Tesouro

Você é o meu tesouro, Izumo — capítulo único


Já era verão novamente. A neve cobrindo toda a vista e o frio da última estação finalmente encontraram seu fim temporário, enquanto que com ele uma guerra também se encerrara, e ela torcia para que dessa vez fosse algo definitivo - sem parcelas, apenas o ponto final merecido - ver o fim da organização que a privara da liberdade de escolha por cinco longos anos de sua vida era realmente um alívio, um consolo em saber que isso não se repetiria com ela, nem com ninguém, e que sua irmã mais nova estaria livre de problemas. Que ambas poderiam viver suas vidas em segurança.

Mesmo que o resultado disso fosse ela estar completamente sozinha.

Sem sua mãe, ou sua irmã.

Doía saber que Tsukumo estava viva e saudável e feliz, mas que não se lembrava mais dela. Sequer reconhecera seu rosto. Que a vida que tivera com ela e guardava em seu peito como uma promessa de um futuro melhor já não existia, pois a vida que Tsukumo tinha agora, onde desfrutava de tudo aquilo que ela adoraria poder ter dado de bom grado, era com outro nome e com outra família.

Decidir não confiar em ninguém por cinco anos a fizera petrificar um momento feliz que nunca mais voltaria, tão pouco seria dela novamente.

Ao menos a guerra fizera com que ela colocasse para fora todo o rancor que acumulara em seu peito, a deixando vazia por dentro, ao menos vazia de motivo pois seu propósito maior já havia sido cumprido.

E mais uma vez ela voltara para Kyoto na companhia de seus colegas de classe, dessa vez para um descanso merecido. Ao menos a família de Suguro parecia contente em recebê-los novamente.

E ela se encontrava sozinha mais uma vez. Não solitária, apenas sozinha. Sozinha consigo mesma e com seus pensamentos, distante de toda a energia que seus colegas traziam consigo. Naquele momento ela só queria um momento para si e a realidade que mais uma vez a surpreendera.

Mas em um lugar tão cheio de vida seria difícil estar sozinha por muito tempo.

Uma porta correra, o som da madeira deslizando facilmente, revelando Suguro do outro lado com duas latinhas, uma em cada uma das mãos.

— Me disseram que estava aqui fora.

— E não queria ser perturbada.

Ele lhe oferecera uma das latas, o suor correndo pela superfície metálica.

— Pensei que fosse querer um refresco.

— Obrigada Bon.

O tom de brincadeira que ela colocara em seu apelido, fizera com que o rosto dele ficasse vermelho.

— Ora! Deixe disso!

Ela riu, cobrindo a boca com uma das mãos.

— É quase impossível.

Suguro balançou a cabeça, constrangido, enquanto se sentava ao lado dela. Ele parecia tão jovem sem aquele moicano dourado ridículo no topo da cabeça.

Por algum motivo, ela se sentia em débito com ele.

— Obrigado por ter atendido aquela ligação. Eu realmente não sabia o que fazer, estava tão assustada que não consegui pensar em como agir.

— Difícil de imaginar você assim-

— Ei!

— Mas eu pude ouvi-la desesperada, então acho que nada mais pode me surpreender nesse mundo.

— Nem mesmo Lewin Light?

Ele negou com a cabeça.

— É principalmente por causa dele que digo isso.

— Você que quis ser discípulo dele.

— É, mas não tem porquê me agradecer Izumo. Nós somos um time, não é mesmo?

Por um instante, o frio da lata intocada em suas mãos a fez se lembrar do passado, de quando ela não enxergava ninguém naquela classe. Só a si mesma.

Tanto acontecera depois daquilo, um ano se passara.

— É. Um time - ela abrira o lacre e bebera — é bom fazer parte de um time.

A risada de Suguro era rouca.

— Eu realmente prefiro você agora.

— Obrigada.

Seus olhos se encontraram, e na falta de palavras para dizer, Suguro afagou os fios escuros dela.

— Não se esqueça de que tem amigos com quem contar.

Izumo segurou o pulso sobre sua cabeça e o tirou do lugar, sem brutalidade alguma, apenas cuidado.

— Não vou me esquecer.

E ele poderia ter dito mais alguma coisa, prolongando aquela conversa boba, mas necessária, se alguém não o houvesse chamado de dentro da casa.

— Bon! Sua mãe 'tá te procurando - era Renzo.

— Mas eu acabei de falar com ela.

— Isso não é problema meu, só estou passando o recado.

— Francamente - ele se levantou batendo uma das mãos na bermuda que usava para depois voltar sua atenção a ela — aproveite enquanto está gelada.

E saiu por onde havia entrado, mas não sem antes dar um cascudo sobre a cabeça do rosado.

— E você? Vai ficar parado aí até quando?

— Achei que quisesse ficar sozinha.

— Mas parece que você não quer me deixar sozinha, não é?

O rapaz suspirou, indo de encontro a ela.

— Não é isso, eu só estava procurando o Bon, não sabia que ele estava com você

— Sei, então sente e fique quieto assim eu consigo um pouco de sossego.

E felizmente, naquele momento, ele a escutara e ficara em silêncio, nem mesmo o piso de madeira emitira som algum quando ele se sentou ao lado dela, com ambas as mãos sustentando o corpo, seu rosto fitava o céu aberto e claro, repleto de nuvens branquinhas feito algodão doce e ela acabara por seguir o exemplo dele.

Sua mente divagava sobre o que fazer dali em diante já que agora, ela não tinha mais o mesmo motivo para se levantar da cama que meses atrás e isso, isso era diferente. Diferente de ter de lidar com dois tipos de perda, uma seguida da outra. Diferente pois com aquelas perdas, ela perdera seu maior motivo de pertencer e graças a esse infeliz motivo ela agora estava completamente livre.

Livre para fazer o que bem quisesse e como bem quisesse e nossa, que sentimento estranho era aquele.

De olhar para o céu e observar as nuvens, livres, deslizando pela tela em tom azul clarinho e entender firmemente o que aquilo significava. De se desprender completamente das raízes que a mantiveram firme em terra por tanto tempo para enfim criar as suas próprias - mas quem diria que criar raízes fosse tão desconfortante

As vezes o solo não era bom o suficiente e o tempo não colaborava para o plantio.

As vezes ela apenas sentia verdadeiramente a falta que em tempos passados fora preenchida pela presença de sua mãe e irmã, para assim reconhecer o vazio que elas haviam deixado ali dentro, quando a deixaram para trás, e doía tanto. Apenas doía reconhecer esse sentimento, ter noção de que ele existia para enfim doer mais uma vez.

E manter a mesma expressão por muito tempo era difícil, porque ela era transparente demais para esconder emoções como aquela.

Por isso Izumo passava mais tempo sozinha, mesmo tendo seus amigos por perto.

— Você não 'tá séria hoje.

— O que?

— Séria. Você sempre franze o cenho, como se estivesse sempre brava com alguém, mas hoje você não 'tá assim.

Ela deu de ombros.

— Eu não tenho motivos para estar brava com alguém.

— Nem mesmo eu?

— Eu não tenho porque ficar brava com você, eu sinto repulsa, é diferente.

E ele negou com a cabeça.

— Então o que aconteceu de diferente para essa mudança?

Izumo terminara de beber o líquido que havia dentro da latinha.

— Estive pensando na minha família, e como não tenho nenhuma agora.

— Você parece o Koneko falando desse jeito.

Ela apenas inclinou a cabeça, como se perguntasse o motivo apenas com esse gesto, o que motivara Renzo a continuar.

— Ele fica assim quando visita o túmulo da família dele, honestamente teria sido bem mais fácil se eu fosse ele, assim não precisaria ficar preso aqui por mais tempo.

— A sua família.

— É - ele suspirou voltando a observar as nuvens — seria mais simples se eu não tivesse eles no meu pé o tempo inteiro.

— Eu acho que ter uma família para quem voltar não é de todo ruim.

Ugh, nós realmente não somos parecidos.

Ela rira, rolando a lata vazia entre as mãos... talvez ele não reconhecesse o sentimento ainda...

— Já disse que somos parecidos, você só está alguns passos atrás de mim, já que ainda não perdeu alguém importante.

— Não acho que faria diferença.

— Sério? Então imagine como seria perder uma pessoa próxima de você, alguém que você veja todos os dias, só imagine acordar um dia e não ter mais essa pessoa por perto.

E por alguns minutos Renzo se calara, a observando criticamente para depois observar o gramado da pousada que pertencia a mão de Suguro.

Então ela decidira dizer mais algumas palavras.

— Por um momento, eu pensei que poderia ter a minha irmãzinha de volta, que poderia voltar a ter uma vida com ela, mas ela nem se lembra mais de mim - ela puxara um cordão que estava embaixo de sua camiseta estampada com flores ornamentais, uma chave dourada no final dele — e essa chave idiota não presta pra mais nada e ainda assim, eu guardo ela, como uma certeza de que ela vai estar bem, mesmo longe de mim e você, seu cretino idiota - continuou se inclinando e puxando um punhado de fios cor de rosa no topo da cabeça dele — tem uma família enorme por perto e ainda reclama de barriga cheia!

— Você diz isso porque não é você que é vista como a sombra do filho pródigo da família! E mesmo assim eu nem posso ter uma vida longe deles, por que conseguir isso é tão difícil? Por que ser apenas eu é tão difícil?

Ela bufou, consternada.

Ao menos agora ele conseguira deixá-la irritada.

— Porque você é um idiota Shima!

— E você precisou quase morrer para perceber que tinha amigos, Izumo! Fantástico, não acha?

O vento mudara de direção, levantando mechas do cabelo de Izumo e bloqueando o contato visual que mantinha com ele, fazendo com que bufasse brevemente.

Aquela fora a primeira vez que ela discutira com ele verdadeiramente.

— É realmente fantástico, antes eu odiava a minha linhagem e agora ela é tudo o que me restou.

— Aquelas raposas, você quis dizer.

— Isso. Aquelas raposas.

— Pelo menos vocês se dão bem, Yamantaka só sabe querer briga o tempo todo, é um saco - ele fez uma careta desgostosa — Outra lembrança do incrível Take.

— Para ser sincera eu não me dava bem com eles, isso só mudou naquela noite, foi quando eu os vi com outros olhos.

Aquela noite ficaria gravada em sua memória por vários motivos, mas o mais significativo deles seriam aqueles voltados a sua família. Naquela noite seu mundo que já havia virado de cabeça para baixo acabara voltando ao eixo graças ao esforço de pessoas que se importavam com ela mais do que ela era capaz de retribuir, e agora ela só tentava retribuir o gesto da melhor maneira possível.

O sol começa a sumir no horizonte, seus raios refletidos nas nuvens sendo o único respingo de sua presença ali, mais um dia estava chegando ao fim e o momento de sossego que ela tanto desejava manter acabou não acontecendo da maneira imaginada.

Negando com a cabeça levemente ela notara a atenção silenciosa dele sobre ela.

— O que foi agora?

— Nada, só estava pensando que você realmente não tem ficado irritada ultimamente.

Izumo apenas arqueou uma das sobrancelhas, esperando que ele continuasse.

Renzo suspirou.

— Você mudou e isso me intriga.

— Eu não mudei, apenas não deixo mais que os meus problemas me incomodem. Só isso.

— Como?

A memória do abraço que sua mãe lhe dera as portas da morte parecia mais viva do que ela se lembrava. Nunca que ela imaginou que algo daquela magnitude fosse acontecer, sua mãe lhe dando aconchego, dizendo o quão importante ela - sua filha - era.

— Minha mãe, ela me mostrou isso. A minha resposta. Ela me libertou.

Os olhos dele aumentaram levemente em alerde, assim como as sobrancelhas que subiram para o alto da testa mas tal expressão surpresa sucedera na compreensão de um sorriso sincero.

— Agora entendi, uma pena que eu não pude ver isso acontecer de verdade. Acho que teria sido divertido ver você mudar aos poucos, notar isso agora é um tanto quanto chato.

— Idiota.

— Mas é verdade.

— Você precisa ser mais sincero sobre o que sente Shima, levar tudo na brincadeira só fará com que não te levem a sério.

— E escutar isso de você deveria me fazer sentir melhor?

Ela o encarou a beira do riso.

— Deveria. É claro que deveria afinal, nós somos semelhantes, não é mesmo?

Ele não respondeu.

Era estranho parar e pensar nos níveis de relações que ela vinha mantendo com os amigos que fizera na academia, e no quanto ela permitia se abrir em cada uma delas, e de todas a que tinha com Renzo era a mais incomum... de tão comum que era.

Izumo o detestava com todas as forças, mas não conseguia se manter distante dele por muito tempo.

— Renzo, você viu a minha mãe, todos a viram, mas estou curiosa sobre o que pensou sobre ela.

E em como ela dizia o que lhe vinha a mente facilmente.

— Acho que ela deve ter sido uma mulher muito bonita.

Ela se controlara tanto para dizer apenas o necessário, mas ele, assim como os outros, tinha um talento nato em apenas fazê-la sentir-se confortável.

— Você não tem limites mesmo.

Mesmo quando ela estava sobre uma pressão incrível.

— Só digo isso por você ser filha dela, digo, você é muito bonita Izumo, então sua mãe também deve ter sido.

Ter amigos, verdadeiros amigos, era algo incrível, realmente.

— Você ainda tem aquela chave?

Uma das mãos dele desaparecera no bolso da bermuda para voltar com uma chave envelhecida.

— Tem um lugar que eu quero te mostrar, vamos?

Os dois se levantaram e buscaram por uma porta que pudesse ser usada como portal para onde Izumo queria levá-lo, sem pensar muito nos comos ou porques, ela apenas decidira seguir um desejo que brotara dentro dela naquela tarde.

O de levar Renzo até onde sua mãe estava.

— Por que me trouxe aqui?

— Você foi o único que não esteve aqui naquele dia, só queria que estivesse agora.

— Para ver a lápide da sua mãe.

A mão dela deslizara pela superfície áspera e cinzenta.

— Você é o único que a viu, na verdade, os outros resolveram ficar na escadaria.

— Tá, mas por quê Izumo?

— É importante para mim, eu perdi alguém que eu amava e eu queria te mostrar isso.

Ele olhou os entalhos e fechou os olhos por um momento ou dois, quando os abrira novamente ele não a olhava, apenas encarava o verde que cercava o lugar.

— Pronto, você já fez o que queria. Satisfeita?

Ela assentira, levantando um dos indicadores.

— Só me diga uma coisa Renzo. Se detesta tanto a sua família e amigos, mesmo gostando deles no fim, por que insistir tanto em mim? Você não vai cortar todos os laços desse jeito.

Um sorriso convencido, travesso até, se apossara da feição antes desconfortável dele, enquanto seu rosto se aproximava do dela.

— Eu sou louco por você Izumo, você é quase um tesouro 'pra mim.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.