Turgon era o Alto Rei dos Noldor. Herdeiro legítimo de seu pai, Fingolfin, senhor dos eldar que vieram do oeste e atravessaram o gelo pungente. Rei daqueles que outrora desafiaram os deuses e deixaram a terra sagrada, rumo à sombra desconhecida. Aqueles que com valentia pelejaram contra Morgoth e seus asseclas, sem temer a morte ou a dor. Turgon era o Alto rei dos Noldor. Favorecido por Ulmo, senhor das Águas, Senhor dos Gondolindrim. O guardião das chaves do reino oculto. E mesmo diante de todo este poder, ele não conseguia dormir.

Através das janelas da alta torre de pedra, Gondolin reluzia à luz da lua que se refletia em suas muralhas. Ele respirou o ar fresco que emanava da bela cidade. Sua Cidade. Sua Gondolin. Ulmo, o vala Senhor das águas, lhe deu a missão de refugiar seu povo alí, tal como fizera a seu primo, Finrod Felagund, rei de Nargothrond. Aqueles eram tempos mais fáceis, embora ele não pudesse lembrar-se de quando houvesse alguma facilidade aos filhos de Finwë que se rebelaram contra os senhores do Oeste. Na verdade, após ver o que seus primos, os filhos de seu tio Fëanor fizeram aos seus parentes, os Teleri, e ouvir com atenção as palavras de Mandos e a sentença deste sobre os Noldor, Turgon duvidava que algo de bom pudesse vir desta insana jornada. Mas era tarde para que pudessem voltar atrás e ele, tal como seus irmãos, seguiram seu pai, ainda que sua mãe, Anairë, fosse totalmente contrária àquela ideia.

O som dos gritos dos seus parentes em Alqualondë ainda invadiam seus sonhos, quando tentava dormir, e às vezes, misturavam-se com os apelos de sua mãe para que Fingolfin convencesse Aredhel, sua única filha a ficar com ela. Mas sua irmã era obstinada e aventureira e recusava-se a deixá-los. Quanto à Elenwë, sua esposa, não houve escolha e ele não lhe deu espaço para discussão.

— Como pensa que poderemos atravessar o gelo, Turgon? Como levaremos Idril conosco?

Ele não respondeu. Ou apenas não se lembrava de ter lhe dito alguma resposta. Na verdade, duas coisas pesavam em seu coração: A lealdade a seu pai e à sua casa, o amor por Elenwë e sua filha, que ainda não havia alcançado a marca do que depois diria ser seis anos na idade do Sol, e o pesar por aqueles que haviam caído nos portos. Ele demorou alguns anos antes de poder contar-lhe sobre o fratricídio. Não para dizer a ela que havia participado, pois essa notícia talvez fizesse com que ela o desprezasse ou não. Ele poderia dizer o quanto havia se arrependido de brandir sua espada contra aqueles de seu próprio povo… Se tivesse realmente sido assim. Mas não. Turgon, assim como seu pai e irmãos não moveram um dedo. Nem para ajudar, nem para prejudicar. Ficaram impassíveis enquanto seus irmãos e compatriotas eram covardemente massacrados. E sua covardia pesou contra ele de maneira que, apenas lembrar-se desse fato o enojava de si mesmo.

Elenwë não o recriminou por sua ociosidade. Ela agradeceu aos Valar por seu marido, não ter agido de forma inconsequente, por não ter erguido sua espada contra os feanorianos e causado com isso a destruição de sua casa. Ela o abraçou e lhe disse o quanto estava feliz por tê-lo consigo. Meses se passaram antes que os filhos de Fingolfin percebessem que seu tio os havia enganado e era tarde demais para retornar a Tirion. Ele se lembrou de ver Finrod abraçar e consolar Artanis, enquanto ela chorava compulsivamente a morte de seus parentes. Ela havia tentado lutar, tentado impedir que Maedhros e os dois irmãos mais novos matassem seus amigos, mas Turgon a segurou, impedindo-a de se intrometer. Ela gritou e praguejou contra ele. Depois contra Maedhros, com nomes indizíveis até mesmo para um Ellon.

Os navios haviam partido, mas não retornaram como prometido, e agora eles teriam de atravessar a cruel passagem de Helcaraxe. Elenwë o censurou pela primeira vez então. Lhe disse que não poderiam fazer isso, tendo sua filha ainda pequena nos braços, que ela preferia ficar, tal como sua sogra, mas ele foi inflexível. Sentia que não poderia levar adiante sua busca sem ela para fortalecê-lo. Mas as consequências de seu egoísmo se mostraram na travessia, pois sua doce Elenwë foi vencida pelo gelo, e sucumbiu diante de seus olhos. Ele se culpou e por muito tempo não pôde nem mesmo olhar nos olhos de sua pequena Idril. Pequena, dourada e quase morta de Frio. Ele quase agradecia a seu pai por ter trazido Aredhel com eles, ou talvez Idril também não pudesse sobreviver.

— Adar? — A voz doce de sua menina ecoou pelo escritório e Turgon desviou seu olhar da cidade, para ela. — Os guardas viram Aredhel deixar o portão pelo caminho das águias.

Ele assentiu. Havia pedido que eles a acompanhassem, mas aparentemente foram enganados novamente.

— Deixe que vá. — Murmurou. Aredhel não era sua e ele não a manteria prisioneira, embora tivesse tentado por muitos e muitos anos. — Deixe que seja livre.

Ele viu os olhos prateados de Idril cintilarem úmidos, mas ela respirava fundo e evitava as lágrimas. Ela amava sua tia, pois Aredhel fora para ela por muito tempo como uma mãe, tendo-a resgatado com suas próprias mãos quando ela caiu junto com Elenwë na travessia do gelo pungente.

Mas Aredhel poderia dizer que possuía um espírito livre. Ela era uma caçadora, aprendiz de Oromë, não ficaria conformada em viver sob cadeados e portões. Ela o havia avisado. Várias vezes, por vários anos. Ela amava Idril, e amava seu irmão, amava Gondolin e o povo que vivia lá, mas seu coração ansiava pelas florestas, pelos campos floridos, pela emoção da caça pela sensação do arco em seus braços e a flecha escapando por entre seus dedos. Ela sentia falta de Tirion e de sua mãe, sentia falta da companhia de Oromë, seu tutor e amigo. De Celegorm e Curufin, especialmente de Celegorm, seu primo amado e amigo de infância, com quem passava grande parte de suas tardes. Mas Turgon ainda se ressentia dos filhos de Fëanor e da morte de sua esposa, do sofrimento que ele e Aredhel haviam padecido na travessia. Ele não os perdoaria com facilidade. Não a ponto de deixá-la ir ficar com eles, mesmo que por pouco tempo.

Aredhel suspirou, lembrando-se da discussão que tivera com o irmão há não mais que uma semana.

— Eles também são nossa família! — Ela reclamou, vendo a carranca no rosto de Turgon tornar-se ainda mais grave.

— E não me orgulho por isso. Minha esposa morreu por causa daqueles covardes. Você e Idril quase morreram.

— Somos os últimos filhos de Finwë além do mar — Ela reclamou. — O que será de nós se nos voltarmos uns contra os outros?

Turgon não quis ouvir falar no assunto. E lhe disse que daria seu consentimento para que fosse apenas visitasse seu pai e irmãos, mas ela sentiu-se insultada pela falta de confiança. E por isso decidiu que não viveria sob o jugo de seu irmão. Ela partiu. Fez seu caminho para Himlad, para a terra onde seu coração a guiava.

A viagem se encerrou, quando ela finalmente encontrou a casa de seus primos, mas eles não estavam. Foi lhe dito que Celegorm e Curufin haviam partido para resolver assuntos importantes, e que ela poderia esperá-los se quisesse. Então ela o fez. E os esperaria para sempre, se seu coração não ficasse novamente ansioso e ela tornou a buscar os prados e florestas. Numa noite, quando retornava da caça, viu que as marcações que fizera nas árvores haviam simplesmente desaparecido. Seus olhos se estreitaram, enquanto buscava, sem sucesso ,a escuridão pela trilha por onde viera. Talvez houvesse se afastado demais de Himlad, demais em direção à floresta de Doriath, na qual não poderia passar. Os elfos daquele local eram hostis aos Noldor.

Vagou em linha reta, rumo à escuridão. Suas roupas se prendiam em galhos e às vezes seu cavalo cansado, tropeçava. Ela desmontou e o guiou a apé. O animal não parecia disposto a continuar e retornou, ficando preso no que parecia uma teia gigante. O coração de Aredhel congelou ao ver os grandes e brilhantes olhos diante dela. Oito olhos repugnantes que a encaravam no escuro. Ela caiu para trás, enquanto a enorme Aranha devorava seu cavalo e enquanto rastejava para longe da cena horrível, sentiu outra agarrar-lhe as pernas e puxá-la de volta. Um grito de dor escapou de seus lábios quando o terrível animal a virou e preparou-se para ferroa-la. Então uma flecha a atingiu na parte sensível do corpo. E a aranha caiu sobre seu corpo.

Aredhel arregalou os olhos, espantada, jogou a coisa para o lado e tentou levantar-se para correr, mas seus pés a traíram e ela caiu de volta ao chão. Gritou novamente sentindo uma dor inebriante atingir-lhe o calcanhar.

— Droga! — Exclamou furiosa contra si mesma. Teria quebrado com uma única queda?

Não!

Ela era Aredhel Ar-Feiniel, filha de Fingolfin. Não quebraria com tanta facilidade. A dor tornou-se intensa e ela fechou os olhos, mordeu os lábios e ouviu o som da batalha ao redor, sem conseguir distinguir o que estava acontecendo. Logo, seus pensamentos ficaram turvos como as correntes de um rio nebuloso e ela adormeceu.