"Obrigada novamente por me salvar. Um dia, eu te salvarei também." - Zelda Fitzgerald.

Paris, 14 de Fevereiro de 1832
Andar por uma das áreas mais conturbadas de Paris, Saint-Michel, à meia-noite não era a melhor das ideias, mas ela imaginou que não arranjaria problemas, contando que pertencia àquele lugar. Ninguém ousaria se aproximar de Éponine Thénardier, pelo menos ninguém sensato; a maioria conhecia sua coragem e sua independência. Desde que se mudara para Paris com sua família, anos atrás, nunca tivera problemas em andar sozinha tarde da noite pelo bairro onde moravam e que também possuía o maior registro de assassinatos, roubos e estupros em um raio de quinhentos quiômetros.
A neve caía leve e lentamente, como vinha acontecendo quase todos os dias desde Novembro. Éponine um dia gostara da neve, quando era uma criança; ela gostava de fazer anjos na neve, construir bonecos de neve e fazer guerra de bolas de neve com sua irmã, Azelma. Mas naquela época era diferente: a pousada que seus pais administravam era quente e aconchegante, e não havia problemas para dormir, mesmo com todo aquele frio lá fora, já seu apartamento em Paris era pequeno, frio e intimidador, e a jovem não costumava voltar até o sol surgir para aquecer um pouco o ambiente, e só então dormiria. Ao invés disso, ela passava suas noites nas ruas, mendigando e caminhando na beira do Rio Sena. Debaixo da luze das estrelas que iluminavam a cidade, a fome e o frio podiam ser esquecidos, mesmo que somente por algumas horas, e esse era o maior privilégio de uma garota miserável.
De qualquer jeito, ela não esperava que seus pés escolhessem justo aquela noite para levá-la por um caminho diferente do qual geralmente tomava, e, para a sua surpresa, a jovem foi parar em um bar iluminado e animado onde pessoas riam, bebiam e dançavam. Seus olhos se iluminaram com a possibilidade de conseguir, depois de alguns minutos insistindo, algo para comer e beber, e não passar fome naquela noite. Talvez aquele fosse seu dia de sorte, afinal.
Mas não era. Nenhum dia era o dia de sorte de Éponine Thénardier.
Antes que pudesse entrar no bar e se sentar junto a lareira para esfregar suas mãos sobre o fogo, alguns homens saíram cambaleando do bar com algumas garrafas debaixo do braço e vozes alteradas pela bebedeira. Um deles logo percebeu Éponine, que estava escondida em um canto escuro, esperando até que eles tivessem ido embora para se revelar, e assoviou para os seus companheiros:
–Vejam o que temos aqui... - Disse ele, com sua voz visivelmente embriagada. O homem apontou para a figura encolhida de Éponine no canto: -Acho que ainda não tivemos diversão o suficiente lá dentro, então Deus nos mandou outra prostituta! - Exclamou ele, e todos riram.
Um defeito de Éponine Thénardier que poderia ter causado sua morte inúmeras vezes era o seu orgulho; ela não admitia que ninguém ferisse seu orgulho, e se alguém o fizesse, ela faria questão de ferir o desta pessoa também. Se aqueles homens estavam chamando-a de cadela, então logo saberiam que ela não era uma cadela: ela era uma loba.
–Cuidado com a boca, seu idiota. - Ela saiu das sombras e cuspiu aos pés do homem que fizera o comentário maldoso, e ergueu a cabeça: -Eu não sou uma prostituta.
–Ora, mas é claro que é! - Um dos homens agarrou-a pela cintura, e levou-a para junto de seu corpo enquanto a garota tentava se desvencilhar dele; o cheiro exagerado de álcool era eminente em seu hálito. -A maioria das garotas de rua é. Você não é nenhuma burguesa, pelo o que vejo, então o que mais seria?
–O seu maior pesadelo. - Éponine cuspiu no rosto deste e chutou sua virilidade, fazendo-o cair de joelhos e uivar para cima. Os outros recuaram ligeiramente.
–Sua puta imunda - Balbuciou outro homem, um careca. Ele agarrou o braço de Éponine e torceu-o, fazendo-a gemer de dor. -Eu vou fazer você gritar pelo o que fez com ele, sua vadia, você vai gritar bem alto...?
–Não tão rápido. - Disse uma voz que vinha das sombras. Todos os homens recuaram novamente e se encolheram. As sombras revelaram ninguém menos que o Inspetor Javert da polícia de Paris. -Solte a garota.
–Mas o quê...?
–Eu disse para soltar a garota. Será que além de bêbado você também é surdo?
–Porque eu soltaria a garota?! Ela chutou o meu amigo, e também me ofendeu!
–Você a chamou de puta e vadia e ameaçou estuprá-la enquanto ela só se defendeu; não é preciso ser nenhum gênio para saber quem tem mais razão entre os dois. - Disse o Inspetor, se aproximando do homem que ainda segurava o braço de Éponine, e encarando-o com um brilho ameaçador nos olhos.
O homem, hesitantemente, soltou-a, e bufou:
–Pode ficar com ela, neste caso. Fique com a sua cadela estúpida, Inspetor, mas diga-lhe para nunca mais cruzar o meu caminho de novo, ou vai ter o que merece. - Ameaçou ele, cuspindo aos pés de Éponine. Ele fez um sinal para os companheiros, e todos saíram cambaleando em direção a escuridão. Ela somente se recuperou totalmente do choque de quase ter sido estuprada quando os homens já haviam desaparecido há muito.
–Você está bem? - Ela deu por si de frente para o Inspetor Javert, que já lhe fizera a mesma pergunta outras duas vezes, mas ela não o ouvira. Éponine balançou a cabeça e engoliu a seco. Ele assentiu. -Bom. Aqueles homens, eles... Tocaram em você?
–O que quer dizer, Inspetor?
–Você sabe o que quero dizer.
Éponine corou quando percebeu o que a palavra "tocar" significava. Ela abaixou a cabeça e balançou-a em negativa.
–Não, monsieur.
–Ótimo. Mais um minuto e eu teria chegado muito tarde.
–Obrigada.
–Desculpe...? - Ele não ouvira o agradecimento da parte de Éponine devido ao fato de que estava tão envolto em seus pensamentos sobre o que poderia ter acontecido se tivesse chegado tarde demais.
–Obrigada. Muito obrigada. - Repetiu ela, calma e lentamente. Ele assentiu, sem dizer nada. -Obrigada por ter me salvado.
–Este é o meu dever, mademoiselle.
Foi a última coisa que ele disse antes de se virar e caminhar de volta em direção às sombras.

Paris, 3 de Abril de 1832
Depois do incidente com os homens bêbados, Éponine passara a ficar dentro de casa de noite e enfrentar o frio e a neve que entrava pelas persianas. Ela deitava no canto de seu pequeno e gélido apartamento e dividia suas cobertas com Azelma, que geralmente dormia a noite toda, ao contrário de Éponine, que passava-a inteiramente pensando e devaniando sobre o que poderia ter acontecido se o Inspetor Javert não tivesse aparecido naquela noite e não a tivesse salvo daqueles homens repugnantes. Ela provavelmente nem estaria deitada ali agora, ao lado de sua irmã. Talvez algo pior tivesse acontecido... Éponine não conseguia nem ao menos pensar sobre isso sem que calafrios atingissem seu corpo e seu estômago embrulhasse.
Depois de algumas semanas, porém, a coragem e a bravura retornaram, e ela voltou a deixar o seu apartamento de noite e caminhar pelas ruas, evitando os caminhos que levavam a bares ou lugares mal iluminados frequentados por estupradores e assassinos. Ela seguia sempre o mesmo caminho, que a levava até o Café Musain, e depois de permanecer alguns minutos observando as luzes e ouvindo a música que vinha de dentro do lugar, ela suspirava, triste por não poder fazer parte daquela comemoração, onde Marius certamente estaria, dava meia volta e tomava um novo caminho que a levava para a ponte Neuf, e lá ela geralmente ficava até o amanhecer, sentada na beirada da ponte, balançando os pés sobre a água e tentando contar as estrelas, o que, depois de alguns dias, ela decidiu que era impossível. A primavera chegara havia alguns dias, então já não era tão impossível permanecer do lado de fora sem congelar; de qualquer maneira, seu apartamento era mil vezes mais frio do que qualquer lugar ao ar livre, e triste também. A ponte, pelo menos, era iluminada pela luz das estrelas, e o solitário Rio Sena lhe dava uma sensação reconfortante de que ela não estava sozinha.
Em um noite, ela descobriu que não estava realmente sozinha.
–Ora, ora, ora, se não é a minha 'Ponine... - Disse uma voz rouca atrás dela, e Éponine suspirou e revirou os olhos.
–Vá embora, Montparnasse. - Ela disse, fazendo um gesto com a mão. -Vá para junto das suas prostitutas ou de seus outros amigos. Só me deixe em paz.
Ele riu maliciosamente:
–Eles não são nada perto de você, 'Ponine... Eu te amo...?
–Não, não ama. Agora me deixe em paz.
–O que você vai fazer se eu não te deixar em paz?
–Eu vou gritar.
–Ah, eu posso te fazer gritar, e não será de dor...
Ela não esperou nem um segundo para dar um tapa que deixou a face de Montparnasse vermelha e inchada. O garoto gritou e xingou, e caiu para trás com uma das mãos por cima do machucado.
–Sua cadela desgraçada! - Rugiu ele, levantando-se de repente e se jogando para cima de Éponine, que recuou na última hora. -Eu vou te matar, sua vadia...!
Antes que ele fosse capaz de terminar a sentença, Éponine lhe deu um novo tapa, desta vez do lado esquerdo do rosto, e empurrou-o para trás. Ela estremeceu ao perceber o que havia feito: Montparnasse ficaria louco de raiva, e seria bem provável que a matasse, mas somente depois de torturá-la, estuprá-la e humilhá-la de todos os jeitos possíveis pelo o que ela fizera com ele.
Ele colocou a outra mão sobre o novo machucado, que já começava a inchar e apresentar sua vermelhidão, e rosnou para ela, indo para cima da garota:
–Sua putinha, eu vou...? - Montparnasse interrompeu sua própria fala ao ouvir sons de tiros em algum lugar não muito longe dali. Ele caiu para trás novamente e recuou, ofegante: -Droga. Deve ser a polícia... - Ele se virou para Éponine novamente. -Você vai ser presa por agressão, sua vadia.
–E você, por tentativa de estupro, se não for embora agora. Vá, saia daqui. - Disse ela, ansiosa por vê-lo bem longe dali. Se fosse realmente a polícia, eles não poderiam simplesmente prendê-la por bater em Montparnasse. Não era um crime de verdade. Ou melhor, talvez eles até lhe agradecessem: Montparnasse era um dos criminosos procurados pela polícia, e eles certamente não se importariam de saber que o "tão temível criminoso" havia levado dois tapas de uma garota com metade de seu peso e sua altura. -O que está esperando?! Vá! - Exclamou ela novamente, e Montparnasse levantou-se e saiu correndo para o outro lado da ponte, deixando-a novamente sozinha, mas somente por alguns segundos antes que o autor dos tiros que eles haviam ouvido se revelasse.
Éponine sorriu timidamente. De alguma maneira, ela sabia que havia sido ele.
Sabia que havia sido Javert.
Nas últimas semanas, ela vinha pensando quanto tempo se passaria até que eles se encontrassem de novo...
E acontecera. Num piscar de olhos, ambos estavam encarando um ao outro novamente, sem dizer uma palavra.
–Eu não precisava de ajuda. - Disse Éponine, após uma longa pausa. -Podia me virar sozinha.
–Um "obrigada" seria o suficiente.
–Isso foi um obrigada.
–Oh, desculpe, foi?
–Você só precisa saber interpretar a frase. - Ela sorriu para ele, e deu de ombros. -Mas obrigada por me salvar, de qualquer jeito. Foi engraçado ver Montparnasse assustado como um cãozinho.
–Não há de quê. Afinal, este é o meu...?
–É, é, eu sei: este é o seu dever. Mas qual será o meu, Inspetor? Ser salva por você? - Éponine riu, e até mesmo pensou ter visto um sorriso tímido passar pelo rosto indiferente de Javert.
–Talvez seja.
–Talvez... - Ela fez uma nova pausa e olhou para o céu estrelado que já começava a anunciar a alvorada. -Preciso ir agora. Obrigada novamente por me salvar. Um dia, eu te salvarei também.
–Você...?
Para não perder o hábito, Éponine interrompeu sua frase. Mas desta vez não foi com um tapa, e sim com um beijo tímido e inocente que ainda pôde ser lembrado mesmo semanas após o incidente no fim do qual a jovem correu para longe dele.

Paris, 6 de Junho de 1832
Éponine não sabia dizer se o fato de ter voltado viva das barricadas era sorte ou um milagre. Um milagre, ela decidiu, pois Éponine Thénardier nunca tivera sorte em nada. Era mais fácil acreditar em uma divindade do que em uma sorte inexistente.
Ela fez como sempre fazia, e caminhou sem rumo pelas ruas semi-iluminadas de Paris, com a mente voltada para a luta que ainda acontecia no outro lado da cidade; a jovem tentou não pensar em Marius, mas era quase impossível. Sabendo que ele podia estar tanto morto quanto vivo, aqueles pensamentos corroíam a mente de Éponine como ácido, e logo ela parou, encostou-se em um muro, chorou por alguns minutos devido à incerteza e tentou recuperar o fôlego após as lágrimas.
Foi naquele momento que ela ouviu sua voz. Sua voz.
Ele parecia estar falando com alguém, mas não. Não havia ninguém junto dele. O Inspetor Javert estava de pé sobre a beirada da ponte Neuf, a mesma ponte que havia sido o local de seu segundo encontro; ele fitava o infinito, seus lábios, os mesmos lábios que Éponine beijara, se movendo no que parecia ser uma prece silenciosa. Ela achou estranho, pois o Inspetor não fazia o tipo religioso. "Talvez não seja uma prece", ela pensou consigo. "Talvez seja só um adeus".
Um adeus. Mas um adeus á quem?
Pelo o que ela sabia, Javert não era casado, nem tinha família. Seu trabalho era seu único motivo para viver; sem esposa, sem filhos, sem ninguém no mundo a quem pudesse recorrer em um momento como aquele. Ela se sentiu triste por ele, um homem tão solitário, que não tinha nada pelo o que viver...
E então, ela o ouviu dizer o seu nome.
O seu nome. Éponine.
Por um momento, ela imaginou que estivesse delirando, mas seus devaneios foram confirmados quando ele repetiu seu nome pela segunda vez. Éponine. Ele dissera o nome dela. Ele a chamara.
–Inspetor... - Ela murmurou para a escuridão, e, por um segundo, seus olhos encontraram os dele, e ficou claro o que ele estava tentando fazer.
"Não", ela pensou, com o desespero tomando conta de si. "Ele não pode fazer isso, ele não pode... Eu não posso deixá-lo fazer isso".
Esquecendo-se do mundo por um segundo, ela correu em direção à ponte, em direção à ele, em direção à Javert...
Se Éponine tivesse esperado mais um minuto, teria sido tarde demais.
Ela o puxou para baixo, impedindo que ele se jogasse da ponte, e os dois caíram lado a lado no pavimento iluminado pelas estrelas. Novamente, ambos eram testemunhas das estrelas. Novamente, ambos estavam lado a lado, esperando até que um deles desse o próximo passo ou dissesse a próxima sentença.
Éponine não pediu uma explicação; ela sabia que ele tivera seus motivos para tentar suicídio, e eles não deveriam ser mencionados agora, ou poderiam estragar aquele momento, aquele momento tão esperado por ambos...
Com lágrimas nos olhos e soluços presos na garganta, ela se jogou contra ele e o abraçou fortemente, envolvendo seus braços ao redor de seu pescoço e segurando-o contra si mesma, como se tivesse medo de que ele escapasse mais uma vez... Não. Éponine não o deixaria escapar. De novo não.
–Éponine? - Ele perguntou, parecendo desconcentrado.
–Sim... - Ela murmurou, com a voz trêmula e um sorriso aliviado no rosto. -Sim, sou eu. Eu estou aqui. Eu ouvi você me chamar...
–Mas... Por que? Por que você veio?
Ela enxugou as lágrimas e depositou um beijo em seus lábios, encostando sua testa contra a dele, e dizendo, de olhos fechados:
–Lembra-se daquela vez em que eu lhe disse que te salvaria algum dia? - Ela perguntou, e ele assentiu. Éponine sorriu, ainda de olhos fechados: -Bem, eu achei que este talvez fosse um bom momento para cumprir essa promessa.
Ela permaneceu de olhos fechados quando sentiu os lábios do Inspetor por cima dos seus novamente.
Em outra ocasião, em outros anos, ela estaria assustada e nervosa por pensar que seu pai ou Montparnasse sairíam das sombras de repente e a veriam beijando o Inspetor Javert, a figura mais temida de Paris e também a mais odiada na casa dos Thénardier. Ela provavelmente sofreria uma grave punição, e ficaria com hematomas em todas as partes do corpo por semanas. Mas isso já não importava. Ela estava com ele agora. Estava segura. Estava segura com Javert.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.