The Especies

Capítulo 1 - Realidade


Capítulo 1

Realidade

Eu estava silenciosa mesmo que por dentro eu vibrasse de alegria e medo. Alegria por encontrar mais humanos como eu no momento mais desesperador da minha vida, e medo porque, mesmo que esses humanos aceitassem algumas almas, será que aceitariam Liza? Seria doloroso partir novamente, mas estava decidido: se não aceitassem Liza, eu e ela nos mandaríamos ao anoitecer.

Não era de madrugada, mas ainda estava escuro. A humana que logo reconhecia pelo nome, Melanie, disse que esperaram uma meia hora depois que os helicópteros foram embora e mais quinze até nos avistarem. Ela me parecia uma garota forte e durona apesar de uma aparência bonita e estava bem contente de ver outra como ela e como a alma Peg, a que me deu água e como “gratidão” acabei ferindo seus sentimentos.

Depois disso o jipe ficou em completo silencio. Nem mesmo o garoto sorridente, Jamie, tentou puxar uma conversa. Encostei minha cabeça no ombro de Liza e suspirei suavemente. Minha barriga roncou vergonhosamente causando dor por estar vazia há dias. Encolhi-me.

_ Estamos chegando. – disse a alma chamada Peg. Sua expressão mesmo sendo de angustia foi diferente da sua voz doce e fina. Ela estava meio inclinada para frente com o braço direito estendido sobre o banco do passageiro na frete. Sua mão era segurada pela do homem grande de cabelos negros, ele fazia círculos suaves na costa da sua mão pequena e delicada.

Quando percebia já tinha abrido à boca e falado com a voz rouca de sede: _Como isso aconteceu, vocês dois?

Eu devia ter me reprimido, mas a curiosidade falou mais alta. Peg olhou pra mim e sorriu, seus olhos assumiram um brilho diferente, reconfortante. O homem virou o rosto levemente na minha direção, não consegui ver sua expressão.

_ Uma longa história. – riu Peg e Melanie segurou um gargalha fingindo tossir.

_ Uma incrível história, não tanto quanto as histórias sobre os mundos nos quais ela viveu. – disse Jamie rindo. Ele pareceu agir ao assunto “alma parceira de um humano” muito bem. Na verdade para ele, o jeito como falou mostrou como era uma coisa comum, nada de mais, apenas dois seres que estavam juntos.

_ Mundos? Em quantos mundos você já esteve, Peg? – perguntou Liza curiosa.

_ Nove. Mas essa é minha decima e ultima vida. – respondeu serenamente e sorriu para o seu parceiro.

_ Como assim? Você não vai trocar de corpo quando este envelhecer? – disparei mais perguntas sem perceber. – Desculpe...

_ Tudo bem – riu mais tranquila – entendo sua curiosidade e perplexidade. Não é comum que minha espécie decida morrer de “verdade”. Mas eu encontrei o meu verdadeiro mundo, meu lar, minha família, não tenho mais pra quê mudar de hospedeiro quando este estiver chegando ao seu fim e ficar vagando para outro corpo e planeta até finalmente decidir ser... Mãe. – ela suspirou e olhou nos meus olhos, o reflexo prateado faiscou com a luz da lua refletindo neles – Finalmente encontrei quem eu sou. Encontrei pessoas pelas quais vale apena viver apenas uma vida longa e feliz, pessoas que eu amo de todo o meu coração.

Ela apertou a mão do seu parceiro humano, e olhou desde Melanie, Jamie, o homem que dirigia o jipe e a garota de cabelos longos e ondulados.

Encarei Peg sabendo que eu não tinha nenhuma expressão no rosto agora. Olhei em seu olhos e apesar de ser uma alma ela também era...humana. Virei meu rosto e encarei Liza. Ela me observava, curiosa. Liza me amava, ela dizia que eu era sua irmã, mesmo não sendo da mesma espécie que eu. Ela viveria nesse corpo até o fim dele, eu tinha certeza disso. Nunca pensei nisso antes, mas era uma atitude e realidade que não precisava ser dita ou prometida para saber que existia.

Liza pareceu decifrar o que eu pensa e acentiu confiante.

_ Sempre. – sussurrou apenas para que pudesse ouvir. Sorri sentindo meus olhos arderem, mas consegui segurar as lagrimas firmemente.

Virei o rosto e olhei para frente e logo fui avistando uma caverna. O carro ia na sua direção. Logo fomos cobertos pela escuridão densa da caverna, era como uma garagem.

Escutei barulho das portas do jipe sendo abertas de caixas. Depois o farol do jipe foi aceso. O grupo estava tirando umas poucas caixas do jipe.

_ Vamos buscar o resto na van amanhã ao anoitecer. Melhor não arriscar. – disse Melanie com um caixa em baixo do braço direito e saindo da caverna e sendo acompanhada pelos outros. Liza e eu os seguimos.

De repente, do nada, não sei explicar, uma luz branca invadiu meus olhos me desnorteando. Fiquei desorientada e a única coisa que veio em minha cabeça foi “os Buscadores! Eles nos acharam!”. Mesmo não tendo os ouvido chegarem, nem barulho de helicóptero. Eles deviam ter armado um emboscada. Não senti mais Liza me segurando, era como se eu planasse no ar, era indescritível o que estava acontecendo comigo. E da mesma forma que a luz nos atingiu ela desapareceu.

Eu ofegava, buscando o oxigênio como se tivesse acabado de subir a superfície de um lago por ter ficado lá em baixo sem respirar por muito tempo. Eu não sabia onde estava, nem como vim parar naquela sala branca e deitada em uma maca cheia de fios espalhados por todo o meu corpo, principalmente em minha cabeça. Olhei pro lado a procura de ajuda, de alguma explicação, mas encontrei apenas duas pessoas me encarando preocupadas. Eu nunca as tinha visto na vida. Os olhei pensando ser Buscadores, mas eram humanos normais como eu.

_ Você esta bem? – perguntou a mulher com um olhar acolhedor. – Achamos que não ia acordar tão facilmente. Você esta presa por isso desde os doze anos, querida.

Eu a encarei sem entender. Presa a isso desde os doze anos? Ela devia ser louca. Eu fugia das almas desde os meus doze anos de idade.

_ O que esta acontecendo? Como vim parar aqui? Cadê a Liza? Os Buscadores a pegaram? – milhares de perguntas desesperadas escapavam de mim. Eu podia controlar, mas eu não queria, eu só queria explicações coerentes!

_ Se acalme, criança. Vamos lhe explicar tudo que deseja, mas primeiro venha conosco, já devem estar nos procurando. – disse o homem que estava com ao lado da mulher com uma voz seria e firme. Ele olhou para uma porta no canto da sala que estava completamente destruída.

Na mesma hora em que ele disse que “já devem estar nos procurando” eu me levantei subitamente. Deviam ser os Buscadores. Arranquei aqueles fios do meu corpo , alguns estavam enfiados sobre minha pele e quando os puxei a região em que estavam presos começou a sangrar. Não me importei. A mulher vendo meu desespero de fuga, me ajudou com muita agilidade. Ela nem chegava encostar-se aos fios e eles automaticamente se desprendiam de mim. A olhei espantada, mas ela apenas me ignorou.

_ Vamos! – apressou o homem que já estava na porta ou o que restou dela, pelo menos.

Desci da maca, e percebi de imediato que não me sentia fraca ou com fome ou com sede. Eu me sentia completamente hidratada, saudável. Todas as sensações desagradáveis, que agora me pareciam distantes, pareciam ser todas criadas pela minha cabeça, como uma ilusão.

Corri na direção do homem, a mulher vindo logo trás de mim. Eu estava com uma calsa branca, um tênis e uma camisa da mesma cor. Corremos por um corredor largo sem janelas. Vez ou outra passávamos por algumas portas de... Metal? Eu não sabia, mas eram prateadas e reluzentes, como se tivessem sido acabadas de ser polidas. Não esbarramos em nenhum Buscador, nada. A mulher vinha atrás de mim, sempre olhando para trás. O homem seguia na frente, firme e indestrutível, como se nada fosse abala-lo.

_ Quem são vocês? – perguntei com a respiração acelerada.

_ Somos pessoas como você. Somos especiais. Chamo-me Elena e este é Charlie. – apoutou para o homem.

_ Especiais? Como eu? Não consigo entender vocês. Onde estão os Buscadores? E a Liza?

_ Garota, não existe nenhum Buscador e nenhuma Liza. – disse o homem se irritando. – Você esta sendo mantida presa desde os doze anos! Para que você não causasse nenhum transtorno eles a mantinham presa em um universo alternativo criado por eles. – disse revoltado.

Eu encarava sua costas com os olhos arregalados. Aquilo não podia ser verdade! Eu lembrava perfeitamente da Liza! Eu lembrava dos meus pais, da minha infância, da invasão, da quase extinção humana! Cada detalhe, cada sentimento, tanto de alegria quando de horror e desespero! Aquilo não podia ser INVENTADO!

_ É mentira! – gritei com lagrimas escorrendo pelo rosto.

_ Se não acredita, não sou eu que vai convencê-la. Mas se quer provas então fique e deixe que eles a prendam lá de novo. Garanto, não vai ser a mesma coisa. – riu sombriamente e meus pelos da nuca se arrepiaram. Por mais que o que ele afirmava fosse surreal, eu não conseguia me imaginar parando onde estava e me deixar ser pega seja por quem.

Acelerei a corrida me aproximando cada vez mais de um porta clara. Charlie empurrou e nos deparamos com um pátio gigantesco. Ele estava vazio, não, tinha pessoas lá. Homens e mulheres caído no chão, todos com armas ao seu lado. Estavam desacordados.

Estava preste a fazer mais perguntas quando Charlie voltou a correr. O segui, Elena ao meu lado agora.

Passamos por um grande arco de metal e entramos em outro corredor. Este era menor e com outra porta no final. Passamos pela porta e nos deparamos com outro pátio, mas este era gigantesco, nem parecia um pátio, mas sim um campo aberto, como se eu estivesse em um estádio de futebol de tão grande que era. Este estava literalmente vazio. Não tinha pessoas caídas inconscientes no chão ou nada do tipo.

_ Cadê eles! Eram pra estar aqui! – gritou Elena olhando pro céu azul cheio de nuvens brancas e perfeitas.

_ E estão. Ali! – apontou Charlie para um ponto do céu. Eu só vi nuvens, mas logo avistei um ponto negro se aproximando cada vez mais rápido e ficando cada vez maior. Dei um passo para trás assustada.

_ Tudo bem, são amigos. Vieram nos buscar. – disse Elena colocando a mão sobre meu ombro para me tranquilizar. Agora que viu que seus amigos estavam vindo nos buscar ela se calmou e ficou serena novamente. A ideia de não conseguir sair desse lugar a transtornava.

Assenti e dei um passo à frente. Era um jato de metal escuro, quase preto. Ele era enorme, mas ainda assim pequeno de mais para esse campo imenso. Ele pousou suavemente e da parte de trás abaixou uma rampa. Dela desceu umas três pessoas, duas eram adultas e a outra era uma garota um cabeça mais alta que eu. Os outros dois eram uma mulher e um homem.

_ Rápido! – gritou a garota.

Elena correu e me puxou, Charlie atrás e sempre olhando em volta se certificando de que ninguém nos cercava ou iriam atirar ou coisa do tipo. Entramos no jato e as três pessoas vieram atrás. A rampa subiu novamente e fechou a entrada. O jato imediatamente levantou voo.

Não estava escuro, era claro lá dentro, tinha umas dez poltronas de avião.

_ Você conseguiram! – disse a garota aliviada. Agora que estava perto, percebi como ela tinha um rosto e um jeito delicado.

Ela abraçou Elena com tanta força que consegui ouvir seus ossos estralarem. Bem, para uma garota de aparência delicada, ela era bem forte.

_ Não foi fácil. Os pegamos de surpresa, mas eles estão bem equipados. Poderíamos ter resgatado mais de nós, mas logo chegariam reforços, não podíamos arriscar, não íamos ter força suficiente para detê-los. – disse Charlie irritado.

_ Demos conta do primeiro “batalhão”, mas não foi o suficiente... – disse Elena tristonha. – Tantos que deixamos para trás...

_ Não se preocupe Ele, vamos salvá-los. Não se preocupe. – disse a mulher. Ela era ruiva, cabelos lisos compridos até a cintura. Ela devia ter uns trinta e dois anos, por ai. Tinha uma feição doce e maternal. Então olhou para mim. – E você, criança, como se sente?

_ Ela não lembra de nada, ficou teimando que sua memória implantada é real. Falando sobre uns tais de Buscadores e uma tal de Liza. – contou Charlie sem olhar pra mim. Apenas se jogou em um das poltronas e fechou os olhos com uma expressão cansada e massageando as têmporas.

Encolhi-me.

_ Eles são reais! Eu me lembro! – o fuzilei com os olhos.

_ Esta tudo bem. Eu entendo que isso esteja sendo confuso, irritante e assustador. Fique tranquila. – disse a mulher com sua voz doce e amável. – Me chamo Lilian. Qual é o seu nome?

A encarei achando que tentaria me convencer a acreditar na história de Charlie, mas apenas perguntou o meu nome.

_ Jessie... Meu nome é Jessie. – falei. Por mais que minha mente estivesse confusa sobre o que era real ou não, o que existia ou não, verdade ou mentira, de uma coisa eu tinha absoluta certeza: Jessie era meu nome de verdade.

Lilian deve ter percebido a minha linha de pensamento pois sorriu alegre.

_ Bem, acho melhor vocês descansarem, logo chegaremos em casa. – falou suavemente e se virou indo em direção a uma porta que ficava na frente da fileira de poltronas, entrou lá e pela pouca brecha que se permitiu aparecer, era a cabine do piloto e tinha uma pessoa lá – claro, tinha que ter um piloto. Só não sabia se era homem ou mulher.

Todos se dispersaram e se sentaram nas poltronas. Elena se sentou ao lado do outro homem em uma das poltronas da frente e Charlie continuava com os olhos fechados massageando as têmporas. A garota veio em minha direção.

_ Prazer, Jessie. Meu nome é Hermione. – e estendeu a mão. Ela tinha leves sardas no rosto, cabelos na altura do ombro da cor acaju e volumosos, mas brilhantes e bonitos.

Estendi a mão de volta e apertei a sua. No momento em que apertei sua mão senti a realidade me invadir. Não era nada comparado com as minhas lembranças. Quando Liza me abraçava quando eu entrava em desespero eu me reconfortava, eu me sentia segura e protegida, mas no fundo eu sentia falta de alguma coisa.

Aquilo não. Aquele contato simples de duas mãos era real.