, mas ter algum distanciamento de Luka lhe aliviava um pouco.

O menino não começara a frequentar o coven no último ano. Os pais deles tinham decidido ir colocando em prática os exercícios básicos que o bruxo que os visitara tinha ensinado. Não tinham tempo de sobra para acompanhar o filho nas reuniões, e eram terminantemente contra que ele fosse sozinho. Yeva nunca se voluntariou a ir, e eles nunca pediram, ainda bem. Assim que as férias chegassem levariam Luka à sua primeira reunião, mas não parecia haver necessidade de pressa, ele estava lidando bem com a coisa toda.

Se isso em parte acalmava Yeva, também tornava mais difícil para falar com qualquer um sobre seus medos. E levar a questão para qualquer um fora de sua família estava fora de cogitação.

Foi no meio dessa estabilidade relativa que o convite chegou. A família real organizaria um de seus grandes bailes, uma festa em comemoração da primavera, e a floricultura em que Yeva trabalhava tinha um histórico de ser contratada pela realeza nesses eventos. Isso explicava o processo de seleção estranhamente estrito da loja, além do grande número de pessoas que se candidatava ao emprego toda vez que alguma vaga abria. Yeva quase tinha desistido de tentar trabalhar ali por isso, mas o salário era bom demais para nem tentar. E, bem, quase um ano depois, não poderia estar mais feliz por ter persistido.

A ideia de entrar no palácio ainda era absurda para sua cabeça. Claro, não tinha um convite para comparecer ao baile - este era estendido somente à dona da floricultura como cortesia, e a um acompanhante de sua escolha -, mas poderia ter um vislumbre da morada real durante o tempo em que entregaria e ajudaria a organizar os ornamentos, o que já lhe parecia muito. Um respiro inesperado da vida meio tensa que andava levando.

Também lhe parecia um sinal de que tinha escolhido um caminho certo, de algum jeito. Era muito boa no que fazia, sabendo organizar a multitude de flores da loja, recuperar as plantas mais murchas e ter uma visão de ambientação que costumava agradar aos clientes e, melhor ainda, ao seu superior. Parecia que conseguiria tirar uma carreira daquilo tudo. Sua competência fora o motivo de ter sido escolhida para ir ao palácio, no fim das contas.

Tinha prometido que contaria todos os detalhes quando voltasse para casa. Sua família estava tão empolgada quanto ela com a oportunidade, Luka especialmente. Ele tinha pulado em seu colo, em um abraço de despedida prolongado. Ela tinha percebido, com remorso, que não abraçava o menino há um tempo.

Tinha passado a viagem até a capital pensando nisso. Não tinha certeza sobre o restante dos bruxos no mundo, mas seu irmão mais novo não tinha feito mal a ninguém. Tinha que admitir para si mesma que seu medo era cada vez mais infundado e, talvez, que era hora de parar com aquilo, ou pelo menos trabalhar ativamente para calar as afirmações taxativas de sua antiga professora, que ressoavam com frequência em sua cabeça.

Depois de chegarem ao palácio, porém, não houve tempo para gastar com suas divagações. O problema de se trabalhar com flores, ainda mais em um evento tão grande, era o tempo curto para colocar tudo em ordem. Para piorar, pelo que Yeva tinha percebido nos últimos meses, pareciam chegar sempre na hora mais caótica da organização. Que bom que não se abalava com gente estranha gritando com ela.

As coisas seguiram bem, apesar do movimento constante de funcionários e o estresse palpável no ar. De fato, já estavam se preparando para ir embora - e debatendo entre si se valeria a pena encarar as cinco horas e meia de estrada naquele dia mesmo ou esperar até a manhã do dia seguinte - quando Yeva recebeu uma ligação de seu chefe.

— Vocês já saíram da cidade? — a pergunta veio antes mesmo de Yeva completar a saudação ao seu superior.

— Ainda não, acabamos de guardar as últimas caixas nos carros. Por que, tem algum problema? — o tom de voz do homem transmitia tanto nervosismo quanto irritação, o que não era comum. Será que tinham trazido as flores erradas ou algo do tipo? Tinha conferido o carregamento tantas vezes que a possibilidade disso era quase nula, mas…

— Madame Bardin precisa de uma acompanhante — respondeu ele, seco — Estou escalando você para essa função.

— Mas… Mas não era a neta dela que ia fazer isso? — de todos os absurdos da situação, esse foi o primeiro que ela conseguiu apontar.

— O voo da Daria foi cancelado, ela só chega amanhã — ela o escutou resmungar algo sobre “fazer as coisas em cima da hora” — De todos da equipe que está aí, você é quem a madame melhor conhece, e você sabe como ela detesta ter que lidar com estranhos — percebendo o silêncio dela, ele deu uma risada, num vislumbre de seu humor normal — Vai me dizer que não quer ir ao baile?

— É lógico que eu quero! — respondeu, finalmente se sentindo um pouco animada apesar do choque — Foi uma decisão muito repentina, só isso. A que horas ela chega?

— Às sete, devem passar para te buscar às sete e meia, vou mandar a localização do ponto de encontro.

— Ok. Alguma instrução especial?

— Arrume um par de saltos altos e um kit de costura, você vai usar o vestido que Daria tinha escolhido para usar hoje — ela riu de nervoso, consciente que não conhecia um palmo daquela cidade. E que o vestido da outra provavelmente era mais caro do que todas as roupas de Yeva juntas. Socorro — E aja como se o seu e o meu emprego dependessem do seu comportamento, porque eles dependem.

— Prometo não nos fazer ser demitidos, Santiago — disse, e ouviu ele desligar. Tinha exatas duas horas para ficar pronta para o baile e nem sabia por onde começar.

*

Foi só dentro do salão de baile, que parecia outro depois da chegada da noite, que Yeva realmente caiu em si e percebeu onde estava, o absurdo maravilhoso que era aquilo.

Da correria para arrumar sapatos e linha e agulha, entre a empolgação de parte dos colegas e o olhar cheio de inveja de outros, até o encontro com madame Bardin, que fora repleto de reclamações por não poder levar a neta como acompanhante, Yeva não tivera tempo para pensar em outra coisa além de resolver a situação em que estava metida. Só podia agradecer por sempre ter sido tão educada com a dona da floricultura todas as vezes em que ela aparecia por lá, porque, mesmo de mau humor, a senhora admitiu que Yeva não seria uma acompanhante tão ruim. Isso sem deixar de apontar, claro, que era quase um crime fazer ajustes no vestido caro de Daria para que coubesse em Yeva. Depois de segurar aquele tecido fino nas mãos, Yeva quase concordou com ela.

Tinha sido um tanto engraçado, ser confundida com Daria tantas vezes. A neta de sua superior era mais alta e mais curvilínea que Yeva, mas, aparentemente, estar ao lado de madame Bardin e ter cabelos castanhos era o suficiente para causar confusão. E, claro, a máscara ajudava no mal entendido. Durante o percurso da entrada do palácio até o salão, Yeva tivera que corrigir uma dúzia de convidados sobre quem era, tanto que, depois de um tempo, madame Bardin já começava os cumprimentos a apresentando, em um tom levemente irritado.

— É o suficiente, pode me deixar sozinha — disse a senhora, depois de Yeva tê-la levado até uma mesa com pessoas que ela conhecia. Revirou os olhos quando a moça não foi embora, incerta do que fazer — Você acha mesmo que Daria ia ficar o baile inteiro do meu lado, como um cachorrinho? Vai, mando lhe chamarem quando precisar.

Yeva decidiu não discutir, saindo de perto da mesa em questão. Sabia muito bem que teria que ficar por perto, atenta a madame Bardin e aos seus possíveis pedidos, mas teria liberdade o suficiente.

Foi nesse momento, observando os casais dançando no meio do salão, que Yeva ficou realmente empolgada com a dimensão da oportunidade que era aquilo. Não era um grande exagero chamar aquilo de conto de fadas. Estava vestindo a roupa mais bonita a que já tivera acesso na vida, no meio da realeza. Mesmo que passasse a noite andando pelos cantos do salão, só observando a festividade, ainda era mais do que jamais esperara. Naquela noite, porém, parecia que não só assistiria de longe as coisas acontecendo:

— Faz quase um ano que madame Bardin não vinha a um dos bailes — um homem alto, usando uma máscara que cobria quase seu rosto inteiro, disse, postando-se ao lado de Yeva — Por isso tanta atenção voltada a ela.

Yeva riu, o que provavelmente não era a resposta que ele esperava. Não pôde evitar, porém. Justamente na vez que a senhora decidia voltar a frequentar os bailes reais, era obrigada a ser acompanhada por uma funcionária sua.

— É uma pena que não tenha podido trazer a neta, então — disse Yeva, imaginando que o homem estava ali por mais um mal entendido — Não sou ela, aliás.

— Eu sei — ele abriu riu um pouco — Daria Bardin não costumava ficar nos cantos do salão.

— Ah — Yeva não sabia muito bem o que responder. Seria muito rude perguntar por que estava falando com ela, mas estava a ponto de fazê-lo quando ele respondeu a questão antes mesmo de ela abrir a boca.

— Fiquei curioso para saber quem a exigente sra. Bardin trouxe no lugar da neta. Daria certamente não abriria mão de seu convite sem um bom motivo.

— Sinto desapontar, mas foi tudo uma grande coincidência, para o azar de madame Bardin — Yeva percebia agora que os olhos se voltavam em sua direção, vez ou outra. Talvez explicar a situação para aquele estranho dissolvesse os rumores, então assim o fez. No fim, lembrou que não tinha se apresentado direito — Meu nome é Yeva Moskvin, provavelmente a florista mais sortuda de Elista neste momento.

— Tenho que concordar, é preciso muita sorte para tantas coisas se alinharem ao seu favor — disse ele, rindo, e, para a surpresa de Yeva, ao invés de encerrar a conversa, continuou o assunto — Você fez um belo trabalho com as flores no salão.

— Não fui só eu, mas muito obrigada — respondeu ela, abrindo um sorriso orgulhoso. Tinha que admitir que aquele era um de seus melhores trabalhos — Madame Bardin criou um jeito muito único de lidar com as flores, acho que é difícil criar algo ruim com a influência dela.

— Sou completamente iletrado na arte da floricultura, para mim parece tudo igual — respondeu ele, dando de ombros — Muito bonito, mas igual.

— Se eu fosse você, não repetiria tamanha blasfêmia perto dela — brincou Yeva, apontado para sua superior — A diferença tem a ver com a forma das guirlandas, o jeito de colher e transportar as flores… Enfim, duvido que você realmente queira saber sobre isso.

— Na realidade, não acharia ruim — disse ele, convidando-a para sentar em um dos bancos em uma das sacadas — Ando precisando de alguma novidade nos tópicos das minhas conversas.

Yeva duvidou um pouco da veracidade daquela declaração, mas aceitou o convite. Quando percebeu, já tinha se empolgado e ficou tagarelando sobre as coisas que tinha aprendido na floricultura. A parte boa é que seu ouvinte não mentira sobre seu interesse, e, vez ou outra, comparava algo que Yeva dizia com algum aspecto da pintura, e ele parecia tão empolgado quanto ela quando falava. Sabe-se lá quanto tempo passaram naquela sacada, e provavelmente teriam ficado mais se não tivessem sido interrompidos por um jovem nobre:

— Vossa Alteza, finalmente — disse ele, e Yeva sentiu o coração falhar uma batida. O czareviche? Era com ele que estivera falando de forma tão informal? — A Czarina gostaria de vê-lo.

— Um instante, já irei encontrá-la — o rapaz assentiu, e deixou os dois sozinhos de novo.

Yeva não sabia como agir. Imaginou que ele não estava ofendido, teria a corrigido logo no começo da conversa se estivesse. Pensando bem, parecia ter evitado de propósito mostrar quem era. Mesmo assim, não sabia o que ele iria fazer agora, o que pediria dela.

— Imagino que esteja um pouco chocada — disse, abrindo um sorriso sem graça. “Pouco é eufemismo”, pensou ela — Não era minha intenção te enganar ou nada do tipo, mas… A possibilidade de ser anônimo foi interessante demais para recusar. Desculpe.

— Deveria ser eu pedindo desculpas, Vossa Alteza — respondeu ela, sem jeito.

— Damian — disse ele, firme — Não precisa se preocupar com formalidade.

— É um pouco difícil, Voss- Damian — respondeu ela, e acabou rindo um pouco de seu tropeço — Deve saber o efeito que a realeza tem nas pessoas.

— Sei bem — ele abriu um pequeno sorriso — Enfim. Seria abusar muito de sua boa vontade lhe pedir para dançar comigo? Não devo demorar muito na conversa com minha mãe.

Antes que ela pudesse se livrar da surpresa que aquela proposta tinha lhe causado e responder, foram interrompidos mais uma vez.

— Ah, aleluia — a moça, possivelmente uma criada, parecia nervosa. Ficou ainda mais atrapalhada ao perceber a presença do czareviche, fazendo uma reverência antes de continuar — Senhorita, madame Bardin está lhe procurando.

Yeva sentiu-se sendo puxada para a realidade, e uma realidade muito caótica, diga-se de passagem. O senso de calma que tivera até o momento conversando com Damian se esvaiu diante da burrice de ter deixado madame Bardin esperando por vários minutos. Só podia rezar para a conversa com os amigos ter melhorado o humor dela.

— Estou indo — disse para a criada, e virou-se para Damian, tentando não transparecer a pressa que sentia — Acho que não terei tempo para uma dança… Mas, se faz alguma diferença, eu teria aceitado.

— Eu entendo. Acho que não nos veremos mais, então — ele segurou a mão direita dela, e deu um beijo rápido no dorso. Yeva sentiu o corpo inteiro ficar quente — Obrigado pela companhia. Você disse que teve muita sorte hoje, mas acho que o sortudo aqui fui eu.

Ele lhe ofereceu um sorriso final antes de se afastar dela e se misturar na multidão. Yeva precisou de alguns segundos para fazer o mesmo, e, ainda assim, quando encontrou madame Bardin, ela lhe perguntou porque a garota estava tão vermelha.

*

Yeva estava pronta para encarar a noite do baile como um pequeno momento espetacular de sua vida, em que um príncipe tinha conversado com ela durante todo seu tempo lá, aparentemente encantado com ela, mas que fora somente isso: um momento. De fato, de volta ao trabalho na segunda-feira, a magnitude do palácio era uma realidade completamente distante da sua, e se via tendo que convencer a si mesma para parar de sonhar acordada com aquilo tudo, quando Santiago lhe chamou para conversar. O medo de ser uma reprimenda passou quando ela viu o tamanho do sorriso dele.

— Eu não sei o que você fez naquele baile, — começou ele, indicando que ela sentasse na cadeira em frente sua mesa de trabalho — mas o que quer que tenha sido, deu certo. Conseguimos um contrato de longo prazo com a família real.

Yeva não conseguiu se impedir de ficar com a boca aberta, numa caricatura de alguém surpreso. Como qualquer coisa que tinha feito poderia ter gerado aquilo?

— Não que eu não esteja feliz com a notícia… Mas como eu posso ter causado isso?

— Eu sei, também me perguntei a mesma coisa — ela não via o chefe tão feliz há um tempo. Quanto dinheiro iam ganhar com esse contrato? — O pedido veio diretamente da Czarina. Acreditamos, a princípio, que madame Bardin tinha lhe comprado com alguma conversa, mas, segundo ela, somente cumprimentou Sua Alteza. E, bem, acho que você sabe muito bem com quem conversou naquela noite.

Yeva sentiu o rosto esquentar à menção de Damian. Era bem verdade que só tinha tagarelado sobre seu trabalho o tempo todo, mas não pensou que isso fosse ter qualquer consequência.

— Então Da- o czareviche falou da floricultura para a Czarina?

— Exatamente. Ela disse já gostar muito do trabalho que fazemos, e os comentários dele foram o que faltava para ela tomar a decisão de nos contratar — ele entregou algumas folhas de papel para Yeva, o calendários dos eventos — Começamos daqui duas semanas. Você, obviamente, fará parte da equipe.

— Ah, vão comemorar o Festival de Primavera inteiro esse ano — comentou ela, lendo quais seriam os eventos pelo próximo mês para se acalmar um pouco. Que reviravolta absurda — Por quê?

— Não sabemos ao certo, mas várias comitivas reais de outros países virão — ele baixou o tom de voz, como se fosse contar um segredo — Há rumores de que o czareviche escolherá uma noiva durante o Festival. Nada confirmado, mas faz sentido, ele está na idade disso.

— Ah — Yeva se limitou a dizer, impedindo-se de ficar decepcionada. Era a melhor oportunidade de trabalho que já tivera, tão cedo em sua carreira, deveria estar radiante. E, tinha que se lembrar, aquilo não era nenhum conto de fadas.

*

Depois de um mês no palácio, entre ir e voltar para o hotel em que estavam ficando na capital, Yeva ainda não conseguia dizer que se acostumara com o lugar. Se acostumara com a rotina de organizar as flores para os jantares, os bailes e as recepções. Se acostumara com as outras equipes de decoração e os funcionários do palácio, em uma familiaridade muito bem vinda para quem trabalhava junto o dia inteiro. Mas com a grandeza daquilo tudo, a riqueza, a beleza de cada comitiva, numa mistura cultural que Yeva achava mais incrível a cada dia, com isso ela ainda se surpreendia.

Perigosamente, porém, se acostumara em ter a companhia de Damian. No começo, não sabia o que fazer quando o czareviche vinha puxar conversa com ela em seus intervalos ou quando se encontravam nos corredores. Com o tempo e a frequência constante daqueles encontros, porém, Yeva parou de se incomodar para começar a esperar pela conversa do dia com o herdeiro. Impressionante quanto se pode conhecer sobre uma pessoa em um período tão curto.

Logo no primeiro dia, tinha percebido que ele parecia mais… Pesado. Era a melhor palavra que conseguia pensar para descrever como a postura dele estava mais composta, como parecia mais sério e, de vez em quando, preocupado. Não desgostava da mudança, de certa forma ele parecia mais humano e menos parte de um sonho bonito dessa forma. O lado ruim era que Yeva tinha muito mais chances de se apaixonar por um ser humano, com qualidades, defeitos e com um sorriso que lhe fazia derreter por dentro toda vez, do que por um sonho idealizado em sua cabeça. Não tinha certeza se ele sabia o quanto mexia com ela, e, sinceramente, morreria de vergonha antes de perguntar.

Faltando somente três dias para o encerramento do Festival, Yeva tratava aqueles últimos dias como preciosidades que levaria consigo para casa quando fosse hora de retornar a Elista. O trabalho parecia ter triplicado nesse final, mas ter feito amizade com quase todo mundo fazia a coisa toda ter mais graça - podiam rir de seu estresse ao invés de se xingarem. Assim, apesar de exausta, estava com um humor muito bom quando se sentou na escadaria que ligava o jardim dos fundos a um dos corredores “secretos” que levavam até a cozinha, se dando dez minutos necessários de descanso e silêncio.

Quando ouviu passos se aproximando pelo jardim, já se preparou para ser alguém lhe procurando para resolver algum problema de última hora, mas se surpreendeu ao ver Damian. Ele também pareceu surpreso ao vê-la, mas não fez cerimônia em mudar sua direção para chegar onde ela estava, sentando-se ao seu lado. Tentando não ficar nervosa com a proximidade dos dois - as escadas eram estreitas -, Yeva percebeu que ele parecia irritado, inquieto até.

— Se não for me intrometer demais, — começou, procurando soar delicada — aconteceu alguma coisa?

Ele deu uma risada sem humor, esfregando o rosto num sinal de frustração.

— “Alguma coisa” vem acontecendo faz quase um mês — disse seco. Ouvindo seu próprio tom duro, respirou fundo — Desculpe, você não tem nada a ver com isso… Quer dizer, tem, mas… Argh. Eu sei que não estou fazendo sentido.

— Olha, se você quiser falar, tenho tempo para ouvir — mentira. Sua pausa acabava dali exatos cinco minutos.

— Daqui a quanto tempo você tem que voltar para o salão? — perguntou ele, abrindo uma sombra de sorriso depois de adivinhar sua mentira.

— Cinco minutos — confessou, rezando para não estar tão vermelha quanto sentia que estava — Mesmo assim, ainda posso te escutar, meu intervalo é todo seu.

Ele não parecia muito certo do que fazer, mas, quando começou a falar, havia uma determinação peculiar em sua postura, como se decidisse se arriscar.

— Eu sempre soube que teria que me casar com interesses políticos. Eu nunca senti que era um fardo, fui preparado para isso a vida inteira. Parece um preço baixo a se pagar por uma vida tão confortável, não? — ele deu um sorriso sem graça, olhando para Yeva com tamanha doçura que parecia que toda a raiva tinha desaparecido de seu corpo — Isso até eu me deparar com você naquele baile, e todos os dias desde então.

Ok, não era isso que Yeva esperava, de maneira nenhuma. Sentia que não deveria estar feliz, mas estava, ao mesmo tempo que se preocupava com o fato de estar causando um conflito absurdo na família real. No meio dessa confusão, falou a única coisa que veio à à sua cabeça:

— Sinto muito…

— Quê? Não, não, por favor, não peça desculpas — ele segurou as mãos dela. Não como no dia do baile, com a delicadeza que requeria a etiqueta, mas com firmeza, como se quisesse trazê-la para mais perto — Não estou dizendo isso para te fazer sentir mal. Para ser sincero, eu nem espero que você sinta o mesmo, eu só precisava te contar… Porque aí, talvez, eu tenha alguma paz para cumprir com minhas responsabilidades.

— Eu sinto o mesmo — se ele tinha tomado coragem para lhe dizer aquilo, o mínimo que ela poderia oferecer era a verdade — Parece meio irreal até dizer isso, nunca na minha vida eu imaginei que estaria no palácio, e que me aproximaria de você ainda por cima, mas aconteceu. Imagino que isso piore as coisas.

— De certa forma… É mais difícil me conformar com o que tenho que fazer.

Diante do que tinham confessado, se deixaram ficar em silêncio, com as mãos dadas, como se segurassem aquela oportunidade frágil, a última, de estarem tão próximos.

— Eu preciso voltar — sussurrou ela, não querendo acabar com aquele momento, mas não tendo outra escolha. Se levantaram, reticentes em se separarem. Tanto que, quando Damian deu um passo adiante, ficando a dois palmos de distância dela, ela decidiu não se afastar.

— Posso lhe pedir uma última coisa? — ela assentiu, sem coragem de levantar os olhos do chão. O que ele disse em seguida, porém, fez com que ela o encarasse — Um beijo.

— Só vai tornar tudo mais difícil — foi o que conseguiu responder, desconcertada com a altura das batidas de seu coração em seus ouvidos.

— Eu não me importo — agora estavam tão perto que ela conseguia sentir a respiração dele em seu rosto. Tão perto que ela decidiu deixar de tentar ser racional.

— Tudo bem.

Naquelas escadas mal iluminadas e estreitas, Yeva recebeu o melhor beijo de sua vida, em parte porque acreditava que seria o primeiro e o último que Damian lhe daria. Despedidas tendiam ser assim, agridoces: profundamente amargas, mas tão doces quanto. Tanto que, quando se separaram, Yeva teve que fazer um esforço consciente para não beijá-lo de novo.

— Bom — a voz dele, baixa, agora estava um tanto rouca — Acho que não tenho escolha.

— Sobre o quê? — disse, finalmente abrindo os olhos. Ele lhe abriu um sorriso pernicioso.

— Sobre você. Tinha certeza antes, mas agora… Não sou capaz de me contentar com um beijo e nunca mais te ver quando esse Festival acabar — sua expressão ficou mais séria — Posso convencer minha família a desistir do casamento arranjado. Não vai ser uma luta fácil, então entendo se quiser parar por aqui.

Por um instante, Yeva quase recusou. Podia não ter noção total da magnitude do que estava se metendo, mas a percepção que tinha era o suficiente para entender o quão problemático aquilo poderia se tornar. Uma plebéia relacionando-se com o herdeiro? Absurdo. Mas, por outro lado, mais absurdo ainda seria recusar. Seu lado emocional ganhara de seu lado racional desde aquele primeiro baile.

— Espero que, pelo bem de nós dois, você tenha bons argumentos — respondeu, finalmente, abrindo um sorriso largo — Gostaria de ganhar essa “luta”.

*

O país inteiro mal acreditava, e Yeva também estava inclusa nesse grupo, mas tinham conseguido. O Festival se encerrara sem pedido de noivado. Ao invés disso, com conhecimento somente da família real, um namoro secreto se iniciara entre Yeva e Damian.

Ela se sentia fora do mundo. Não podia contar para ninguém, pelo menos não nesse começo, mas era difícil esconder o quão feliz estava. Se antes mal parava em casa, agora só tinha piorado: além do trabalho na floricultura - aumentado, uma vez que recebera uma promoção -, agora também haviam as viagens esporádicas para a capital nos finais de semana.

Um mês de segredo depois, Yeva finalmente recebera permissão para contar aos pais o que se passava. Estava ficando inviável, passar tanto tempo longe sem oferecer uma boa justificativa para eles. Contaria no final do dia, quando eles voltassem do trabalho.

Fazia muito tempo desde a última vez que pudera ficar em casa durante a tarde. Luka, que tinha acordado com uma febre baixa, também tinha ficado em casa. Mais quieto do que o normal, tinha passado o dia na cama, tirando cochilos ou vendo televisão.

Na cadeia de eventos em que Yeva tinha acabado, aquele seu longínquo pensamento sobre retomar uma relação normal com o irmão se perdera. Depois de cuidar dele o dia inteiro, porém, o pensamento estava de volta com mais força.

— Luka — chamou, entrando no quarto e acendendo a luz da cabeceira dele. Já começava a escurecer — Como você está? Seria bom se tomasse um banho antes da mamãe e do papai voltarem.

Ele levantou os olhos para ela, sem a menor vontade de se levantar. Pelo lado positivo, porém, havia suor em sua testa e pescoço. Bom, sinal de que a febre estava baixando.

— A água vai estar gelada — resmungou, e Yeva teve que rir um pouco, sentando-se na borda da cama dele. Pelo jeito não era culpa da moleza que ele quisesse ficar deitado.

— Pode ser, mas vai ajudar a baixar a febre — ele não pareceu convencido — Além do mais, nem vai estar tão ruim, você já está melhorando.

— Conta uma história para mim, depois eu vou — os olhos dele brilharam em empolgação pela primeira vez no dia.

Yeva deu uma olhada no relógio, constatando que a qualquer momento os pais dos dois chegariam e ela nem começara o jantar, como a mãe tinha pedido.

— Tenho que fazer o jantar… — quando viu a animação dele murchar, porém, não conseguiu forças para recusar — Tudo bem, tudo bem, mas vai ser uma curtinha, tá?

Acabou que a história não foi tão curta, uma vez que Yeva se pegou inventado um monte de detalhes que agradaram muito o garoto. Quando terminou, porém, ele parecia estranhamente triste.

— Não faça essa cara, posso lhe contar outra história antes de você dormir — disse, imaginando que era só um pouco de manha. O que ele respondeu, contudo, foi além de qualquer expectativa que ela tinha.

— Vai mesmo? Você nunca está em casa…

— Eu tenho que trabalhar para ajudar o papai e a mamãe, Luka — explicou, com certa culpa. Era bem verdade que sua ausência agora tinha outro motivo, mas era lógico que para ele isso não fazia diferença: a distância a mesma.

— Mas você some até no final de semana! Não é proibido trabalhar no final de semana? — Yeva poderia ter achado a última frase engraçada se ele não estivesse tão sério. Bravo até.

— Não é proibido, mas é verdade, não trabalho nesses dias — respirou fundo, vendo que ele não estava se acalmando — É por um bom motivo, prometo. Quando a mãe e o pai chegarem em casa vou contar tudo, tá bom?

Ele continuou de cara amarrada, e ela percebeu que não tinha jeito. Decidiu ir fazer o que devia, mas tinha que conferir como o menino estava. Percebeu, preocupada, que a febre tinha subido de novo. Bom, era hora de parar de conversar e começar agir como sua irmã mais velha de novo.

— A gente pode conversar mais depois que você tomar banho, vamos — chamou, levantando-se.

— Não quero.

— Luka, vamos, senão sua febre vai subir mais — vendo que ele não se movia, Yeva decidiu lhe dar o antitérmico que ele se recusara a tomar o dia inteiro — Pelo menos tome o remédio, então. Uma coisa ou outra.

Ele nem se dignou a responder, cruzando os braços e fechando a cara. Yeva nunca o tinha visto com uma atitude tão ruim. Não podia se deixar abalar. Imaginou o tamanho da bronca que tomaria por deixar a febre do menino subir e sentou-se na cama de novo, colocando o remédio em uma colher.

— Eu sei que o gosto é ruim, mas vai te ajudar a melhorar — mais uma recusa de cara amarrada — Luka, para de birra…

— Já disse que não quero! — gritou, e empurrou o remédio para longe. Yeva foi pega tão de surpresa que deixou a colher cair no chão.

— Luka! Pra que essa atitude? Quer que eu te deixe ficar doente? — ele murmurou alguma coisa que Yeva não conseguiu identificar — Para de resmungar pra mim, o que está acontecendo?

— Eu disse que quero! — além de raiva, a expressão dele tinha tanta mágoa que ela ficou sem resposta — Se eu ficar doente… Se eu ficar doente você vai cuidar de mim, não vai?

— Sim, mas…

— Então eu posso ficar doente mais um dia. É o único jeito de você passar tempo comigo.

Oh, Deus. Não queria ter aquela conversa.

— Eu já expliquei, tenho que tra-

— Pára de mentir! — Yeva nunca tinha visto o irmão tão irritado, e não sabia o que fazer, não quando era tão culpada de tudo que ele lhe acusava — Você nem me busca na escola mais, e é no mesmo horário que acaba seu trabalho! Mal conversa comigo fora da mesa de jantar! Por quê?

A verdade estava entalada na garganta de Yeva. Ela não podia contar a ele, não podia. Era tão mesquinho, como ia contar que fora por medo? Pior, como pudera acreditar que ele não seria afetado? Que cresceria e, eventualmente se esqueceria de como era agira?

— Me responde! — a falta de resposta só estava piorando a situação. Tanto emocional, evidente nas lágrimas nos olhos dele, quanto na vermelhidão do rosto do garoto, evidenciando que sua temperatura subira ainda mais — O que eu fiz de errado?

— Não é assim, você não fez… — de repente, percebeu que estava com frio, como se houvesse uma corrente de ar a rodeando. A percepção do que estava acontecendo a apavorou demais para conseguir pensar direito — Para com isso, Luka, não tem graça.

— Não até você me responder — a força do vento aumentou — Por que você não me deixa entrar no seu quarto mais? Eu vi que você começou a trancar a porta!

— Você está me assustando! — àquela altura, Yeva tinha que gritar para ser ouvida acima do ruído do vento. Era assim que ia morrer? Antes que se desse conta, as palavras, expulsadas por conta do pavor, saíram de sua boca — ERA POR ISSO! Esse… Esse poder horroroso, eu estava com medo dele. Eu ESTOU com medo agora!

— Medo de mim? — A expressão que ele fez era da mais pura desolação. Yeva estava pronta para voltar atrás no que dissera, o remorso ganhando do medo, quando percebeu que não conseguia respirar. Os olhos arregalados de Luka mostraram tanta surpresa quanto os dela, como se não soubesse o que estava fazendo.

Yeva começou a perder a força e, ao desabar no chão, pouco antes de perder a consciência, ouviu Luka, desesperado, chamando pelos pais que tinham acabado de chegar em casa.

*

Aquela noite tinha sido uma explosão pela qual ninguém esperava. Yeva e Luka, que, por um momento, pareciam estar voltando a se relacionar normalmente, se distanciaram por completo. Pela conversa que Yeva teve com a mãe mais tarde naquele dia, ficou claro que ele não tinha contado sobre Yeva ter medo de seus poderes. Os pais deles, visivelmente desorientados, culparam o descontrole na febre de Luka. Nem Luka nem Yeva tiveram coragem de desmentir a teoria.

Começaram a levar Luka ao coven naquela semana, mesmo que tivessem que sair do trabalho mais cedo. Enquanto isso, tentavam conversar com Yeva, sondar como ela estava. Continuavam lhe dizendo que estava tudo bem que estivesse assustada, mas o coven ajudaria, que aparentemente era normal que crianças bruxas perdessem o controle às vezes. Mas tudo o que ela ouvia era que eles conseguiam entender e aceitar Luka melhor do que ela era capaz, o que só a fazia sentir mais culpada. Com a culpa lhe mantendo calada e o medo lhe mantendo distante, não havia meio de seus pais lhe alcançarem.

No meio disso tudo, de algum jeito, os dias foram passando. Em algum momento, quando a estranheza parecia ter ganhado um lugar de normalidade na casa, Yeva contou aos pais sobre Damian. Foi a primeira vez que ela os viu felizes de verdade desde o incidente.

Com a permissão dos pais, começou a fazer viagens mais longas à capital. Queria ver Damian, com as coisas entre os dois se tornando mais sérias. E precisava ficar longe de casa. Sabia que só estava piorando as coisas, mas, lá no fundo, ainda tinha a esperança de que um dia entraria pela porta da frente e tudo estaria no lugar, tudo estaria bem. Devia saber que aquilo não ia dar em nada bom pelo fato de se recusar a pensar em como tudo voltaria ao lugar.

Assim foi por um ano e meio. Em algum momento até conseguiram voltar a comer juntos quando Yeva estava em casa. Não era bom, mas era algo. Luka estava melhor em controlar seus poderes, os elogios do líder do coven eram prova disso. Yeva ainda estava com medo. Depois de tanto tempo, porém, achava que era hora de, no mínimo, pedir desculpas a Luka sobre o que tinha falado. Sabia que não seria sincero, mas imaginava que fosse tirar um peso dos ombros dele - e dos seus, esperava.

Estava envolvida nesse tipo de pensamento enquanto observava os portões do palácio se abrirem para o carro em que estava entrar. Era o aniversário de Damian. Não era o primeiro a que comparecia depois do baile de máscaras, mas parecia diferente dessa vez. Não sabia ao certo o por que, mas a sensação só ficou mais forte quando, logo que entrou no salão, foi informada de que o czareviche a aguardava em uma sala perto do salão de baile.

Abriu um sorriso assim que o viu, automaticamente. Sua vida parecia estar em picos, se afundando em poços de tristeza e medo em casa e alcançando o tipo de felicidade mais pura sempre que podia estar com Damian.

— Chegou cedo hoje — disse ele, depois de dar-lhe um beijo longo.

— Não poderia me atrasar para um dia tão importante — respondeu, deixando que ele a abraçasse pela cintura e a puxasse para perto — Feliz aniversário, meu amor.

— Obrigado — ele parou por um instante, analisando a expressão de Yeva — Como você está?

— As coisas continuam na mesma — obviamente não contara a Damian sobre a magia e todas as complicações que tinham vindo com ela, mas não conseguira esconder o quão desolada estava. Falar vagamente sobre problemas familiares parecia ter resolvido o problema até então — Mas estou muito bem. Era sobre isso que queria falar?

— Na verdade, não — Yeva percebeu, surpresa, que ele estava um pouco corado. Eram raras as vezes em que ela o via com vergonha — Quero lhe perguntar uma coisa importante, e achei melhor fazer isso em particular primeiro…

— Sou toda ouvidos.

— Bom… Eu sei que talvez seja um pouco apressado, mas tem certos protocolos que eu preciso seguir e… Quer dizer, se você quiser esperar mais, tudo bem, é mais uma proposta do que um pedido…

— Damian — disse, segurando o rosto - vermelho - dele entre as mãos. Nunca o vira tão sem jeito, o que era um tanto fofo, mas estava ficando preocupada — Não precisa ficar dando voltas, prometo que não vou fugir.

Ele riu, um tantinho mais à vontade.

— Vamos descobrir a veracidade dessa afirmação quando eu terminar — ele respirou fundo — Você me daria a honra de ser minha noiva?

Todas as palavras do mundo faltaram a Yeva naquele momento. Tudo o que sentia era uma vontade de rir e chorar ao mesmo tempo.

— Está me pedindo em casamento?

— Em noivado, na verdade. Você sabe, os protocolos e tal…

Primeiro ganhou a vontade de rir, mas logo ela sentiu as lágrimas caindo. Meu Deus, que bagunça. Era uma confusão boa, pelo menos.

— Vou ter que aprender todos esses protocolos, não vou? — Damian assentiu, rindo um pouco. Era possível se sentir tão feliz assim? — Eu quero. Sim. Mil vezes sim.

Yeva viu alívio ocupando o corpo todo de Damian pouco antes de ele lhe beijar de novo, e de novo, e de novo. Com as lágrimas e isso, ela definitivamente teria que arrumar a maquiagem antes de entrar no salão de bailes.

— Tenho que contar para minha família — foi a primeira em que pensou.

— Você se importa de contar para toda a aristocracia aldiana primeiro? Meus pais já devem estar impacientes.

— Claro. Só não sei se consigo parecer mais surpresa na segunda proposta — brincou ela, e ele lhe abriu um sorriso torto.

— Não precisa se preocupar com isso — ele deu um tapinha no bolso de seu terno — Por que você acha que não lhe mostrei o anel de noivado?

— Ora, seu… — ela lhe deu um empurrão no ombro, rindo. De fato, precisaram de uns bons minutos para pararem de rir como bobos apaixonados e se recomporem para entrar no salão.

*

Quando Yeva finalmente conseguiu ligar para os pais para dar a notícia, eles e o país inteiro já sabiam. Fazer o pedido quando haviam câmeras de todas as emissoras nacionais no salão geralmente tinha esse efeito. A resposta deles foi calorosa de qualquer maneira. Era engraçado que eles estivessem orgulhosos de uma coisa sob a qual ela tinha tão pouco controle, mas parecia um bom presságio. Talvez fosse dessa vez que a paz estaria lhe esperando quando cruzasse a porta da frente.

Algumas horas de baile depois, com a coisa toda parecendo longe de terminar, Yeva se viu sendo escoltada para falar com o Czar e a Czarina. Tinha bebido bem pouco, mas ainda assim gostaria de estar 100% sóbria: falar com os governantes de seu país nunca era tarefa fácil, ainda mais sem a companhia de Damian.

Quando entrou na sala em que eles estavam, quis dar meia volta. Parecia tudo errado ali dentro. Da mesa longa, com os dois sentados na ponta e o lugar reservado para ela a várias cadeiras de distância, ao número perturbador de caçadores em posição de guarda nas paredes, tudo parecia gritar “é uma armadilha”.

— Majestades — cumprimentou Yeva, fazendo uma reverência profunda. Sentia que se respirasse errado, não sairia daquela sala viva.

— Sente-se, querida — assim que o fez, uma criada colocou uma taça à sua frente, cheia até a metade, e logo depois saiu. Yeva sinceramente quis ir junto — Está gostando do baile?

— Sim, Vossa Majestade — pelo menos sua voz não soou tão trêmula quanto ela se sentia.

— Fico feliz em saber — Yeva percebeu que eles também tinham taças, mas ela não tinha visto quando tinham as enchido. Fora da mesma garrafa que a dela? — Peço desculpas por lhe tirar da comemoração, temos que conversar sobre algumas coisas. Antes, porém, vamos fazer um brinde! A você e a Damian, para que tenham um futuro brilhante!

Yeva não tinha outra escolha a não ser beber. Tentou se concentrar no fato de a bebida ter um gosto comum para não entrar em pânico. A tontura que lhe atingiu, porém, lhe parecia um bom motivo para entrar em desespero.

— Vossa Majestade, eu… — tentou articular alguma coisa, mas perdeu a linha de raciocínio no meio do processo. Por que as luzes estavam tão fortes?

— Veja, Yeva, confiamos no julgamento de Damian — começou o Czar — Mas ele ainda está aprendendo, e temos que tomar nossas próprias medidas de segurança.

— Sua ficha é impecável, o que é ótimo — a Czarina se levantou, chegando mais perto. Yeva podia jurar que viu os caçadores ficarem ainda mais atentos. Um deles levou a mão à espada — Sua família também parece comum, mas, antes de entrar na nossa família, temos que tomar todas as providências possíveis, você entende?

— Gostaríamos de ter feito isso mais cedo, mas Damian pode ser realmente teimoso quando quer — continuou o Czar — Antes tarde do que nunca, não?

Então Damian não sabia que aquilo estava acontecendo. O que era aquilo, exatamente, ela ainda não conseguia dizer. Com os pensamentos todos embaralhados, raciocinar estava muito, muito difícil.

— Deve saber que sua família também terá que ser testada para frequentar esse palácio — aquele tom condescente da Czarina estava acabando com a paciência de Yeva.

— Que teste é esse?

— Ora, querida, para revelar magia, claro.

Yeva ouviu todos os alarmes em sua cabeça começarem a soar. Como saía dali naquele instante? Sua expressão deve ter entregado tudo o que passava por sua cabeça, porque a Czarina abriu mais um de seus sorrisos mansos e gélidos.

— Está claro que você não é bruxa, mas pela sua expressão, alguém esteve guardando um segredo… Quem?

Yeva engoliu em seco.

— Não sei do que está falando, Majestade.

— Yeva, por favor — o Czar também se levantou, sentando-se ao lado dela — Acha que faríamos esse interrogatório depois do anúncio nacional do noivado se quiséssemos lhe ferir?

Por um lado, fazia sentido. Não havia maneira de se livrar dela, ainda mais com uma acusação tão grave de bruxaria, sem causar um escândalo que balançaria o país. Por outro lado…

— O trabalho dos Caçadores é eliminar bruxos. Que outra opção vocês teriam? — contra qualquer cautela, foi o que acabou dizendo. A risada de “oh, que inocente” que a Czarina deu lhe deixou com mais apreensão do que antes.

— Oh, meu bem, o papel dos Caçadores não é matar — pela primeira vez na conversa ela deixou o sorriso de lado, séria — É proteger.

Vendo que Yeva não estava acompanhando, continuaram a explicar.

— Há séculos, os Caçadores trabalham para proteger os humanos e salvar os bruxos. É tão confidencial que nem nós sabemos exatamente como funciona, mas há uma maneira de curar os bruxos. Libertá-los de sua magia.

Yeva arregalou os olhos. Aquela era a mentira mais absurda que já escutara na vida! Mas, se não fosse mentira…

— Claro que o melhor teria sido que você viesse de uma família pura — continuou a Czarina — Mas, pela felicidade de Damian, podemos abrir uma exceção e curar o bruxo em sua família.

— Isso… Isso não tem como ser verdade. Por que não estão usando a cura em massa, então?

— O processo é demorado e custoso. Está em aprimoramento, e para ser sem riscos demora ainda mais… Você é um caso especial, contudo — o Czar entregou um visor para ela — Entendemos que acreditar sem provas seja difícil, então, aqui, veja com seus próprios olhos.

Na tela, Yeva viu gravações de bruxos recebendo uma injeção cinzenta e sendo incapazes de dominar o elemento com que mexiam tão facilmente antes. Começou a sentir um tipo de esperança. E se aquilo fosse o como para ter sua família de volta ao normal?

— Você vê, temos toda a intenção de ajudar — disse o Czar — Você só precisa nos dizer quem é, sabemos que há alguém. Prometemos sigilo total.

Com as imagens ainda passando em seu cérebro, e a sensação de que iria desmaiar a qualquer momento, Yeva deixou as palavras saírem de sua boca.

— Meu… Meu irmão, Luka — meu Deus, o mundo estava rodando — Dominador de ar. Ele é uma criança adorável, eu juro! Mas, com a magia… Ele seria mais feliz sem ela, não?

— Claro que sim, querida — o mundo começou a escurecer — Claro que sim.

*

Yeva acordou assustada, sem saber onde estava. O tamanho do quarto denunciava que ainda estava no palácio, mas não se lembrava de ter ido até ali. Não se lembrava de quase nada, na verdade. Só sentia a cabeça pulsando de dor, e tinha a sensação inquietante de que tinha alguma coisa errada. A expressão de Damian, quando viu que ela estava acordada, só piorou o sentimento.

— Que horas são? — foi o que conseguiu perguntar.

— Quase três da tarde — ele tinha os olhos inchados, e não parecia ter dormido — Yeva… Algo aconteceu ontem.

As memórias ainda não tinham voltado, mas ela sentiu um frio no estômago quando viu o Czar e a Czarina parados ao lado da cama em que estava. Por que estava se sentindo tão desesperada?

— O que aconteceu? — o silêncio dele só piorava tudo — Damian, fale de uma vez!

— Por causa do anúncio ontem, sua família deve ter ficado vulnerável… — oh não. Não, não, não — Um grupo de ladrões entrou na sua casa ontem, parece que ficaram violentos… Quando chamaram a polícia já era tarde demais e… Seus pais e seu irmão, eles… Eles foram mortos.

A realidade daquilo caiu sobre Yeva no mesmo instante, com tanta força que ela se esqueceu de como respirava, seu choro soando aterrador para seus próprios ouvidos. Um olhar para o Czar e a Czarina, e as memórias da noite anterior voltaram. E ela soube, naquele instante, o quanto era uma tola, uma estúpida. Uma assassina.

*

A história em que Damian e a mídia acreditaram era obviamente falsa. Um grupo de Caçadores tinha ido até a casa da família de Yeva e, num descontrole geral deles e de Luka, acabaram com sua mãe, seu pai, seu irmão e dois caçadores mortos.

O que tinham colocado em sua bebida, descobriu depois, era usado pelos Caçadores para forçar os poderes de um bruxo ao descontrole. Em não-bruxos não causava nada além dos efeitos que Yeva experienciara: tontura, desorientação e, em doses altas, desmaio. Mais aterrador do que descobrir que tinham usado a dose máxima nela, foi saber que aquilo não era um soro da verdade. Contara o que contara por vontade própria, e essa realidade lhe arrastou para um desespero profundo.

Durante um ano inteiro, Yeva não sabia o que fazer consigo mesma. Damian estava para morrer de preocupação, mas não havia o que ele pudesse fazer, nem ninguém. Não havia uma única pessoa com quem Yeva pudesse conversar: para a realeza e os Caçadores, seria uma cúmplice se mostrasse remorso; para algum bruxo ou simpatizante, seria culpada, independente de quão mal se sentisse sobre o ocorrido. Estava em um beco sem saída. Não importava que consultasse com os melhores psicólogos e psiquiatras de Aldan, quando não podia dizer um terço do que estava sentindo.

No meio disso tudo, porém, a doença que o Czar tivera por anos piorou. De repente era hora de se preparar para que Damian tomasse o lugar do pai a qualquer instante. De repente, estava cada vez mais difícil adiar o casamento, e era hora de Yeva estar à altura da vida que escolhera. Não tinha para onde voltar, então sua única solução era continuar em frente.

Assim, dois anos depois da morte de sua família, Yeva e Damian se casaram. Não podia negar que era um momento feliz. Mesmo destroçada por dentro como estava, Damian ainda era o único porto seguro que tinha. Por isso, três meses depois do casamento, quando o pai de Damian morreu, ela decidiu ser um porto seguro para ele também. Se tinha causado tamanho estrago para ter uma coroa sobre sua cabeça, então se faria digna de usá-la.

Quando Aleksei tinha seis anos, a mãe de Damian faleceu. Por mais horrível que fosse, Yeva sentiu uma espécie de alívio. Desde a noite do interrogatório, a máscara doce da Czarina nunca mais a enganou, e ter os olhos dela a seguindo o tempo inteiro era como uma ameaça constante, uma lembrança para se manter na linha.

Seu passado nunca ficou para trás de verdade. Dos poderes de Aleksei à vontade de Catherina se tornar uma caçadora, tudo parecia lembrar Yeva do tamanho do erro que tinha cometido. E, claro, sempre havia informação nova para reduzir seu coração a pedaços: quando Catherina entrou para a Caçada, contou sobre uma nova arma que estava sendo apresentada aos caçadores: um inibidor temporário de magia. Foi como mais um tiro no peito, perceber que os inibidores eram exatamente iguais aos que Yeva vira nos vídeos das supostas “curas”. Tinha matado sua família por uma mentira.

Naquele cemitério meio escuro, todos esses acontecimentos voltavam para Yeva, com a familiaridade que estar com eles constantemente trazia. Não tentou se impedir de chorar quando a vontade veio, dessa vez.

— Eu sinto muito — sussurrou para os túmulos, ciente de que nada do que dissesse faria diferença — Eu sinto muito por ter acreditado neles, por ter duvidado de que a escolha de proteger Luka era a melhor, por… Por ter tido tanto medo.

Quanto mais o tempo passava, mais Yeva se via no lado errado daquela história. Não como um ato de autopiedade, não. Ainda não compreendia nada de bruxaria, não compreendia nem o que se passava com seu próprio filho, mas o que fizera deixara de parecer minimamente justificável há muito tempo.

Tinha ido ali para ter certeza do que fizera. Que aquela garotinha que vira na Ouvidoria era só mais uma das coincidências mandadas para lhe lembrar do que tinha feito. Os túmulos não deixavam dúvidas sobre isso. Seu pai estava morto, assim como sua mãe, assim como Luka, e não havia como escapar disso. Estava pronta para sair dali com essa conclusão em mente, quando uma voz soou atrás dela:

— Se eu soubesse que era tão fácil assim lhe manipular, Vossa Majestade, teria feito muito mais cedo — a voz surgiu do nada, assustando Yeva. Não tinha ouvido um único passo. O que viu ao se virar, porém, lhe paralisou por completo.

Ele poderia estar bem mais velho agora, com as feições de um homem quase em seus quarenta anos, mas ela não tinha uma única dúvida: Luka.

— Como… O que… — não sabia o que perguntar, com um nervosismo borbulhando fervorosamente em seu estômago. Era como se enxergasse uma fissura na realidade, e não conseguia compreender direito o que estava vendo.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Respire fundo, minha querida irmã, você não quer desmaiar antes de conversarmos, quer? — ele tinha um sorriso na boca, mas as palavras não podiam ser mais geladas. Yeva se obrigou a controlar a respiração descompassada.

— Como você está vivo? — não precisou de muito para perceber que aquilo não era um reencontro choroso entre irmãos. Luka tinha guerra nos olhos, não saudade.

— Bruxos sabem ajudar uns aos outros — respondeu, vago — De qualquer forma, fico feliz de ter mordido minha isca.

— A menina na Ouvidoria… — ele planejava matá-la? Estava completamente sozinha ali, provavelmente era a melhor chance que ele tinha. Tinha que arrumar um jeito de sair dali, depressa.

— Minha filha. Ela sempre quis ir à Ouvidoria, sabe? — oh, ele estava adorando aquilo — Nunca deixei. Imagine, deixá-la chegar perto da sua laia. Contudo… Me ocorreu que vê-la poderia ativar certas memórias na sua cabeça e lhe fazer sair de sua fortaleza… Não é que eu estava certo?

Yeva, que até aquele momento estava exausta da montanha-russa emocional que tinha sido aquele dia, estava com todos os sentidos em alerta. No primeiro ano depois do assassinato, talvez tivesse deixado Luka se vingar dela da forma que quisesse. Agora, porém, tinha uma família para proteger. Não podia morrer ali.

— O que você quer?

— Aleksei — respondeu sem rodeios, livrando a cara daquele sorriso cínico pela primeira vez. Ouvi-lo falando o nome de seu filho parecia tão errado.

— Não entendo.

— Ora, por favor, Yeva. Fingir que a magia do seu filho não existe não a fez desaparecer — respondeu ele, com desprezo.

— Como.. Como você sabe sobre isso?

— Deixe-me contar um segredo: todo bruxo nesse país sabe. Agora, não vim aqui responder seu interrogatório, vim negociar. É muito simples: deixe-me treiná-lo.

De alguma forma, negociar Aleksei era pior do que estar sob risco de vida. Que tipo de situação era aquela?

— Treiná-lo? Com que propósito?

— Acho que você, melhor do que ninguém, sabe que há uma guerra se aproximando. Sinto lhe dizer, mas os bruxos pretendem ganhar dessa vez. E Aleksei, minha irmã, é uma arma mais poderosa do que você pode imaginar.

Arma. A palavra lhe causou calafrios. Não sabia que tipo de poder Aleksei carregava, mas ele era seu filho. Podia não ser um anjo, mas não era uma arma. O medo que estava sentindo começou a ser substituído por raiva.

— Não há um único motivo para que eu entregue meu filho a você. Sua razão, na melhor das hipóteses, só me dá mais argumentos para não deixar que você chegue perto dele.

— É verdade, mas também é verdade que Aleksei é uma bomba-relógio. É impressionante que ele tenha aguentado por tanto tempo, mas é questão de segundos até que toda a magia que ele foi forçado a conter saia de suas amarras — ele deu de ombros — Poderia tranquilamente destruir o palácio e suas redondezas de uma vez só. Talvez seja melhor deixar as coisas como estão mesmo, facilitaria a vida de todos nós.

Yeva não sabia o que era mais aterrador: que Luka soubesse tanto sobre Aleksei, ou o tipo de informação que ele estava lhe dando.

— Já disse que não, Luka.

— Pense com cuidado, Yeva. No dia em que Aleksei explodir, não há nada nesse mundo capaz de segurá-lo. Nem a habilidade sobre-humana da sua filhinha caçadora… — em choque com a afirmação, Yeva acabou pegando o cartão que ele lhe entregara — Não precisa decidir agora, me ligue se mudar de ideia. Para mim tanto faz se o palácio continua de pé ou é destruído, mas imagino que para você aquilo tenha um valor mais sentimental, não?

Antes que ela pudesse responder, ele se foi. Yeva não sabia nem o que sentir. Viera para confirmar que parte de seu passado ainda estava sob metros de terra, só para descobrir que isso, também, era mentira.