The Call

IV. Tudo o que queria ver


POV. Susana

Contemplei meu reflexo no espelho ao mesmo tempo que escovava minhas longas mechas castanhas escuras. Os fios escorriam feito ondas e contrastavam com minha pele alva e olhos azuis de céu, que pareciam mais escuros que o normal. Talvez pudesse ser a luminação do quarto, mas eu não seria hipócrita em dizer que meus olhos, assim como meu rosto, estava sem vida naquela noite.

Ou em todas as noites.

Pareceu piorar naqueles dois últimos fins de dia. Não dormi direito graças a pressão que meu peito padecia e a falta que Lúcia me fazia. Ela estava em seus últimos dias de estudo no colégio, mas mesmo assim, esperava que ela ao menos passasse um tempo conosco nesse final de semana. Comigo. Era a oportunidade perfeita para o que eu queria fazer. Para o que precisava fazer.

Eu estava decidida a seguir em frente com o desafio de Michael: iria me divertir. Me divertir não apenas ao lado de John, mas com minha irmã mais nova também. Ela já era uma moça, uma adulta que eu, em minha estupidez, a entristecia dizendo que ela não era. Já provou tantas vezes para mim, mesmo distante em suas cartas o seu amadurecimento... Acho que a maneira como lidei com ela foi uma forma do meu organismo se mostrar na defensiva, porque o que mais Lúcia queria me contar, era a sua última aventura em... Em...

Balancei minha cabeça na tentativa de desanuviar aquele nome da minha consciência, e soltei um bufo. Que droga! Eu precisava tirar isso de dentro de mim o mais rápido possível!

Distração, Susana... Somente distração.

Eu me distrairia, esqueceria qualquer coisa relacionada à histórias imaginárias sem precisar magoar quem quer que seja outra vez. A menos que essa pessoa insista, eu saberei contrapor e desconversar de uma maneira menos grosseira como das outras vezes. Isso poderia ser simples. Eu conseguiria.

Passei um batom na tonalidade próxima ao púrpura, que combinava com meus sapatos um pouco altos. O vestido preto moldava minha silhueta, mas não era nada muito exposto ou indecente, porque não queria chamar atenção naquele restaurante. Me olhei uma última vez no espelho e me virei para pegar minha necessaire sobre a cama, mas a abertura da porta chamou minha atenção.

Quase deixei escapar um suspiro de alívio ao ver Lúcia se aproximando com meu vestido em tom pêssego nas mãos.

— Oi — Ela cumprimentou sem me olhar. Seus olhos corriam por todo o cômodo na intenção descarada de me evitarem. — Vim devolver o vestido.

— Não precisa — proferi com a voz serena e gentil, a observando mesmo assim. — Fique com ele e use-o essa noite.

Finalmente ela me encarou, a testa praticamente partindo em duas pela sua expressão de sem compreender.

— Essa noite?

— Sim. — Me aproximei aos pouquinhos, pedindo internamente para que ela não me detesse. Eu queria abraçá-la, mas sentia que não tinha esse direito ainda. Mirei as duas esferas cristalinas com mais afinco, podendo até mesmo me contemplar nelas e respirei fundo, pensando nas palavras certas. — Lúcia... Eu nem sei como começar a...

— Eu sei — ela me interrompeu e passou por mim, indo em direção ao meu guarda-roupa, abrindo-o com brusquidão. — Vamos começar com o fato de você aceitar esse vestido de volta e...

— Não, espere — teimei de ir até ela e segurei seu pulso, a impedindo de caminhar ou fazer qualquer outra coisa que não fosse ficar quieta e me escutar. — Me perdoe, Lúcia. Me desculpe de verdade. Eu disse coisas que a machucaram...

— Sim, me machucaram — soltou, pressionando os lábios numa linha fina, tentando controlar suas emoções em vão. Eu quis sorrir diante da força dela. Lúcia poderia estar triste, mas não queria demonstrar. Ela era muito parecida comigo nesse quesito.

— Eu sei, por isso estou te pedindo perdão — mordisquei meu lábio inferior, nervosa. Meu coração sabia que esteve errado desde o início, mas pedir perdão me fazia sentir medo de Lúcia não ser capaz de aceitar meu arrependimento. — Prometo que nunca mais direi ou farei algo que a machuque assim de novo. Eu quero me redimir.

Sustentei seu olhar no meu com a respiração presa, meus braços arrepiados e a firmeza intacta no peito. Lúcia não desviou daquela vez, muito pelo contrário: ela aparentava querer contemplar a minha essência. E de alguma forma, eu lutei para transparecer tudo o que estava sentindo, porque minha irmã também tinha o dom de enxergar pessoas como ninguém.

— E como você pretende se redimir? — Ela interrompeu a quietude depois de um tempo me estudando, enfim, unindo suas mãos de frente ao abdômen, o vestido ainda pendurado no antebraço direito. — Tem que ser algo bem legal porque não sou de perdoar tão fácil...

A brincadeira perpetuou em suas cordas vocais e eu sorri de lado.

— É, sua pestinha? — Cutuquei sua cintura, finalmente arrancando sua risada que por muito tempo esteve presa na garganta, além dos seus olhos agora brilharem feito duas estrelas. Meu coração pulsou contente entre minhas costelas. — Pode ter certeza que valerá a pena. Será um passeio.

Ela franziu o cenho de leve, quase imperceptível.

— Um passeio?

— Sim. Iremos para o The Squirrels.

Minha irmã permitiu que sua boca pendesse para baixo. Pensei até que seu maxilar se deslocaria do crânio.

— Ah, meu Deus! Meu Deus, The Squirrels é tipo um bar!

— Você cresceu, Lu... — Proferi aquilo que ela sempre quis ouvir, e o que para mim era difícil de admitir também. Passei os dedos pelos seus cabelos, sentindo a textura macia dos fios castanhos. — Agora você sairá e aproveitará essa noite comigo. É um encontro de universitários. Como ano que vem você estará na universidade, é bom treiná-la.

Ela riu, sacudindo os ombros.

— Não sei se ano que vem terei tempo para essas coisas, mas...

— E não terá — eu disse logo, erguendo meu indicador, rindo com ela. — Você vai estudar feito uma condenada, Lúcia. Sério. Eu só estou saindo hoje porque meus colegas me convenceram. E John também.

— Deve ter sido uma batalha árdua deles.

— Ridícula — fui empurrar sua cabeça, mas ela se defendeu com a mão livre e me acertou no rosto, quase me fazendo borrar meu batom. Rimos juntas mais uma vez. — Vai se arrumar.

— Se arrumar para sair? — Nossa mãe entrou no quarto, pegando-nos de surpresa, secando as mãos no avental branco.

Lúcia correu até ela e beijou-lhe o rosto, erguendo a mão com o vestido em sua direção:

— Vou sair com a Susana e com os colegas dela, mamãe. Ela me deu esse vestido — contou eufórica, alternando sua agitação de olhar entre eu e ela. — Vou me arrumar!

Lúcia sumiu das nossas vistas às pressas, e somente eu e minha mãe ficamos no quarto. Com um sorriso e um balançar de cabeça discreto, minha mãe se aproximou, os passos firmes e decididos intermitentes até me alcançarem, suas mãos agora alisando meus cabelos como eu mesma tinha feito com Lúcia há pouco tempo.

— Cuide bem da sua irmã, Susana, conforme aquele esquema que sempre tivemos e combinamos juntas.

Eu sorri, a encarando com profundidade, colocando todo meu coração e verdade em minhas palavras. O esquema sempre fora esse: eu substituí-la no cuidado e apoio quando não estivesse por perto. Era a minha responsabilidade. Sempre fora. Não importa quanto tempo leve.

— Pode deixar, mãe.

*

O som das gotas de chuva que escorriam pelo para-brisa me acalmavam. O som precioso e atípico naquela época do ano me dava a sensação de paz e tranquilidade. Era como uma canção de ninar embalando pouco a pouco minhas emoções e meus sentidos, trazendo aquele conforto e distração que eu estava precisando.

O trajeto não foi tão longo, muito pelo contrário: John soube driblar as poças que se formavam aqui e ali e alcançou o restaurante coberto em seis minutos. O local novo era bastante iluminado e bem sofisticado com paredes rústicas de marfim, além da apresentação ser completamente requintada. Lúcia, no banco de trás, estava faladeira, alegre como eu esperava que estivesse, e parecia tão ansiosa para aproveitar aquela noite como Johnny aparentemente estava. Tanto que os dois juntos pareciam ter muito assunto em comum. Se minha irmã não o aceitara muito bem a princípio, agora já não aparentava ser um problema...

— A Susana me pegou de surpresa — ela disse enquanto gesticulava e suas pulseiras chacoalhavam, sendo monitorada pelo meu namorado enquanto adentrávamos o restaurante.

Nos pegou de surpresa, cunhadinha — ele emendou, enlaçando minha cintura com firmeza. — Eu também não sabia que ela queria sair essa noite.

— E não queria — eu disse séria, bem sincera também, olhando os dois ao mesmo tempo que sentávamos na mesa livre. — Fui convencida a vir pelos amigos.

— E onde eles estão?

Franzi o cenho e olhei ao redor, procurando Anne e Michael em cada canto daquele lugar, o que era perto do impossível naquele momento. O estabelecimento estava lotado! Jovens universitários de toda parte combinaram de se encontrarem ali, deixando o ambiente todo somente para eles. Para nós.

Durante a minha busca, reparei que alguns nos observavam com interesse, já que éramos os novatos por aqui. Eu tinha conhecimento de que existiam uns que tinham o costume de sempre passar o final de semana enchendo a cara, excedendo o tempo na distração dos conhaques e charutos. É claro que para eles virem eu, que sempre me mantive na minha solidão confortável, era uma surpresa e tanto. Ainda mais quando trazia minha irmã e meu comprometido. Naquele momento eu lutei para não me importar com essa reparação toda.

— Susana! Não acredito, ela veio mesmo, Mike!

Suavizei minha expressão e girei meu rosto na direção da voz estridente de Anne, que caminhava lindamente em nossa direção. Minha colega nos observou com um sorriso maior que a face, acompanhada de Michael ao seu enlaço, que não tinha uma expressão de surpresa tão diferente da dela.

— Por isso está chovendo... — O rapaz disse irônico, o canto dos lábios se estendendo, fazendo um breve aceno de cabeça para mim. — Que bom que veio, morena.

— E está linda, Su... — Anne elogiou, me deixando encabulada.

— Obrigada, você também está maravilhosa. — E estava mesmo. A blusa de mangas até os pulsos num azul celeste, a saia lápis com uma abertura suave um pouco acima do joelho direito e os sapatos altos sofisticados lhe deram um visual completamente mais elegante que o casual. Anne estava linda. Certamente tinha tirado o fôlego de Mike quando ele a reparou pela primeira vez, da mesma forma como fazia a cada segundo. — Essa é minha irmã, Lúcia Pevensie — apontei para ela sentada a minha frente, que prontamente se virou e se ergueu, toda elegante como uma rainha.

Toda elegante somente, Susana. Me repreendi por dentro e engoli em seco, espairecendo aquele pensamento de supetão.

— Encantado — Michael se apressou e apertou a mão de Lúcia, correndo as íris opacas pelo rosto dela com um sorriso charmoso. Reparei que as bochechas alvas adquiriam um tom diferente: um rosado suave. — Um prazer conhecê-la.

— O prazer é meu, obrigada.

— Lúcia... — Anne tomou a frente e a abraçou, afagando seus cabelos com suavidade. — Me chamo Anne, mas An para os mais íntimos.

Lúcia riu e me olhou rapidamente.

— Nunca ouvi você a chamar de An, Susana...

— É porque Susana é chata, não me vê como amiga.

— Isso não é verdade — eu meneio a cabeça e ri da sua expressão engraçada, me virando para John ao meu lado, que tinha seu olhar fixo em mim. — E esse é o Johnny, gente. Ele é meu...

— O oficial que a gente não conhecia — Anne ergueu a mão na direção dele ainda sentado, mas foi surpreendida por ver que John se levantou para cumprimentá-los, a postura de um militar predominando em todo seu jeito de ser. — Prazer, Johnny.

Sua mão grande envolveu a dela, as sobrancelhas retas e a boca evidenciando sorriso suave.

— Prazer.

— Você parece menor do que eu imaginava — Michael caçoou, alternando o olhar nele e na Lúcia.

John encrespou o cenho, sem entender.

— Menor?

— É, sabe como é... — Meu colega começou e eu me preparei para mais uma daquelas piadinhas sem graça de Michael. Só esperava que John tivesse a mesma compreensão e paciência que eu. Só que... Mesmo a claridade do restaurante estar escassa, eu consegui enxergar a ruga desconfiada entre as sobrancelhas dele. — ...Nós temos a visão dos militares de dois metros e cinquenta e braços de toras. Não me leva a mal, parceiro, mas lhe falta umas flexões de braço.

Eu prendi a respiração para não rir alto e encarei John com os olhos arregalados. Meu Deus, aquela piada não foi sem graça como imaginei. Eu riria em alto e bom som se soubesse como Johnny reagiria, mas prefiri não arriscar. Entretanto, ao contrário de mim, Lúcia soltou a risada que eu prendia e Anne a acompanhou. John o encarava estupefato, mas sua boca ameaçava se curvar para cima também.

— Poxa, cara, dois metros e cinquenta não é exagero, não?

— Pelo o que a gente vê, não é. Concordam comigo, senhoritas?

— Nessa eu tenho que concordar — Lúcia implementou e sorriu com eles, assistindo John também entrar na brincadeira.

— Pois saibam que eu tive o melhor preparo físico do consórcio de Michigan. — Meu comprometido se vangloriou, colocando a mão no peito.

— É difícil de acreditar... — Foi Anne que soltou daquela vez e Johnny foi mais rápido em contrapor:

— É verdade — ele disse e eu acabei rindo com eles pela sua expressão ultrajada. — Meu treinamento foi o melhor do exército americano.

"Meu treinamento foi o melhor do exército telmarino".

Meu riso diminuiu até ser confundido com o pulsar muito forte da minha caixa torácica, meus olhos se perdendo num ponto específico do restaurante que meu cérebro não processou qual era.

" — Bom, se esse é o melhor, talvez tenhamos uma chance contra eles — eu disse por fim, enquanto me perdia em seus olhos negros, desviando o olhar em seguida e mirando o alvo com o arco."

Uma respiração trêmula deixou meus lábios e senti meu corpo se arrepiar dos pés a cabeça, a boca ficar seca e meu coração propagar o ritmo doentio no peito.

Não... Por favor, não... Não faça isso comigo. Meu Deus, isso não pode acontecer de novo, senti meu músculo implorar. Senti tudo dentro de mim implorar.

Mas era tarde demais. Quando menos esperei, as imagens estavam vivíssimas em minha mente, transparecendo atrás das minhas retinas e massacrando minhas convicções.

Era um dia ensolarado. Estava perfeito para colocar em prática o que estávamos dispostos a fazer naquela batalha que ficava cada vez mais próxima.

Durante meus 15 anos de reinado na Era de Ouro, fui habituada a treinar àqueles que disponibilizavam suas vidas por Nárnia. Eram treinamentos pesados, mas em todos eles eu me habituava ao perfil de cada soldado, tendo a paciência que o Próprio Aslam me oferecia. Essas preparações sempre foram muito necessárias. Eu não tinha dúvidas quanto a isso, porque eu e meus irmãos passamos por circunstâncias que o campo de batalha se fez altamente imprescindível: a proposta de Rabadash, o príncipe de Calormânia, por exemplo.

Eu e Edmundo visitamos o monarca para considerar o pedido de casamento feito para mim. Ao chegarmos lá, descobrimos que ele era orgulhoso e desagradável, mas também percebemos o risco que corríamos de sermos raptados caso o pedido fosse recusado. Nós habilmente criamos um plano para fugir da cidade e embarcamos de volta para Cair Paravel. Após chegarmos, fomos informados de que o príncipe calormano, enfurecido, estava marchando para nos atacar; por isso nós nos empenhamos em treinar nossos alistados. Edmundo, crescido e um guerreiro habilidoso, marchou para a cidade de Anvard com Lúcia e um exército bem preparado para lutar contra Rabadash.

A situação poderia ser mil e trezentos anos a frente, mas era a mesma: precisávamos dos melhores soldados.

As flechas de alguns faunos, anões, ciclones e minotauros perpassaram o ar e atingiram todos os lados, menos o alvo que marquei em específico. Eu pressionei os lábios numa linha fina para conter um gemido insatisfeito.

— Não, nenhum acerto, majestade — Caça-trufas disse o óbvio e segurou o boneco improvisado que representava o inimigo telmarino.

Ouço alguns sons inconformados ao meu lado, e eu me recompus, olhando para cada um.

— Está tudo bem. — Os acalmei com o tom de voz firme, passando a confiança que gostaria. Eu tinha esperança de que, até o dia da guerra, eles poderiam acertar até a íris de alguém. — Roma não se fez em um dia.

— Há quanto tempo mais terei que fazer isso? — Um minotauro resmungou para o fauno ao seu lado, querendo soltar o instrumento de treinamento ao chão.

— O que é Roma? — O fauno lhe perguntou com o cenho franzido, evitando me encarar.

Eu girei meu rosto na direção deles, lutando para controlar meu nervosismo de não terem me compreendido e, ao mesmo tempo, não estarem tão empenhados em acertar o alvo.

— É só um ditado... — Estava prestes a concluir, até um dardo afiado ser perfeitamente lançado de encontro ao peito do boneco.

Girei para me certificar de que não houvera erro e, por Aslam, o acerto foi bem no centro do peito!

Caça-trufas soltou um brado de júbilo pela pontaria e eu estreitei o olhar, deveras surpresa e orgulhosa.

— Bom tiro! — Eu disse, só agora me dando conta de que o disparo não foi feito pelos dois narnianos que discutiam, nem pelos anões à minha esquerda. Encrespei minhas sobrancelhas. — Mas... Quem de vocês...?

— Boa tarde, vossa majestade.

Me virei em direção àquela voz profunda e grave.

Caspian tinha a arma com o rosto de águia em mãos e se aproximou em passos decididos, até estar ao meu lado e diante de mim com toda sua altura e imponência. Tive que pender meu rosto para trás afim de não deixar de contemplar suas esferas escuras e atentas em mim.

— Pensei que precisaria de ajuda. — Complementou ele, e eu franzi ainda mais o cenho, um pouco incomodada com suas palavras. Ou incomodada pela forma como meus sentidos reagiam com ele por perto.

— Está tudo sobre controle, obrigada. — Respondi um pouco arisca, empinando meu queixo de leve.

Caspian fez um leve aceno de cabeça, sem jeito, seus olhos agora adquirindo um brilho compassivo.

— Não quis sugerir o contrário.

— Imagino que consiga fazer melhor que isso — apontei com a cabeça o boneco, e uma expressão decidida perpetuou suas feições bonitas. Seu olhar gentil e sua postura firme fez com que, me pegando desprevinida, qualquer sentimento arredio do momento se dissipasse por completo.

— Escolha um alvo — ele sugeriu enquanto preparou seu armamento, o recarregando.

Mirei as árvores a minha frente, procurando um alvo a sua altura. Naquele momento, quis testá-lo, mas ao mesmo tempo quis conhecer até onde sua pontaria podia ser maravilhosamente boa.

E então, finalmente avistei.

— Está vendo aquela pina?

Caspian contemplou a árvore um pouco atrás da posição do texugo. Seus lábios se esticaram para cima suavemente, o furinho charmoso no queixo ficando mais proeminente.

— Sem problemas. — Assentiu, mirando o rosto da água naquela direção.

Porém, ao observá-lo com mais atenção, percebi que seu alvo era diferente do meu.

— Espere... — Pedi num sussurro baixinho demais para ele me ouvir. Me aproximei até tocar com a ponta dos dedos a composição da sua arma telmarina. Senti seus olhos girarem até estarem sobre mim e engoli em seco, ignorando o suave eriçar dos meus cabelos da nuca e pendi o atirador em suas mãos para cima, na direção que eu queria. — Aquela.

A pina estava a mais ou menos vinte metros de distância, em um dos galhos mais altos da árvore mais larga daquela paisagem. Finalmente o príncipe compreendeu qual era a fruta que eu queria e, surpreso e um pouco reluntante, ele saiu da postura encurvada e me encarou, atordoado.

— Tem certeza que quer aquela?

— É muito longe para você? — Inquiri, desafiando-o, erguendo uma sobrancelha e não evitando um sorriso.

Caspian fez a mesma expressão que eu, me olhando profundamente. Aquela decisão retornara às suas expressões com rigor e, então, ele mirou o dardo na direção do desafio, os ombros largos contraídos e os braços em posição de ataque. Fiquei ao seu lado e observei.

O disparo foi certeiro no horizonte e por pouco acertou a pina. Se Caspian tivesse soltado a respiração com suavidade e mirado um pouquíssimo, quase nada para a esquerda, ele teria acertado. Pelos céus, foi um excelente tiro!

— Não foi ruim... — Eu disse admirada, ainda com os olhos presos na pequena pina e a sequência do seu disparo se repetindo em minha memória.

— Meu treinamento foi o melhor do exército telmarino — Caspian confessou enquanto também observava o alvo e a mim.

Contemplei seu olhar e sorri, ignorando o fato do músculo entre meus ossos parecer querer guerrear ao seu lado também.

— Bom, se esse é o melhor, talvez tenhamos uma chance contra eles — eu disse por fim, enquanto me perdia em seus olhos negros, desviando o olhar em seguida e mirando o alvo com o arco.

Minha flecha acertou a pina e teve seu destino no outro lado do gramado. E graças à ela, um soldado telmarino — que observava nosso treinamento às escondidas foi revelado, se assustando sobre seu cavalo e incitando o animal a correr pelas campinas.

Eu e Caspian nos entreolhamos e, decididos, nos posicionamos com nossas armas recarregadas e disparamos na direção dele.


Assustada, eu uni minhas mãos sobre a saia e finquei as unhas na minha pele a ponto da dor, sentindo minhas pálpebras abrigarem infinitas lágrimas e meu coração correr feito um alucinado no peito.

— ...Susan? — Ouvi a voz de alguém, mas minha cabeça não quis assimilar quem era, porque ela estava muito concentrada em me fazer recordar de Caspian.

"Queria passar mais tempo com você", o timbre rouco e macio parecia ser real, como um eco perpetuando por cada canto remoto da minha mente.

"Se depender de mim, estaremos juntos por toda a vida."

"Adeus, meu amor".

— Não... Por favor, não... — Um soluço machucou minha garganta e sacudiu meu peito devido a força que eu fazia para reter o choro. — Por favor...

— Susana, pelos céus, o que está havendo? — Umas mãos sacudiram meus ombros, outras seguraram meu rosto e me forçaram a encarar o par de íris esverdeadas e cabelos loiros de um homem, o meu comprometido, mas tudo que minha mente queria mostrar eram as mechas negras até a nuca, os olhos da mesma tonalidade com aquele brilho prateado que eu tanto amava, a pele dourada...

— E-eu... — Respirei fundo, focando minha visão e obrigando minha mente e meu coração a se controlarem e terem somente o rumo que importava. — ...Eu preciso de ar! — Disse em um arfado e me levantei, deixando todos eles para trás.