Tudo em Maga doía. Seu rosto, suas pernas, sua barriga. Ainda tinha aguentado uma enorme ladainha de seus pais sobre os riscos que a luta representavam pra ela.

—Você é pequena, magrela e acha que pode enfrentar grandalhões? O que diabos está acontecendo com você, minha filha?

Ela se recusara a responder a seu pai. Sua mãe ficara calada, no fundo Maga achava que ela entendia sua busca e isso a confortava. Não se lembrava muito bem dos detalhes da luta, mas tinha certeza que o grandalhão trapaceara. Se ele seguisse as regras com certeza ela não teria perdido. Mas e daí? A vida não segue regras. Pessoas ruins não tem princípios ou limites e afinal, ela não lutava por diversão. E sim para endurecer. Apesar de tudo, não havia sido uma experiência de todo ruim, porém ela lamentava a intervenção de Cas. Ele podia ter se machucado... Ele havia olhado para ela com tanto amor que a assustara. Seria possível que ele também estivesse apaixonado por ela? Só havia uma maneira de descobrir: perguntando pro rapaz. Maga se sentia confusa, precisava de conselhos. Mas se falasse com Mô ela nunca entenderia, acharia que a moça era uma ladra de namorados ou algo do tipo e de qualquer forma ela sabia muito bem que a dentuça acreditava que Cas era totalmente indiferente a ela. É claro, tinha a Denise. Ela sabia que a moça ficaria extremamente feliz. E imaginava até o sábio conselho que lhe daria: “Se joga, fofa”. Mas ela era por demais fofoqueira e logo todos saberiam de tudo. Não. Ela deveria achar as respostas por si mesma. Tentou se recordar quando realmente começou a ver Cas de uma maneira diferente. Acabou por convocar memórias a muito esquecidas.

Quando completaram onze anos, Mônica se afastara dela repentinamente. Não fora intencional por parte da baixinha, ela sabia. Mas as meninas da turma começaram a se interessar por rapazes e maquiagem, enquanto ela só queria saber de comer, ler gibis e brincar de pega-pega. Quim começara a ajudar o pai com uma frequência muito maior na padoca e quanto ao Cê e os outros meninos, estavam mais preocupados com bola e vídeo-game de que qualquer outra coisa. Maga passou a ser a esquisita, magricela de poucos amigos. Que os colegas mais velhos e mais maldosos chamavam de bruxinha. Foi nessa época que ela começou a passar suas tardes com Tia Nena, ajudando a senhora a cuidar dos docinhos. Aprendera, no entanto, muito mais sobre a vida do que sobre culinária.

O tempo passado com a Tia-avó a ajudara de muitas maneiras, porém a transformara num alvo muito mais interessante para os rapazes maldosos. E quase todos os dias, depois de sair de um dia agitado na confeitaria, os valentões a encontravam e a humilhavam. Roubavam os doces de Tia Nena dava a ela todo final de expediente, a xingavam, empurravam e agrediam. Aquilo arrasava Maga, mas ela prometera que não contaria a ninguém.

Os rapazes a encontraram numa dessas vezes perto do parque. Ela tentara desviar caminho, porém fora mal sucedida. Eram dois rapazes não muito grandes, porém eram maiores que a magrela.

—Pode me passar a cesta de doces, bruxinha – disse o maior dos dois.

Ela não respondeu. Apenas ia obedientemente tirar os doces para entregar aos rapazes quando viu que Cascão os observava. Ele parecia ter acabado de sair de um jogo no campinho que ficava próximo, suado, trazia a bola debaixo do braço.

—O que tá pegando aqui, Maga?-Disse ele agressivamente. Maga não havia reparado até então como Cascão estava alto e forte para sua idade. Apesar de ser uns dois anos mais novo que os valentões, ele era um palmo mais alto que o maior deles.

—Sai daqui, cara. – disse o maior deles, zangado com a intromissão. – Tu não tem nada a ver com isso. Isso aqui é entre mim e essa bruxinha aí.

—E eu não falei com você, seu babaca. Falei com a minha amiga aqui. Se tu tem problema com ela, tem comigo. Por que é que você não me enfrenta se é tão corajoso? Em vez de ficar roubando docinhos de menininhas.

Cas parecia maior e mais forte. Sua postura estava agressiva, e o garoto recuou um pouco. Porém, ele não deixaria a menininha em paz tão facilmente. Partiu pra cima do Cascão, mas o rapaz foi mais rápido o jogou no chão. O outro garoto, assustado, saiu correndo – não ia apanhar de graça. Cascão teria continuado batendo no rapaz, se Magali não tivesse interrompido:

—Vamos, Cas – disse a menininha, arrastando o amigo para longe do garoto. –Deixa esse cara pra lá.

—Só não vou arrebentar sua cara, por que minha amiga teve pena de você. – disse ele, ameaçador. - a próxima vez que você tentar encostar nela, ou mesmo pensar em fazer algo contra ela... eu acabo com você, seu babaca.

Maga ficou impressionada com aquilo, mas se calou. Arrastou Cas para longe do menino e os dois sentaram num dos bancos da praça. Ela tirou um docinho da cesta, mas tremia tanto que nem conseguia comer.

—Maga, desde quando esses caras estão te atormentando?

—Há uns dois meses- Disse ela conseguindo por fim colocar o docinho na boca.

—E você nunca me contou?-A menininha o olhou com estranheza.-Eu sou seu amigo, não sou? Acha que é só você que eles atormentam? Como imagina que aprendi a brigar?

—Tem razão, Cas. Desde que a Mô virou mocinha os valentões vivem livres por aqui.

—Eu sei, menininha. – Disse ele ajeitando uma mecha do cabelo de Maga. –Mas você não precisa da Mô pra se defender. E de qualquer modo eu estou aqui do seu lado. Não esquece disso, tá bom?

Aquela foi a primeira vez que ele a olhou daquela maneira. Com aquele olhar tranquilo e protetor. Essa não foi, porém, a ultima vez que o rapaz a protegera. E mesmo depois de Mô reassumir as rédeas de suas próprias decisões e voltar a ser a valentona que sempre fora, quando precisava de proteção, era Cas que a mocinha buscava. Ela imaginava que fora aí que se apaixonara pelo rapaz. Naquele dia ele a levou para casa e na hora da despedida a abraçou e beijou no rosto. Hábito que ele adquiriu dali pra frente.

Quim viajou no dia de seu aniversário de quinze anos e para variar não estava presente em um dos dias mais importantes de sua vida. O pai de Joaquim não gostava nem um pouco dela e sempre fazia o que podia para boicotar o relacionamento dos dois. Inventara essa viagem de ultima hora no dia do aniversário da moça e Quim como sempre não tivera coragem de ir contra o pai.

—Desculpa, linda- Disse o rapaz tristemente. –Eu preciso ir, meu pai não dispensa minha presença. Toma seu presente.

Ele deu a ela um colar caro de ouro com um pingente em formato de sol e uma pedra de âmbar incrustrada no meio. Atrás dizia “Você é meu sol”. Lembrando disso Maga entendeu por fim por que nunca teria dado certo entre os dois. Joaquim nunca entendera que o amor é feito dos pequenos sacrifícios cotidianos e não dos enormes feitos esporádicos. Ele dera pra ela um colar que lhe custara um ano de economia. Quando o simples fato dele decepcionar um pouco o pai e estar ao lado dela no dia do aniversário lhe valeria muito mais que todo o âmbar do mundo. A moça ficara totalmente arrasada naquele dia. Quase cancelara o aniversário, mas todos os seus amigos estavam vindo e seus pais tinham gasto uma pequena fortuna para deixar tudo perfeito. Mas ela não tinha ninguém para a valsa principal e se envergonhava da fraqueza do namorado. Quando a festa começou ela tentou por tudo se esquecer, receber bem os amigos, ser bondosa e cordial. Seu pai se ofereça para dançar com ela toda a dança e ela por fim aceitara. Ele a olhara com tanta pena que ela teve vontade de chorar. Quando a hora da dança se aproximou ela precisou sair para o jardim para tomar um ar. Ela vestia um belo vestido, feito pela tia Nena. Mônica havia arrumado seu cabelo com carinho e ela estava bela. Sentou-se no banquinho do jardim e chorou copiosamente. Como ele podia fazer isso com ela? Não havia o mínimo companheirismo da parte dele e isso lhe doía como uma farpa. O que mais lhe entristecia era o fato dele ser tão bom. Por que tinha que ser? Se não fosse seria fácil terminar. Ela arrancou o colar que ele lhe deu e colocou no bolso. Não queria usar aquilo. Ouviu alguém se aproximar e limpou as lagrimas.

—Não fica assim, Maga. Ele não fez isso por mal. –Disse Cascão se sentando ao lado dela.

—Eu estou bem. Você chegou atrasado sabia? –Disse a moça sorrindo.

—O importante é que estou aqui, não é?-E sorriu de volta. Ele estava particularmente belo aquele dia. Vestia um terno e uma camisa branca, mas recusara-se a colocar gravata. O sorriso pareceu a Maga mais brilhante que o normal. Ele se levantou e curvou-se na frente dela.

—A senhorita me daria a honra da próxima dança?

—Mas a sua próxima dança é com a Cascuda e...

—Ela vai entender. Diga apenas que sim. – Ele a olhava de maneira suplicante, e ela simplesmente assentiu. Ele estendeu o braço para a moça que aceitou de boa vontade.

Dançaram não só aquela dança, como praticamente todas as outras. Maria acabou não aparecendo na festa, pois ia fazer pela primeira vez o Enem – mesmo sendo apenas o primeiro ano do ensino médio - e queria estar bem preparada. Maga mal notou a ausência da moça. Rodopiou por todo o salão com o sujinho e ela entendeu enfim o que faltava no seu relacionamento. Aquele carinho, aquela cumplicidade, aquela força. Quando enfim tocaram uma musica mais lenta ela apoiou sua cabeça no ombro do amigo e desejou que aquele momento nunca acabasse. Quando a festa terminou ele foi o ultimo a sair.

—Você está bem, Maga?-Disse ele colocando a mão no rosto da moça.

—Estou sim, Cas. Graças a você.

— Você é minha melhor amiga.

—E você o meu. Amo você, Cas. Obrigada. –Disse a moça corando.

—Eu nem ao menos te trouxe um presente...

—Você me deu o melhor de todos hoje. Não se preocupe com isso.

Naquela noite, depois de se despedir do rapaz teve certeza que o seu amor não era de amiga. E foi a partir desse dia que Maga admitiu a si mesma que era apaixonada por ele. Nunca deixou porém isso atrapalhar a amizade com o rapaz. Até o dia em que terminou com Quim e seu coração que não tinha nenhuma esperança se direcionou totalmente pro sujinho. Agora, deitada na cama, depois de um dia cansativo se perguntava o que acontecia agora. Estavam mais unidos do que nunca estiveram antes. Seria o momento ideal? Será que havia alguma chance para os dois? Por que ela não lutara por ele? Nunca nem ao menos tentara. Era óbvio que ele estava preso em um relacionamento sem amor. Seria justo ela não fazer nada? Mesmo que Maria o amasse não seria justo com ele ficar com ela por pena. Pois agora ela sabia, tinha certeza que era por ela que ele era apaixonado. O que faria, então? Maga não sabia.