As feridas doíam, talvez eu estivesse ficando fora de forma para terminar nesta situação que me encontro: coberto de golpes, mordidas e sangue, sangue meu e de outras tantas pessoas inocentes ou não. Porém, o que mais me doí no momento é o choro daquela criança, não entendo o que me motivou a salvá-la, mas aqui está ela. Antes de tudo é melhor eu me apresentar, sou Vallanor Dothraki, um dragão de ouro e me encontro atualmente em uma caverna no alto de uma quase planície, participava de uma guerra contra o exército de Numatham, enfrentava um odioso dragão vermelho ao lado de um bom amigo chamado Thudrill Eroldor, valoroso arqueiro arcano e sua esposa, Aeloar, uma habilidosa maga, ambos vindos da Ilha de Cristal, terra dos imortais elfos que se dignaram a trazer sua ajuda para a campanha contra Numatham.

Os exércitos humanos, élficos e anão se uniram contra a tirania que o reino de Numatham estava passando já havia alguns bons anos e foi decidido que aquilo não poderia mais continuar, mas foi uma guerra terrível e infelizmente a aliança precisou bater em retirada para evitar mais mortes, foi quando eu vi meu bom amigo Thudrill ser morto por um guerreiro de capa escarlate com o símbolo do reino, percebi que Aeloar corria desesperada gritando um nome, e este eu consegui entender como “Celina”. Para a minha surpresa, no meio daquele caos, escondida perto de um dos escombros do que havia sido uma estalagem, se encontrava uma criança de pouca idade, parecia-me que nem havia começado a andar com as próprias pernas direito.

- Celina, filha!

Antes de Aeloar chegar até a criança, uma espada a trespassou e era a mesma espada que havia matado Thudrill, o homem de capa escarlate havia assassinato os dois mais fortes membros do exército da aliança e sua lâmina completamente ensanguentada já se preparava para matar Celina, que paralisada de medo só conseguiu chorar, foi quando, de repente, dei uma lufada de vento com as minhas gigantes asas e arremessei o guerreiro escarlate para longe da menina e com minha pata traseira e agarrei delicadamente, eu queria evitar que ela fosse banhada em sangue, mas foi o meu próprio que a cobriu, a minha pata traseira estava ferida. Voei o mais alto que pude, me atentando de que o dragão vermelho não viesse atrás de mim e só pousei a alguns bons quilômetros daquele caos, procurei um abrigo e encontrei esta caverna onde estou agora, na companhia desta criança elfa, Celina. Talvez agora esteja mais clara a intenção de salvá-la, seus pais eram pessoas boas e foram bons companheiros de batalha, mas de toda forma aquilo soava estranhíssimo: um dragão criando uma criança elfa?

Celina era pequena, deveria ter, se colocarmos em idade humana, seus um ano e meio de idade, era praticamente um bebê ainda que caminhava sem firmeza nas pernas, parecia que tinha começado a aprender há pouco tempo, tinha os cabelos escuros e lisos, que estavam presos em uma trança, mas parecia ser já ter um comprimento bom; os olhos eram os mesmos do pai, acinzentados, mas com o brilho que a mãe tinha nos olhos. Ela estava vestida com um vestido típico de sua raça e parecia estar com alguns machucados nos braços e pernas, chorava sem parar e aquilo já estava irritando o bastante.

- Ora menina, acalme-se.

Parecia que ela não entendia o que eu falava, o que era óbvio, uma criança não entenderia dracônico, tentei falar em comum e em élfico e parece que ela começou a entender um pouco, mas sua ação em seguida me deixou surpreendido: caminhando com a dificuldade de quem acabou de aprender, se aproximou do meu corpo gigantestco e o acariciou gentilmente.

- Bonzinho.

Foi o que ela disse e aquilo me fez aproximar meu pescoço e minha cabeça para mais próximo dela que sorriu inocente e desta vez acariciou o meu focinho, não vou negar que foi algo muito bom de se sentir, só que de repente ela voltou a chorar...O jeito era deixar que o cansaço a vencesse. Os primeiros dias foram difíceis, absurdamente difíceis, como estava muito ferido e me regenrava aos poucos, precisei alimentar Celina com o meu sangue, nas primeiras vezes ela o vomitou mas foi se acostumando, vez ou outra um animal distraído entrava na caverna e eu o atraia até mim, para em seguida matá-lo e servir para que ela pudesse comer, eu me alimentava do que sobrava, já que posso sobreviver com anos sem ingerir comida. A elfa ficava na maioria do tempo olhando para mim, sem dizer nada, resolvi começar a ensiná-la algumas coisas, como a falar dracônico por exemplo, e ela como todos os elfos, aprendia rápido.

Os anos passavam e percebi que já era hora de mandar Celina embora, ela podia se virar bem já que suas características raciais a ajudariam a sobreviver, não era certo que um dragão ficasse com uma outra criatura que não a de sua espécie, resolvi usar meus poderes para chamar um aliado, um gigante das montanhas de tendência boa e o pedi para deixar Celina, esta então com quatro anos, em algum lugar com civilização, mas mudei de planos ao vê-la agir como um...dragão!? Ela corria de um lado para o outro com as mãos levantadas em posição de garras e fazia grunidos com a boca, notei o que pareciam ser o crescimento de escamas na ponta de seus dedos, foi por ela estar se alimentando de mim, e eu não previa que aconteceria, o corpo dela aceitou bem o sangue de um dragão, por mais que dragão ela não fosse e sim uma elfa. Decidi começar a treina-la então para ser discípula de dragão e depois de mais alguns anos eu planejava deixá-la, mas eu não sabia que só faria isso muitos, muitos anos depois pois percebi que não conseguia ficar longe de Celina que aos meus olhos era a minha querida filha.

- Papai! Veja isto, minhas escamas cresceram mais!

- Isso é ótima Celina, agora por que não vai lá fora treinar seu sopro? Eu preciso dormir...

- Mas papai, você dorme demais, eu fico sozinha!

Celina completou seis anos, na contagem humana, e estava se tornando uma bonita elfa, os cabelos mediam abaixo de sua cintura e algumas mechas dos cabelos estavam trançadas, consegui roupas melhores para ela e de um tempo para cá ela começou a dizer que seria um dragão de ouro tão admirável quanto a mim, mas insistia em dizer à ela que ela não era um dragão e sim um elfo, diálogo este que ficava por horas, ela afirmando e eu negando. Os hábitos dela realmente eram os de um dragão de ouro filhote, ela estava começando a ter sopro de fogo e as escamas já estavam mais evidentes nos braços e pernas, mesmo que delicadas e finas, comia carne crua e plantas rasteiras, além de dormir encolhida, como um filhote de dragão e aquilo me preocupava pois tinha a intenção de deixá-la e foi nesta época que tivemos a primeira e pior briga de que nem gosto de me recordar.

- V-Você vai embora? Vai voltar para seu covil? – Ela dizia atônita, com um misto de alegria e tristeza, afinal, aquela caverna estava sendo sua casa.

- Sim, daqui a alguns anos já estarei totalmente recuperado e preciso deixá-la em algum lugar habitável antes de partir para minha casa.

- Me deixar? Como um dragão de ouro pode deixar seu filhote de ouro para trás? – Ela rosnou.

- Celina, já disse que você não é um dragão, você é uma elfa! Precisa conviver com seu povo, e um dragão não anda em bando, é um ser solitário, já te expliquei isso minha filha.

- Eu não sou elfa, eu sou um dragão! Sou Celina Dothraki, filha de Vallanor Dothraki! Onde você for, eu irei também!

- Não vai, você não pode ir no meu covil, você não é um dragão!

- Eu sou um dragão, eu tenho escamas e veja só, minhas garras estão crescendo! Logo eu irei ter um sopro perfeito, não há outra característica que me faça deixar de ser um dragão!

- Pela última vez, você não é um dragão! – Foi a primeira vez que gritei com ela, a montanha toda tremeu e tudo ao redor, nem me lembrava do último rugido que dei e pude ver o terror nos olhos de Celina. – Você precisa ir embora!

Penso aqui em como me arrependi daquelas palavras, os olhos acinzentados começaram a derramar lágrimas e o soluço dela ecoou por toda a caverna, ela deu meia volta e saí correndo para a entrada daquele lugar e desapareceu durante dois dias inteiros, sem sequer me dar alguma notícia. A princípio achei melhor daquele jeito, ela já tinha algumas habilidades que eu havia ensinado e saberia se virar, podia me concentrar em terminar de me recuperar e seguir para meu verdadeiro lar, foi assim que pensei, mas sentia algo ruim dentro de mim, não percebi que havia desaprendido a viver na solidão, Celina havia me envolvido de forma que nunca fui e nem sabia que poderia ser, mas era natrual, afinal, era minha filha. Quando me dei conta do que havia feito à ela eu me sentia desesperado, e se minha Celina estivesse em apuros? E se tivesse morrido? Eu me amaldiçoei por te-la tratado daquela forma e já me preparava para sair daquela caverna e ir atrás dela, mas não foi preciso e para meu alívio uma voz tímida ecoou pelo local me chamando.

- P-Papai...

Celina estava coberta de sujeira e tinha feridas pelo corpo, além de sangue, parecia que eu tinha voltado no tempo, na época em que a salvei e aquilo me preocupou bastante, o que tinha acontecido? Eu estiquei meu pescoço afim de alcança-la e a lambi, querando tirar aquela sujeira toda dela, foi quando ela começou a chorar e abraçou meu focinho.

- Me perdoe filha, eu não fui bom com você...

- E-Eu fiquei tão assustada quando aquele goblin me atacou...

- Como você fugiu? – Eu realmente estava com vontade de matar goblins malditos agora.

- Eu usei meu sopro nele... – Ela disse enxugando as lágrimas.

- V-Você melhorou seu sopro? – Fiquei surpreso, foi muito rápido.

- Sim...daí antes que eu pudesse fugir apareceram mais deles e depois de apanhar um pouco, tropeçar e sair rolando pelo chão, consegui alcançar a caverna...

A princípio eu fiquei com vontade de rir da cena, mas meu odio pelos goblins foi maior, como eles ousavam ferir a filha de um dragão de ouro? Enquanto terminava de limpar Celina, ela voltou a chorar e quando perguntei se ainda doia algum lugar ela disse:

- É a primeira vez que você lambe seu filhote, papai...

- Celina...

Era verdade, eu sempre fui de evitar contato com ela, mas quando pensei que poderia perde-la, o sentimento paternos que estava ainda crescendo se expandiu de uma vez e eu comecei a ser mais carinhoso com Celina que me retribuia com muita atenção, carinho e amor. Ela começou a dormir debaixo do meu dorso, então eu podia encostar meu focinho sobre ela e apoiá-la com uma das minhas batas dianterias, quando ela estivesse melhor iria pedir para que me mostrasse o seu sopro e pude ver ainda mais escamas se formando pelo corpo da minha filha, me senti orgulhoso mas no fundo sabia que ela não era um dragão e que cedo ou tarde eu precisaria deixá-la viver e conhecer o mundo, e foi o que aconteceu, quando ela já tinha se tornando uma moça bela e forte.

- Eu irei deixá-la em um mosteiro nas proximidades, preciso cumprir uma missão já que fiquei muito tempo fora da ativa.

Eu já estava completamente curado e devo isso à Celina também que cuidava de mim, uma boa filha sem dúvidas, mas para encaminha-la até o mosteiro humano, precisei disfarçar-me de elfo.

- Pai. – Ela disse olhando para mim. – Eu prefiro a sua forma original.

- Eu não posso aparecer na minha forma original, Celina. – Respondi enquanto desciamos a montanha. – E eu também sei que você queria voar nas minhas costas, não é?

- Eu vou sentir saudades de passear com você, papai! – Ela fez um bico com os lábios e eu sorri para ela, também ficaria com saudades da minha filha, mas era preciso que eu cumprisse minha missão na eterna busca da derrota do mal.

Eu e Celina chegamos até o mosteiro e o grão-mestre aceitou treinar minha filha até a minha volta, apesar de se sentir um pouco estranho pois ela era a única fêmea no local, por isso frisei que se algo acontecesse com ela, eu não os perdoaria, foi daí que percebi que era um pai ciumento. Quando fui despedir-me dela, senti uma profunda tristeza mas não podia reclamar da situação agora, ela aceitou bem conviver com outras raças e conhecer mais sobre o mundo até a minha volta o que prometi não ser tão longa.

- Um dragão nunca esquece. – Ela repetiu várias vezes. – Eu estarei esperando sua volta, pai.

- Cuide-se minha filha e aprenda os modos dos humanos e elfos, você precisa conviver com sua raça e aprender muitas outras coisas.

- Mas eu sou um dragão.

Preferi não discutir aquilo agora, sabia que ficariamos por dias debatendo então resolvi partir de uma vez e desejei em dracônico muita sorte e felicidade à ela que me respondeu que ficaria mais forte e seria digna de conhecer meu covil verdadeiro, aquilo me deixou animado, ela estava mais madura, também, com cem anos, uns dezoito na idade humana, se compararmos, era natural que acontecesse. Parti deixando minha filha para trás, sozinha, eu sei que ela ficaria bem.

O tempo passou rápido e eu não reparei, já haviam sido sete anos, isso é muito pouco para um dragão como eu, mas estava na hora de voltar e ver como estava minha filha que acreditava já ser uma poderosa monge, queria testar seus novos poderes e parti para o mosteiro aonde havia deixado-a, mas ao chegar eu entrei em desespero, não havia mais mosteiro, apenas ruínas e ossos humanos por todo o local, parecia um cemitério e temi pela vida da minha filha. Transformei em elfo e comecei a buscar por sinais dela, será que seu corpo estava entre aqueles tantos mortos? Senti algo molhar o meu rosto e percebi que eram lágrimas...pela primeira vez em toda a minha existência eu chorei, só em pensar que minha filha tinha morrido. Analisei o local e ele foi totalmente incinerado, pela proporção e pela forma que foi só poderia ter sido um dragão, e foi quando senti um frio na espinha ou pensar que poderia ter sido o dragão vermelho que havia feito isto.

- Não sinto o cheiro dela...

Comecei a procurar e não obtive nenhuma pista do paradeiro da minha filha, nem sequer uma escama, então ainda havia esperanças de que ela não estivesse morta, mas então, onde estaria? Não havia outra alternativa, uma nova missão eu precisava cumprir e seria a mais importante dentre todas que já fiz: Encontrar Celina, minha filha e não mediria esforços para localiza-la e punir o mal que havia feito aquela chacina. Era o meu dever como dragão de ouro, não...como um pai que ama a filha. Assim, começou a minha busca por Celina e eu tinha certeza que a encontraria, de todo jeito.

Um dragão nunca esquece...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.