Livros. Minha vida se resumia a livros. Pilhas e mais pilhas deles.
O emprego na livraria era muito bom! Salário razoável, jornada tranquila - pra quem trabalha na Coréia do Sul, tá tranquilissimo!- é excelente pra quem ainda tem treino após o expediente, o que é meu caso. Mas para ser sincera, quando o mestre Lee me ofereceu essa bolsa para estudar Hapkido em Seul, eu não esperava ter que trabalhar. Sem querer parecer preguiçosa nem nada, mas as vezes eu queria poder sair do trabalho e ir pra casa dormir. Se eu disser isso a qualquer um dos meus colegas na Academia, eles dirão que sou mal agradecida e que deveria entrar no primeiro voo de volta para o Brasil. Então, vou deixar isso comigo.
— Senhorita!- Um par de dedos longos estalaram na minha frente. Pisquei duas vezes para recuperar o raciocinio.
— Sim?
— Poderia fazer a gentileza de me ajudar?- O par de dedos pertenciam a uma mulher baxinha e de óculos.
Acho que minha falta de atenção deve te-la irritado.
— Desculpe. O que a senhora deseja?
— Aquele livro de culinária. - A senhora apontou para o livro no alto da estante.
— Só um momento.- Caminhei até a escada que estava no canto , arrastei aquela giringonça até a estante e subi para buscar o tal livro de culinária.

Ao descer da escada não pude deixar de reparar no garoto ao lado da pilha de livros á minha direita. Joon, meu colega de treino, não parava de mexer em todos os livros infantis com botões. Revirei os olhos para ele e terminei de atender a senhorinha impaciente. Ele se aproximou assim que ela saiu.

— Você pode parar de parecer um teletubbie?- Reclamei baixinho.

— Hoje eu vou te levar para almoçar. - Ele sorriu fazendo seus olhos já pequenos desaparecerem.

—Eu posso dizer não?- Arqueei uma sobrancelha.

—Poder,pode,né? Mas eu só quero te ajudar a conhecer a cidade. Como pode você viver essa rotina de trabalho e treino?

—Joon, eu não vim pra cá para me divertir...

—Não começa,Lily! O próprio Grão Mestre disse que precisamos nos divertir de vez em quando.

—Tá certo. Só um almoço. Eu realmente tenho muito o que fazer hoje.

—Como vocês brasileiros são chatos!

Abri a boca fingindo estar chocada e dei um tapa em seu ombro.


Dito e feito, meio dia em ponto. Joon estava na porta da livraria, encontado na seu carro popular vermelho berrante. Ele é legal, digo, nós nos conhecemos ainda no Brasil quando ele veio ajudar o Mestre Lee com a academia. E como eu já estudava coreano há algum tempo, acabei virando guarda costas dele. O problema é que o Joon é um pouco empolgado e eletrico demais. Excelente lutador, verdade seja dita, mas um tanto indiciplinado.

—O que vamos comer? -Perguntei quanto lutava contra o vento que bagunçava meu cabelo cacheado e volumoso.

—Hamburguer, é claro! Temos que voltar logo.

Joon abriu a porta do carro para que eu entrasse e contornou o carro para sentar no banco do motorista.

—Acho que o mestre não vai gostar disso. - Impliquei.

— Sabe, queria Lily, aqui na Coréia nos temos um ditado que diz o seguinte: o que o mestre não vem, o mestre não sente!


***


Cheguei correndo á academia, me atrasei para sair da livraria hoje. Uma cliente empatou e não consegui fechar a loja até ás seis e meia. Conclusão: levei uma baita bronca quando cheguei colocando meu pulmão para fora e com o dobok* amarrotado. Joon riu, é claro. O fuzilei com os olhos. Me entenderia com ele depois.

Aquecimento feito, notei que tinha alguém diferente. Um rosto familiar, na verdade. Mas levei um tempo para reconhecer. Me aproximei de Joon.

— Vem cá, aquele ali não é ...

—Choi Siwon. - Ele respondeu com má vontade.

—Nossa, que implicância! - Ri baixinho.

Siwon não parecia notar que era o assunto entre eu e Joon, acho que é porque ele já está acostumado a ser assunto. Não sei.


— O que ele ta fazendo aqui?- cochichei.

—Não sei, mas espero que ele não cause problemas por aqui.

Não entendi qual era a do Joon, mas como agora não daria para conversar deixei pra lá. Até porque o Mestre já não estava exatamente feliz comigo, seria melhor não abusar. Talvez fosse ciumes. Convenhamos, esse cara é bonitão! Eu ja o vi em revistas e na tevê, não é nada mal! E que problemas um cara certinho como ele causaria? Ah, Joon deve estar falando de tomulto de fãs ou coisas assim.

A aula passou sem que eu e Joon trocassemos mais algumas palavras. Siwon já estava mais do que enturmado e ouvi enquanto caminhavamos para o vestiário que ele estava ali para treinar hapkido porque em breve iria para o exercito. Quantos anos esse cara tem? Fala sério, tipo 30? Não parece...

Joon continuava de mau humor. O caminho pra casa no carrinho apertado vermelho berrante parecia uma eternidade.
—Tá, é sério. O que ta pegando?- Resolvi quebrar o silêncio.

—Nada.

—Park Joon Hye! Eu vou te dar apenas uma chance.

— Acha bom esse cara treinar com a gente? Tipo assim, ele é um artista, um cantor. Não vai levar a coisa á sério, entende?- Ele respondeu sem tirar os olhos do volante.

— Que viagem! Ele está indo para o exercito, você sabe que lá não é fácil! Ele não deve ser tão burro para não se preparar de verdade.

—Gostou dele,né? - Ele me olhou de soslaio.

—Ele parece gentil.- Me encolhi no banco.

—Deveria entrar para o fã clube dele.

—Credo que mau humor,Joon!

Ele não falou mais nada até me deixar em casa. Agradeci e subi para meu "mini micro apartamento". Foi o que deu para arrumar com a bolsa e meu salário, que apesar de bom não cobre tudo que eu preciso por aqui. Especialmente a parte alimenticia, eu adoro comer!
Entrei em casa tirando meu tênis e os chutando para longe, larguei a mochila no chão e fui tomar meu merecido banho. Cansada do jeito que eu tava provavelmente iria pular a jantar e cair com tudo no meu colchonete comprado na 25 de Março daqui. Que aliás, é tão incrivel quanto a de São Paulo.

Quando terminei de tomar banho e finalmente pude colocar meu corpinho dolorido na horizontal. O telefone toca. Olho no visor mesmo sabendo que a unica pessoa sem noção nenhuma de fuso horario á me ligar nessa hora era minha mãe. E era ela.

—Bom dia, meu raio de Sol!!!!- Ela berrou com toda sua empolgção.

—Mãe, são dez da noite. Da.Noite.- falei com um olho aberto e outro fechado.

—Ah é verdade,né? Vá dormir, meu bem! Não se esqueça de me mandar aquelas ervas de chá coreanas. To precisando muito,viu?

—Tá,mãe. Tchau.

—Não pega tão pesado nos treinos, você não é nenhuma super atleta de elite.

—Mãe, tchau.

—Ta usando os casacos que compramos? Aí faz muito frio,né?

—Mãe,bom dia, boa noite, seja lá o que for. Mas me deixa dormir. Tchau.

Desliguei sem dar chance para ela voltar a falar. E finalmente, dormi.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.