Comprei a passagem para Vegas com a partida marcada para o mesmo dia, nutrindo a esperança de que sairia da Estônia e chegaria à América até à tarde do dia seguinte.

Peguei um táxi. Meus amigos, parentes e conhecidos não queriam crer que eu realmente iria sair do continente e deixá-los, por nem sei quanto tempo. O telefone tocava o tempo todo a ponto de me incomodar. Não agüentava mais vê-lo tocar e vibrar, então o deixei no silencioso; embora assim não resolvesse meu problema, já que ver nomes e mais nomes na lista de ‘Chamadas não atendidas’, me fez desistir e jogar o tal pela janela do táxi. O motorista me observou com os olhos esbugalhados pela janela do retrovisor. Fingi que não percebi seu olhar estupefato e comecei a pentear a franja com os dedos, sorrindo para o nada.

Logo depois, senti um baque. Tínhamos acabado de chegar. Eu não tinha muitas malas, mas as poucas que eu havia trazido, o motorista amavelmente se ofereceu em me ajudar a levar até a entrada do aeroporto. De início recusei a ajuda, mas ele insistiu, e enquanto levava as malas dizia que era a paga pela corrida mais agradável que já tinha feito. Eu sorri e perguntei o porquê do elogio. Ele disse num estoniano cheio de sotaque russo:

- Você tem a voz mais linda que eu já vi.

Corei até os dedos dos pés, e me lembrei que tinha cantado baixinho durante todo o trajeto. Num esforço agradeci o elogio, mesmo com o rosto em fogo.

Eu já estava num grande salão e caminhei lentamente até o balcão, onde uma moça uniformizada e com um sorriso mecânico me aguardava:

- Olá – comecei – tenho uma passagem para Las Vegas. Meu vôo demora?

- Não senhora – ela disse sorrindo forçadamente.

- Okay. Eu aguardo então.

- Fique à vontade. – respondeu ela sem desmanchar o sorriso ou sequer perder a pose.

Eu a olhei incrédula, mas sentei-me e esperei numas cadeiras que tinha por ali. Dali alguns minutos meu vôo sairia.

Logo depois, percorri milhas e milhas, atravessando um continente em busca de um sonho. Estava disposta e recomeçar minha vida num paísdiferente. Uma língua, uma cultura, e way life diferente de tudo o que já tinha visto e vivido. Como consegui um visto para ficar na América? Não quero contar, porque não quero nem me lembrar. Essa viagem, por mais que pareça repentina, já estava marcada havia muito tempo. Mas, por favor, não me faça lembrar isso! Por favor!

Quando eu cheguei a Las Vegas me senti totalmente deslocada. O céu não era constantemente cinza como na Estônia, e durante a noite, era mais brilhante que as estrelas cintilantes que eu via durante o início da madrugada, quando eu não conseguia dormir.

Para todos os lados, eu via mulheres seminuas, sorrindo, e fazendo o que bem entendiam no meio da rua. Eu vi homens fumando longos charutos e ‘conversando’ com garotas que tinham idade para estar no colégio. Fingi que nem tinha notado e me dirigi até um pequeno hotel, que devia me hospedar pelos próximos dias, ou até eu conseguir arranjar um lugar mais apropriado.

Depois reparei que na verdade, não era um hotel, e sim, uma pensão. Entrei naquele lugar com receio, uma vez que eu não sabia como me receberiam. O resultado foi o esperado: Nem notaram minha presença.

Eu estava me lixando. Tudo o que eu queria, era apenas descansar da viagem longa que tinha feito. Paguei uma quantia para a Dona do pensionato, para que ela me deixasse ficar por uma noite em interrupções. Tomei uma sopa na cozinha que tinha gosto de hospital enquanto rostos curiosos ficavam me perguntando de onde eu tinha vindo, uma vez que eu não tinha sotaque americano:

- Eu sou estoniana – disse para uma morena que me fitava com grandes olhos castanhos e curiosos.

O engraçado de fato, era a fixação por bonecas que ela tinha. Bonecas espalhadas pela casa, e algumas barbies sentadas no seu colo me davam a certeza de que alguém ali ainda sentia falta da infância.

Ainda assim, a moça não entendeu:

- Estônia é um país – expliquei – ele fica na Europa.

- Ah sim. – falou ela passando a mão nos cabelos – Mas eu nunca ouvi falar dele.

Os outros concordaram. Nunca tinham ouvido falar daquele lugar onde o céu era sempre cinza.

Torci o bico. Ninguém nunca sabia onde ficava meu país natal. Não me importei muito, entreguei o prato quase cheio para a moça que limpava a lugar; subi as escadas e me tranquei no quarto.

A cama estava pronta para mim e o quarto era pequeno. Pelo menos tinha uma janela alumiando o quarto com a luz da lua, me trazendo boas energias. Sim, eu cria em esoterismo, mesmo que pareça bobagem.

Olhando bem para meu novo lar temporário, eu podia ver uma pequena estante, uma TV, dois criados-mudos em cada lado da cama, e sobre eles, porta-retratos vazios quase gritando para que eu depositasse minhas antigas lembranças ao lado de onde teria novos sonhos.

A pequena estante cheia de livros me aguardava. Passei os dedos por entre ‘Dom Quixote de La Mancha’, ‘Urupês’ e até ‘Harry Potter’; sentindo-me deliciada com tudo aquilo.

O cansaço da viagem começou a fazer efeito. Eu estava me sentindo bem e super disposta até que a cama me parecera convidativa o suficiente para que eu me estabelecesse e me deitasse.

Diante da expectativa de uma nova casa, um novo país e uma nova vida; resolvi comemorar. Pulei com tudo em cima da cama. Mas infelizmente, sua grade de sustentação estava quebrada. Levei o tombo mais confortável da minha vida.

Fiquei afundada no colchão. Meu bumbum tocava o assoalho e eu não conseguia me mover.

Pensei em gritar para que alguém me socorresse. Mas parecia ridículo chamar alguém só por esse motivo, então tentei resolver por mim mesma. Não consegui. Aliás, consegui me afundar ainda mais. Droga de grade quebrada e colchão vagabundo!

Para meu alívio, o zelador apareceu e tentou me socorrer. Ainda bem que eu não tinha trancado a porta!

- Hei mocinha, você está bem? – começou ele.

- Sim, estou. – disse eu – mas a grade quebrou! Onde eu vou dormir?

Ele me estendeu a mão para que eu saísse de lá, que aliviada, aceitei.

O zelador parecia ser muito simpático. Mas eu desconfiava que ele fosse meio lelé. Logo quando eu liguei a TV, estava passando um filme que parecia sem bem interessante. Ele se chamava \'Do Começo ao Fim\' e ele logo me perguntou:

- Isso que está acontecendo é de verdade? São dois homens abraçados?

\"Homossexualidade está em todos os cantos meu querido\" pensei \"Será que ele não sabe que isso é um filme?\"

- Eles são amigos? - perguntou por fim.

A minha vontade era de gritar pra ele: \'\' ISSO É UM FILME! Não está vendo que ele foi editado? E é um filme que aborda um tema polêmico!\"

Mas percebi que ele era mesmo meio lelé. Senti um pouco de pena. A dona da pensão além de ser muito sacana com ele, ainda o explorava. Mas deixa estar, um dia eu a farei pagar por isso.

O Seu Zé saiu do meu quarto depois de dar um jeito na cama, na qual deitei com receio. Não queria que o zelador voltasse para fazer um novo reparo, já que de alguma forma ele me intimidava. Tomei um banho relaxante, vesti meu roupão e fechei a janela para me trocar, e depois de poucos minutos eu estava pronta para dormir.

Deitei novamente em minha cama, mas desta vez, fiquei pra valer. Acendi uma vela aromática ao meu lado porque o cheiro que o quarto adquirira depois de tanto tempo fechado não era agradável. Me virei de lado e fechei os olhos.

Life is my creation
Is my best friend
Imagination
Is my defense
And I\'ll keep walking
When skies are grey
Whatever happens
was meant that way

Subitamente, sentei na cama. Fiquei olhando para os lados para ver se tinha alguém mais no quarto.
Eu estava só.
Decidi sair da cama e tomar um copo com água. Não tinha mais ninguém acordado, então fui só de camisola mesmo.
Me deparei com as bonecas pela sala. De início tomei um susto, mas vi que era só mais um corpo inerte e miúdo no chão da sala, mas que ainda me atemorizava.

Decidi ir correndo até o meu quarto. Subi as escadas rapidamente querendo sair daquele pesadelo. Quando eu estava chegando na porta do meu novo quarto, a porta fechou-se subitamente.

Levei o maior susto de toda a minha vida. Fiquei petrificada diante da porta que eu não conseguia abrir. Ela estava trancada por dentro.

O ar estava ficando mais pesado. Eu não conseguia respirar. Parecia que uma aura demoníaca tinha invadido o lugar, me impedindo de respirar e ver ao meu redor com clareza. Meus joelhos fraquejavam. Eu não conseguia me manter em pé, por isso me ajoelhei no chão. O ar não entrava nos meus pulmões, e minha certeza era clara ao perceber que eu morerria se não desse um jeito.

Sentei de costas para a porta. Minhas vistas embaçavam, mas, antes de dar o último suspiro vi uma figura pequenina e frágil no final do corredor olhando pra mim. Era uma boneca.

Minhas mãos gelaram. Eu devia estar presa num filme de terror, só pode!

Ela vinha caminhando em minha direção numa calma espantosa. Consegui respirar um pouco, depois de muito tempo. A atmosfera foi ficando mais leve, minhas vistas foram ficando mais nítidas... Mas quando dei por mim... A pequena já estava no meu colo, sorrindo doentiamente enquanto punha as mãos no meu pescoço tentando enforcar-me.

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- E como você se sente sobre isso Kerli? - perguntou um rapaz negro, com idade entre 45 e 50 anos, vestido com um terno cinza listrado, totalmente fora de moda.

- O que você acha? - respondeu ela rispidamente - Estou no hospital, vítima de overdose.

O senhor negro respirou fundo, e logo mais tarde se apresentou:

- Eu vou te levar comigo.

Kerli, que até este momento nem tinha olhado pra cara dele, o encarou bem no fundo dos olhos:

- Isso deve ser piada.

- Não é não senhorita Kõiv. Você vai pra uma clínica de reabilitação comigo.

A loira riu:

- Ah qual é. Eu não tenho a cara de Amy Winehouse.

O senhor negro a olhou, sentou-se numa cadeira que estava por perto e disse:

- Porque você está se drogando Kerli? Você é linda, canta bem, é super divertida... Não tem motivos pa...

- Olha, você não sabe de nada da minha vida. - interrompeu ela - quer mesmo saber os meus motivos?

O negro se limitou a balançar a cabeça numa afirmativa e ela foi dizendo:

- Quando eu tinha 19 anos, Bill disse que me amava. Foi a coisa mais linda que eu já ouvi alguém dizer pra mim. Ele me deu até um presente. Mas infelizmente a alegria durou pouco. Chegou uma garota nova na cidade... A Ina. Não sei se foi proposital, mas ela conseguiu conquistar o coração do meu amor, e então, ele me deixou. Antes de ela chegar, Bill e eu tínhamos prometido um para o outro que iríamos para Las Vegas. Por isso que já tinha o Visto. Por isso eu já sabia onde ia ficar, quando ia vir... Já estava marcado. Meus delírios com a borboleta, era uma reação à data que já estava porvir, mas eu não tinha muita coragem de viajar sozinha pra tão longe. Até que um dia eu tomei coragem. Só que eu cheguei aqui... E me vi sozinha. Entrei em desespero.

- Você disse que ele tinha te dado um presente. Qual foi?

Ela sorriu diabolicamente.

- Uma boneca.



Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.