The Call

II. Reencontro


POV. Susana

— Graças te damos pelo alimento. Amém.

— Atacar! — Exclamou Ed, nem se dando o trabalho de demorar a levantar e pegar a colher do bacalhau.

— Se controla, idiota — pediu Pedro contraindo seu maxilar, fazendo uma careta apesar de sorrir com aquela típica competição masculina entre irmãos. — Vai acabar com a comida toda.

Todos rimos, não poderíamos evitar.

— Vocês dois se controlem — quem acabou dizendo fui eu, apesar de soltar uma leve gargalhada com a expressão de falsa frustração de Edmundo. — Eu também quero comer.

— Eu também! — Lúcia ergueu o indicador para cima.

— Agora sim não vai sobrar nada.

— Edmundo... — Mamãe o repreendeu, sorrindo de lado, colocando uma última travessa na mesa. — Vai precisar que eu coloque pra você?

Nosso irmão mais novo se mostrou muito ofendido.

— Mãe!

— Querida, você não perde a oportunidade... — Nosso pai meneiou o rosto, os ombros tampados por uma camiseta branca e não por uma farda sacudindo de leve.

— Deixa que eu coloco pro segundo bebê da família...

— Pedro, deixe de ser ridículo — quem partiu em defesa de Ed foi Lúcia, beliscando o ombro do idiota do Pedro ao seu lado, arrancando da gente mais uma gargalhada alegre com todo aquele embate que éramos habituados e que nos fez tanta, tanta falta.

O clima era agradável, alegre e feliz. Finalmente estávamos todos juntos sem precisarmos nos esconder debaixo de uma mesa, ou ficar trancafiado dentro de um sótão. Não podíamos ser mais gratos do que demonstrávamos ser porque, para isso, seria necessário que alguém contemplasse nossa alma e visse toda nossa felicidade. Chegava a ser palpável e era... contagiante. Até papai estava conosco, o que era a coisa mais rara do mundo porque ele trabalhava demais.

Pedro foi corajoso de ter se alistado ao exército no período próximo ao fim da guerra. Acho que o destino, ou seja lá quem for se compadeceu dele e permitiu que ele não se arriscasse tanto, porque os momentos em combate chegaram ao fim. Agora, ele era um Macharel de Campo, e pretendia seguir essa causa até ter o broche de ouro de um Tenente que só quem cresce no exército britânico poderia receber. Como nosso pai, por exemplo.

Edmundo seguiu os passos da advocacia e tem se esforçado muito para ser tão justo como ele demonstrava ser nas mínimas coisas. Mesmo com todo aquele jeito retraído, implicante, até mesmo invejoso da posição de Pedro como mais velho, de Lúcia como a mais nova e mais mimada da família, Ed tinha um coração de ouro que chegava a se preocupar demais com os outros. Mais do que a ele mesmo. Era um dos defeitos dele que chegava a ser uma qualidade.

Papai conversava com eles sobre seus respectivos futuros, já que agora nosso objetivo era esse: seguir com nossas vidas nesse patamar diferente de estrada. Uma estrada que trilharíamos com afinco para conseguirmos ser aquilo que desejamos ser. Era muito legal assistir a compreensão deles, e era maravilhoso ver como nossa mãe se esforçava em ter sintonia conosco também.

— Lúcia, meu amor... — Helen Pevensie começou com todo seu carinho fraternal ao acariciar a mão de minha irmã sobre a mesa. Eu sorri enquanto as observava. — Como está sendo os estudos?

— Ótimos, mamãe — ela disse com entusiasmo, já que Lúcia estava terminando seu percurso no colégio interno Eton. — A cada período que vou passando por lá, mais difícil fica. Mas com o tempo...

— Ah, você pega o jeito — mamãe disse por fim, virando-se para mim depois de experimentar um pequeno gole do seu suco. — E você, Susana? Me conte como têm passado seu tempo, minha querida.

Eu sorri de leve.

— Aprendendo bastante também — fui sincera, porque só eu sabia o quanto estava empenhada no meu curso em psicologia aqui em Michigan. E minha mãe desconfiava.

— Eu vejo — seus lábios se esticaram para cima, gentis e fraternais. De repente, ela pareceu se lembrar de algo importante porque seu cenho se encrespou de leve. — E quando vamos conhecer seu namorado?

De repente, o silêncio caiu sobre a mesa de jantar como um meteoro de encontro a terra numa explosão sem fim. Meu pai e meus irmãos viraram suas cabeças em minha direção tão rapidamente que eu me assustei de leve, remexendo na cadeira para poder conter meu ligeiro nervosismo. Nervosismo não por estar conhecendo alguém, mas pela maneira que todos estavam me olhando agora.

Papai e Pedro estavam sérios. Parecia até que estava observando a cópia do semblante de meu pai no meu irmão. Edmundo mostrava querer rir, mas não rir de alegria, ou contentamento, mas de incredulidade. Na verdade, foi isso que aconteceu: uma risada incrédula lhe escapou da garganta enquanto ele engoliu sua colherada.

— Você está namorando e não nos disse nada?! — Ele arregalou os olhos e eu me esquivei.

— Eu disse sim. — Elevei um pouco meu tom de voz, passando firmeza nela. — Falei várias vezes em minhas cartas que estava conhecendo alguém.

— Mas você não deixou claro que estava comprometida — quem disse foi Lúcia, com a voz um pouco surrada. Quando a encarei, senti sua expressão profundamente magoada me pressionar por dentro.

— É recente, Lu... — Estiquei minha mão para segurar a dela por debaixo da mesa. — Não tem nem dois meses. Minha mãe que ficou muito empolgada e acabou dizendo antes de mim...

— E você não conhece a sua mãe, querida? — Meu pai que disse, parecendo querer tentar aliviar a situação. Todos na mesa sorriram ligeiramente. — E isso está sério mesmo? — Pela seriedade que perpetuou as expressões frias de meu pai, imaginei em qual assunto ele se direcionou.

Pensei por um rápido momento.

— Sim, está.

Tentei ignorar a sensação incômoda da boca do estômago e fui direta, sem rodeios. Eu estava comprometida com Johnny e pretendia seguir com esse compromisso até o fim, me casar, ter uma patente alta na sociedade porque ele era alguém respeitado... Enfim, eu queria viver os meus objetivos que tracei para mim mesma sem ser incomodada. Sem, principalmente, me importar com ninguém. Nem mesmo com os meus irmãos, porque pareciam que eles não gostaram da novidade nem um pouco.

Se eles soubessem que eu o convidem para jantar conosco...

A campainha tocou e eu franzi de leve o cenho, me perguntando se meus pensamentos ecoavam como ondas sonoras. Era o Johnny. É claro que só poderia ser o Johnny porque nós dois combinamos sua presença aqui para ele conhecer minha família, ficar mais próxima dela. Não esperava que todos eles o aprovassem. Só queria que entendessem que meu futuro já estava sendo traçado por mim.

— Quem é? — Lúcia franziu o cenho e eu me levantei, arrastando a cadeira junto com Pedro.

— Deixa que eu vou — pedi à ele, esticando minha mão e correndo até a porta em seguida.

Não sei porque eu estava nervosa. Era só o Johnny, pelo amor de Deus! Eu iria apresentá-lo à minha família e tenho certeza que eles iriam se familirializar com ele. Então... Por que minhas mãos estavam suadas e meu coração parecia estar inconformado com aquela situação?

Balancei a cabeça, tirando essas impressões absurdas e um medo inconveniente do peito e me estiquei, deixando meu ombros eretos e meus cabelos ajeitados. Mordi meus lábios para deixá-los mais avermelhados e abri um sorriso, finalmente girando a maçaneta.

Como o esperado, ao me ver, John esticou o canto da boca e tirou seu quepe, colocando-o sobre o peito.

— Boa noite, senhorita — seus olhos esverdeados, em sintonia com os fios loiros da cabeça, adquiriram um brilho charmoso e receptivo, especialmente quando se aproximou de mim.

— Oi, John — sorri e deixei que ele beijasse meus lábios sorrateiramente, me afastando em seguida para fechar a porta. — Cheguei a pensar que não viria.

O oficial da marinha fez uma expressão de falsa ofensa.

— Como não aceitar tal honra, querida? — ele pendurou seu quepe no cabideiro apropriado para isso ao lado da porta. — Nem passei em casa para trocar de roupa, espero que seus pais não se incomodem.

— Meu pai com certeza não vai.

Ele sorriu abertamente, se lembrando que Mr. Pevensie era tão importante na posição militar quanto ele.

— É verdade.

— Venha — segurei sua mão e entrelacei nossos dedos. — Vou te levar até eles.

Caminhamos juntos até a cozinha, e só bastou John saudar com um alto e sonoro "Boa noite" para fazer com que todos se atentem com mais profundidade à nós dois.

Desde o dia que me mudei para Michigan com meu pai, o oficial demonstrara certo interesse em me conhecer e me agradar também. Foram tantos convites para jantares, festividades, até mesmo de passeios pelo campo que chegou um dia que acabei cedendo e quis conhecê-lo melhor, além de admirar sua beleza que impactaria o coração de qualquer jovem. Fiquei surpresa por ele querer me conhecer melhor quando tinha moças de sobra que estavam atiradas em seus pés.

John era o típico homem americano, bonito de verdade e bem reservado também. Esse foi um dos motivos que me identifiquei com mais facilidade com ele: ser reservado era bom. Era excelente. Assim evitávamos perguntas desnecessárias, invasões que não fariam bem para o que almejamos: um compromisso apenas por conveniência e prazer. Eu me sentia muito bem assim.

Como o esperado, meu pai o reconheceu de primeira e se levantou, apertando sua mão de uma maneira bem receptiva e alegre, diferente de como se mostrou minutos atrás. Ao ver John fardado, Pedro e Edmundo se familirializaram mais rápido que o esperado e então, começaram uma conversa bem animada sobre a guerra e depois da guerra.

— Não esperava que você estivesse comprometido com minha filha, Lamb... — Meu pai acabou proferindo, bebericando sua taça de champanhe. — Por que nunca me informou seu interesse?

— Nossa intenção era realmente oficializar com os senhores essa noite — John se esquivou e me dirigiu um olhar compassivo, segurando minha mão por cima da mesa. — Pensei que você me esperaria, Susana.

— E eu esperei — eu disse de uma forma franca demais. — Quem acabou soltando foi minha mãe... Como ela soube, eu não faço ideia.

— Sou muito observadora quando se trata dos meus filhos — minha mãe soltou com as mãos estendidas para cima, provocando mais risos em nós. Até mesmo no Johnny.

Minha mãe de fato era observadora, porque no decorrer da conversa, ela fazia exatamente isso em silêncio. Seus olhos escuros pareciam sondar o tempo todo, o estudando, e me estudando também. Lúcia era parecida com ela nesse departamento, e só, porque ela era faladeira. No entanto, Lu ali estava estranhamente quieta a conversa toda. Se eu não tivesse tão ligada em minha irmã mais nova, teria deixado de lado sua expressão e seguiria o jantar normalmente. Mas não. Porque, assim que eu me levantei para levar a travessa de bacalhau agora vazia para cozinha, ela veio atrás de mim.

— Podemos conversar, Susana? — O tom um pouco amortecido perpetuou na voz dela. Coloquei a travessa sobre a pia e me virei, contemplando seus olhos.

— Claro.

Lúcia pensou por um momento, buscando as palavras certas.

— Você está feliz?

Fiquei um pouco surpresa pela pergunta inusitada. Pisquei por um momento, desviando o olhar do seu e procurando palavras que poderiam exemplificar o que eu estava sentido.

— Estou satisfeita — disse depois de um tempo.

— Eu não perguntei isso.

— E por que você quer saber, Lúcia?

— Porque eu te conheço. Na verdade, achei que te conhecia, porque você está diferente da Susana que convivi de três anos atrás. — Ela soltou um pouco alterada, cruzando os braços em frente ao peito, amarrotando o tecido rose em seu corpo levemente esguio. Franzi meu cenho, ficando realmente irritada com o teor daquela discussão. — O que está acontecendo?

— Pelos céus, Lúcia, do quê você está falando? — Gesticulei com as mãos porque simplesmente não consegui ficar parada. Meu coração estava acelerado graças ao nervosismo e outra coisa que não quis discernir.

— Por que não me contou que estava namorando? — Seus olhos miraram os meus e pude enxergar sua mágoa com mais exatidão. — Você sempre me contou tudo...

— Porque não era o momento — expliquei, massageando minha têmpora com os dedos e olhando para qualquer coisa que não fosse ela. Eu estava ficando cansada. — John e eu combinamos em contar essa noite, eu já disse.

— Mesmo assim. — Lúcia suspirou, meneando o rosto de um lado para o outro. — Pensei que fôssemos melhores amigas.

— Eu sempre comentei sobre ele em minhas cartas, Lúcia! — Elevei meu tom de voz, controlando o timbre para que não ficasse alto demais e ecoasse nos corredores até todo mundo na sala de jantar. — Eu falei que achava que ele estava me paquerando, não se lembra?

Ela ficou um minuto quieta, intercalando o olhar no meu.

— Paquerar e cortejar é diferente.

Ah, pelo amor de Deus!

— Sinceramente... — Bufei e passei por ela, alcançando o outro lado da cozinha e contemplando as duas esferas de safira de longe. — Essa discussão não tem o menor sentido. Você está sendo ridícula. Eu tinha razão quando falei que você precisava crescer, Lúcia, porque esse comportamento não condiz com seu tamanho.

Aquilo quebrou alguma coisa dentro de Lúcia, porque aquele brilho no olhar que pertencia somente à ela, gentil e cheio de esperança havia esvaído. Seu maxilar se contraiu, seus olhos marejaram, a garganta tremulou e eu abri minha boca assustada com sua mudança radical e comigo mesma, por ter conseguido a ferir ainda mais naquele dia.

O pedido de perdão estava na ponta da minha língua, juntamente com a raiva de mim mesma eclodindo na boca do meu estômago, mas minha irmã, àquela que eu deveria proteger, cuidar e não machucar, foi mais veloz: em passadas apressadas, ela atravessou a cozinha na tentativa de passar por mim e seguir o corredor, mas a algo a impeliu.

Os olhos molhados me observaram de perto.

— Você não entende? — Se eu não estivesse tão perto dela, jamais teria ouvido. — Não me importo que você esteja com alguém. O que me importa é saber se esse alguém te faz feliz como merece. — Sua declaração ocasiona um tremor violento em meu corpo e tudo que pude fazer foi respirar, porque a dor no peito se tornou insuportável. — Mas... A primeira coisa que escuto depois de três anos longe de você, é que eu deveria crescer. Acontece, Susana, é que eu cresci. Cresci sabendo que minha felicidade só depende de mim. Depende de como me comporto com o mundo, de não viver em negação e, principalmente, como tratar as pessoas que eu amo.

Eu fiquei quieta por alguns minutos, apenas a fitando, ouvindo o pulsar doloroso entre meus ossos. Percebi tarde demais que minha irmã estava inconformada comigo, mas ao mesmo tempo, havia chegado o seu limite de insistir. Eu a feri. Mesmo Lúcia sendo aquela moça cheia de paciência e esperança, eu já tinha dado motivo suficiente para que comigo ela não fosse mais assim.

Ela cresceu. E como todo adulto tinha de fazer, ela não insistiria mais e apenas seguiria com sua vida.

Engoli em seco.

Eu deveria estar feliz, mas...

— Você não é a minha irmã. — Proferiu tão baixinho quanto da primeira vez e, agora, fora ela que me deixou para trás.

Eu suspirei pesadamente por alguns segundos e fechei meus olhos com força na tentativa de conter as lágrimas e àquela sensação. Porém, em uma imagem extremamente familiar para mim, pude sentir que alguém me observava. Girei meu rosto naquele vão vazio e encontrei os olhos de minha mãe.

Sua forma de me encarar era a mesma que Àquele fez naquela noite.