Ela se desvaneceu. Lyudmila simplesmente desapareceu daquele lugar. Encarei a foto do meu suposto avô sem cerimônias. Era aquilo, não havia mistério que eu tinha ganho uma pista da minha árvore genealógica. Tudo o que eu fiz durante anos para descobrir alguma coisa sobre minha família estava o tempo todo aqui, nesse lugar que nem mesmo eu sei, e tudo que eu sabia não se passava de sombra.

Acordei e logo me dei conta de que não estava mais no clube. Estava na minha casa, onde eu a dividia com Anastasia. Havia um lenço perto da minha boca, e eu estava embrulhada em vários edredons. Me levantei bruscamente da cama para encontrar com a minha irmã, pois não lembrava do que acontecera depois de desmaiar no clube.

Andei em passos suaves, não porque eu queria, mas pelos meus pés estarem muito doloridos. Como se eu tivesse andado por quilômetros na noite anterior. Logo ao descer as escadas, encontrei Anastasia lendo uma revista enquanto tomava um cappuccino, ela não parecia estar me esperando.

–O café está na garrafa térmica -Ela disse, sem demonstrar surpresa ao me ver.

Assenti com a cabeça e andei até a cozinha, onde estava a garrafa térmica e uma caixa de cereal ao lado. Preparei o café e adicionei chocolate em pó, depois separei uma tigela de leite e pus o cereal. Meu café da manhã.

–Como vim parar aqui? -Perguntei

Anastasia abaixou a revista e olhou em minha direção

–Misha trouxe você até aqui. Deveria agradecê-lo, estavas mais bêbada que um cachaceiro em fim de semana.

–Eu não -Dei uma pausa -Eu não tive a intenção de estragar a minha noite. Dmitri me ofereceu vodka, e eu aceitei, estava feliz.

–Para -Ela levantou a mão direita -Para de culpar as pessoas pelos seus erros. Quantas vezes você já fez isso? Incontáveis! Isso não vai te ajudar, e agora Misha saiu daqui cabisbaixo porque não sabe como te ajudar!

Ignorei-a. O que ela disse poderia ser verdade, mas meu ego era alto demais para poder admitir. Encerrei meu café da manhã, lavei minha louça e fui para o meu quarto ligar para Misha. Mordi meu lábio inferior de tanta ansiedade, pois não queria que ele pensasse que eu era uma idiota alcoólatra.

–Alô? –Ele atendeu

–Oi, Misha. Eu… Eu queria te pedir desculpas.

–Não adianta, Polina. Eu te amo, mas toda essa irresponsabilidade é… demais para mim.

–Eu sei. Sei que sou irresponsável, mas dessa vez não foi culpa minha. Eu desmaiei Misha, eu desmaiei. Você precisa entender.

–Sinto muito, Polina. Eu preciso de um tempo.

Em seguida Misha desligou. Pus o celular ao meu lado na cama e suspirei. Logo em seguida senti uma dor aguda na costa, como se tivessem perfurado a minha pele e chegado quase na base da coluna. Andei com dificuldade até o banheiro e tentei me virar para o espelho, de modo em que eu pudesse ver o local afetado. E eu consegui ver, na base da minha coluna, um buraco fino, pequeno, porém fundo de modo a haver sangue já coagulado. Me espantei e voltei para o quarto, remexi os edredons, virei os travesseiros, e finalmente, na colcha da cama, encontrei sangue. Meu sangue.

Troquei de roupa, prendi os cabelos e fui em direção ao hospital, sem avisar minha irmã. Desci as escadas e percebi que Anastasia ainda estava lendo a revista. Não parecia se preocupar com nada. Tentei sair sem dar satisfação.

–Aonde você vai? -Ela me perguntou sem desviar os olhos da revista

–Vou fazer compras -Respondi diretamente e em seguida fechei a porta.

Fiquei 1 minuto na frente de casa sem saber o que fazer, para onde ir. Eu precisava saber porque tinha um buraco fundo e com sangue coagulado no final da minha costa, mas também não queria me submeter à exames e diagnósticos fúteis. Acho que no fundo eu sabia o que eu tinha.

Até que tive uma ideia. Na manhã que eu tive hipotermia e fui levada ao Dr. Ulyanov, bem, ele parecia ser estranho o suficiente para eu confiar nele. Ele também já tinha conhecimento do meu caso naquela manhã, e do quão estranho foi aquilo, e mesmo assim só deu recomendações, sem exames e sem nada. Bom, era para lá que eu deveria ir.

Rapidamente então eu peguei o metrô até o hospital em que eu tinha sido atendida naquele dia. A dor parecia estar se intensificando e eu realmente não tinha ideia do que estava acontecendo. Me sentei em uma das cadeiras do metrô e segurei o local do ferimento, que provavelmente já havia voltado a sangrar pois eu sentia a minha blusa levemente molhada.

* * *



–Você levou um tiro? -Perguntou o dr.Ulyanov assim que viu a minha costa, um tanto surpreso

–Não. Eu não sei o que houve, eu acordei assim, mas já estava coagulado. Agora voltou a sangrar de leve.

–Isso é...bem -Ele tossiu -Estranho demais eu tenho que dizer. Vou ter que passar um hemograma para você saber, tudo bem?

– Sim, bem, por mim tudo bem…

O dr. Ulyanov parecia ter uma expressão de culpa. Como se ele soubesse o que estava acontecendo, ou pelo menos suspeitando.

Só não queria me contar.

Peguei o encaminhamento para autorizar o hemograma. Saí da sala do dr.Ulyanov, e o mesmo parecia cabisbaixo, coçando a nuca com o dedo indicador.

Autorizei o hemograma e saí do hospital. Da minha bolsa tirei um maço de cigarros, mas antes que eu pudesse acender um, eu lembrei de Misha. Lembrei que ele me achara uma irresponsável todo esse tempo e eu sequer sabia. Engoli em seco e em seguida resolvi guardar o maço de cigarros.

Fui pegar o metrô de volta para minha casa. A esta hora Anastasia poderia estar preocupada -Ou não

Depois de esperar dois minutos pelo próximo metrô, ele chega. Ponho os meus pés dentro dele e logo percebo que não estou mais lá. Estou naquele local de novo.

Ainda conseguia ouvir o barulho do metrô correndo, mas sabia que não estava lá. Eu estava num lugar aparentemente calmo, havia almofadas no chão e uma rede laranja que balançava ao vento. Mais à frente havia uma cadeira de balanço e Lyudmila estava nela -Ela tinha aparecido de novo.

–Já começou a apresentar os primeiros sinais. E isso só vai aumentar, Polina. -Ela disse em tom firme.

–Aquele médico -me aproximei -o dr.Ulyanov, ele sabe de alguma coisa, não é?

Ela virou o rosto para mim

–Logo saberá. Você é uma pessoa especial, mas infelizmente parte desse experimento horrível…

–Espera, que experimento?

E ela desapareceu de novo, sem explicações. E eu acordei, com a cabeça quase que apoiada no senhor ao meu lado.

–Desculpe-me. -Eu disse, envergonhada.

Depois de algumas horas, Anastasia foi ao mercado. Em seguida, peguei meu laptop e me sentei no sofá da sala de estar para escrever a situação num tipo de “diário virtual”. Os blackouts, as supostas alucinações… Só que em torno de 10 minutos mais tarde ouço a campainha de casa tocar. Fui abrir a porta deslizando com as minhas meias e me deparo com uma figura alta, de cabelos prateados e olhos escuros -Dr.Ulyanov

–Como...como sabe meu endereço? -Perguntei

–Estava na ficha -Ele respondeu no seu típico tom amargo

–Ah, claro, a ficha. Por favor, entre.

Ele entrou sem cerimônias e se sentou ao lado do meu laptop na sala de estar. Estava engolindo em seco e seus punhos estavam cerrados como quem tivesse palavras na garganta mas as prendesse, evitando falar.

Mas aparentemente hoje isso iria mudar.

–Eu vou pegar um chá. Espero que goste de cidreira -Fui à cozinha colocar um saquinho de chá em fusão no bule e em seguida voltei para a sala.

–Então -continuei -O que houve?

–Eu preciso falar com você -Ele abriu os punhos e deitou as mãos nas coxas, deslizando asperamente sobre sua calça. -É sobre o seu problema. Como está a costa?

–Ainda dói -Eu disse passando a mão no local -E ainda não tirei o curativo.

Ele olhou para baixo e mordeu o lábio inferior

–Bom -ele disse -Isso é bom.

Fui buscar o bule de chá com duas xícaras numa pequena bandeja. Coloquei chá em sua xícara e na minha, dois torrões de açúcar para cada.

–Obrigado -Ele disse enquanto mexia o açúcar.

Me sentei na poltrona da frente sabendo que aquilo iria demorar. Ele não tinha vindo à minha casa só para perguntar como ia minha costa, afinal, eu era apenas uma paciente qualquer. Eu sabia que daquela vez era diferente.

–Você quer me dizer alguma coisa. Vá em frente e diga. Eu sou uma aberração, é por isso que está acontecendo essas coisas comigo? -Perguntei ironicamente enquanto tomava um gole do chá.

Ele olhou para os dois lados como quem quisesse atravessar a rua. Hesitou um pouco, mas logo em seguida tirou a camisa, para a minha surpresa.

–Ei…! Espera, o que diabos você está fazendo? -Perguntei alarmada

Mas logo consegui ver. Um ferimento igual ao que eu tinha na base da coluna, profundo, coagulado, parecia um tiro. No caso dele, bem na direção do seu coração.

–Jesus! -Eu me aproximei para ver melhor o ferimento -Parece que enfiaram um micro-tubo aí e retiraram parte do seu coração!

Eu quase toco no ferimento. Mas fiquei com vergonha. Engoli em seco, mas resolvi perguntar.

–Posso…?

Ele assentiu com a cabeça. Não aprecio muito contato físico com o sexo oposto, principalmente depois que eu e Misha terminamos. Eu consegui sentir aquela ferida, era áspera; fazia tempo que ele não tocava naquilo. A coagulação interna já não era mais vermelha, e sim preta, como se realmente fosse um buraco no coração dele. Era um pouco disfarçado por uma tatuagem de rosa dos ventos no centro de seu peito, em que o leste pegava parte do buraco, minimizando a visão torturante daquilo.

–Obrigada -Eu disse sutilmente e afastei a minha mão. -Então, do que se trata tudo isso?

Ele vestiu a camisa de volta para poder falar

–Você é uma lunatiki. Nós dois somos lunatiki.

–Lunatiki? Como as pessoas que andam dormindo, os sonâmbulos?

–Exatamente. É como somos chamados desde a Guerra Fria. Eu não sei muito sobre isso, mas o cientista que teve grande envolvimento no projeto foi um senhor chamado Vladimir Volkov.

Associei rápido. Volkov, o idoso que apareceu naquela fotografia, aquilo tudo se encaixava.

–Meu avô -Pensei alto

–Como disse? -O Dr.Ulyanov franziu a testa

–Essa pessoa que você mencionou era meu avô. Eu sei disso! Eu o vi quando tive as alucinações, a senhora Pavlichenko me disse sobre ele.

–Senhora Pavlichenko? Você quer dizer Lyudmila Pavlichenko, a sniper?

–Exatamente.

Ele pegou sua mochila e parecia estar procurando alguma coisa

–Eu sei que você tem muita coisa para me contar -Ele disse enquanto procurava algo na mochila -Então devemos ir ao lugar em que isso está acontecendo.

–O que quer dizer? -Perguntei intrigada

Ele retirou duas seringas da mochila e pôs em cima da mesa, ao lado do bule de chá. Encarei aquilo por um momento e finalmente disse:

–Não. Não, não, não, não, definitivamente, não.

Ele suspirou

–São só sedativos. Não vão lhe fazer mal. Não dá para cair no sono do nada, precisamos de um estímulo, ou o contrário, nesse caso.

–Mesmo assim… é de agulhas penetrando a nossa pele que estamos falando.

Ele segurou meus ombros com suas duas mãos e me olhou bem nos olhos.

–Confia em mim. Não descobriremos porque exatamente estamos assim se não procurarmos. Pode ter muito mais coisa envolvida nisso, você sabe. Além do mais, eu sou médico!

–Se todo o nosso futuro pode estar em jogo, e que precisamos nos mover para buscar uma solução, por que não o fez antes? -Perguntei enquanto encarava aqueles olhos castanho-escuro que mais pareciam dois buracos negros em que pudesse se mergulhar.

Ele tirou as mãos dos meus ombros

–Eu não tinha estímulo. Agora você é o meu estímulo. Você é a primeira pessoa real, fora de qualquer tipo de sonho que eu conheço. Isso me motivou.

Revirei os olhos e senti tique nervoso na perna. Eu sabia que aquilo não era seguro, mas eu tinha que confiar no dr.Ulyanov daquela vez. Eu precisava.

Ele pegou algodão e álcool e passou no meu antebraço, no local em que costumamos tirar sangue, e em seguida aplicou primeiramente em mim para depois aplicar nele.

–Então… acho que nos encontramos depois...Dr.Ulyanov…

Ele deu um leve sorriso

–Yuri. Me chame de Yuri.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.