Take Back the Night

Bem vindo à nova era.


Mestre Eddard ouviu o canto matinal do galo. Já era hora de levantar.

Foi buscar alguma coisa para comer na cozinha. Ainda havia sobrado alguns pães que fizera no dia anterior. Antes de terminar de arrumar as coisas para a viagem, foi acordar o pequeno Rick. Ele dormia rigidamente e se remexia bastante, sinais de pesadelos. Relutantemente, Mestre Eddard o acordou.

Enquanto Rick comia o café da manhã, o adulto terminou de arrumar os preparativos necessários. Quando a criança ficou pronta para caminhar, deu pra ela a imensa mochila.

Rick engoliu em seco.

– Vou ter que carregar? – perguntou, claramente temendo a resposta óbvia.

– Sim. Você é muito fraco. Para conseguir força, é necessário conquista-la. – Eddard disse, apontando para os seus braços finos.

– Mas essa coisa é maior que eu!

– Você não tem opção.

Rick o encarou por um segundo, então depositou a mochila em suas costas. Enfurecido, foi na frente e abriu a porta para sair da casa. Tinha que descer dois degraus para o solo. Chegando ao segundo, por causa do peso em excesso caiu de cara no chão.

Mestre Eddard não pôde evitar rir. Mas quando viu que um dos aldeões o observava incrédulo, tratou de disfarçar.

Várias pessoas já estavam acordadas, cuidando de seus trabalhos. Mestre Eddard seguiu em frente, com Rick precariamente o seguindo. Ele teria que se acostumar com o peso, pois a caminhada seria longa. Porém, valeria a pena.

Seguiram a trilha de cascalho para fora do deserto, passaram por campos, morros e até por uma floresta. Contudo depois que ultrapassaram a última árvore, se depararam com uma cena magnífica. Uma cachoeira caindo em um lago enorme, brilhando com a luz do sol, rodeado por uma antiga ponte majestosa.

Mestre Eddard gostava do silêncio e da paz, isso era sempre o que o motivava a ir a um lugar tão longe.

Ele parou bem a frente da água esperando por Rick, que estava um pouco para trás. Ameaçou sentar para descansar, porém o Mestre vetou a ideia. Depois de cinco minutos, chegou arrastando a mochila com o resto de suas forças bem limitadas. A viagem durara mais ou menos uma hora e meia, sem tempo para descanso, então Mestre Eddard não podia culpa-lo por estar cansado. Mas se quisesse deixar o garoto em forma, teria que ser duro.

Quando Rick desabou no chão, arfando, Mestre Eddard o levantou. De dentro da mochila, pegou dois cabos de madeira, um para o seu aprendiz e outro pra si mesmo. A criança ficou encarando o cabo em suas mãos.

– Te trouxe aqui para treina-lo devidamente. Eu serei o seu mestre daqui para frente. Vou ensina-lo a manusear uma arma e a matar um inimigo, para quando chegar a hora de enfrenta-lo você não precisar fugir como no outro dia, e correr o risco maior de ser a vítima.

Rick levantou o olhar. Pela primeira vez não demonstrava qualquer outra emoção além de cansaço.

– Quero ver o que já é capaz de fazer. O seu objetivo é tentar me acertar com o cabo – o Mestre disse apontando para a “arma”.

Rick olhou para o cabo que segurava e com muito esforço, avançou em um golpe na sua barriga, logo após caiu de bunda atrás de si. O golpe nem fizera cócegas.

Não vai ser nada fácil. – Eddard pensou.

– Só isso? – ele perguntou baixinho.

– Eu estou cansado! E esse cabo é mais pesado do que o normal! – Rick defendeu-se.

– É feito de ferro por dentro, e é justamente para treinar, pois simula o peso de uma espada. Enquanto te deixei de folga ontem, fui fazer isso no ferreiro. Então já teve tempo para descansar. Em pé.

* * *

Mestre Eddard mandou o Rick dar golpes em um tronco de árvore pelo resto do dia. Sim, sem nenhum tempo para o almoço e muito menos para descanso. E se Rick reclamasse da situação, só a pioraria. Quando cometeu esse erro, teve que pagar cinquenta flexões.

Mestre Eddard só ficava parado, observando diversas coisas e comendo. Rick enfurecia-se com isso, o que o dava força para os golpes.

Então, perto das cinco horas, nem se precisa dizer que Rick estava exausto.

Finalmente, o Mestre o deixou parar para comer alguma coisa. Por conta do treino em excesso, Rick estava levemente trêmulo. Seus músculos doíam a cada movimento. Quando a batata assada chegou às suas mãos, parecia um animal faminto. E o pior é que nem gostava de batata assada – pelo menos não antes.

– Tenha calma. Assim vai ter dor de barriga. – Mestre Eddard recomendou.

– Desculpa se não como nada o dia inteiro. – Rick disse de boca cheia.

– Cinquenta flexões não o ensinaram a não reclamar das coisas?

Rick calou-se. Queria descansar e não ter que fazer mais exercícios.

– Quero deixar algumas coisas bem claras por aqui, pequenino. Para começar, pare de reclamar de tudo, pois isso irrita. Você até pode ser um príncipe, mas para mim é somente o meu aprendiz.

Você só quer que eu defenda a aldeia no futuro. Nem se importa comigo. – Rick pensou amargurado. O seu novo Mestre não parecia lembrar que ele estava lá quando discutiram onde iria ficar. Rick ouviu tudo. Sua estadia na aldeia era um puro interesse de força.

– Segundo, iremos vir aqui sempre que pudermos. É o melhor jeito de evoluir nas artes marciais.

– E quando podemos vir? – Rick perguntou.

– Quando não tivermos utilidade na vila.

Que ótimo... Adeus descanso.

– Com o tempo, você vai se acostumar com o ritmo. Agora, pegue a mochila e vamos voltar. Não quero arriscar viajar à noite.

* * *

A volta pareceu mais cansativa do que a ida. Quando finalmente avistaram as casas da aldeia, Rick estava encharcado de suor e cambaleante. Não via a hora de desabar na cama. Ou melhor, tirar a mochila das costas.

O sol já se punha. Se tivessem se enrolado só um pouquinho mais no treino, não chegariam a tempo de estar em segurança na calada da noite.

A maioria das pessoas já estava em suas residências, porém Rick reconheceu alguns membros do grupo de crianças que o provocara; correndo feitos loucos entre as casas. Ele queria poder ter essa diversão novamente.

Jean saiu do cerco onde se encontrava o potrinho, todo sujo de feno. Assim que viu Rick, acenou e correu para o seu lado. Mestre Eddard continuou em frente.

– Oi. Onde se meteu o dia inteiro? – Jean perguntou curioso.

Rick tirou a mochila das costas e se apoiou nela. Era um alívio muito grande tirar todo esse peso.

– Treinar. O Mestre Eddard quer que eu seja bom em luta, para de acordo com as palavras dele, não... Precisar fugir na hora “x”.

– O Mestre Eddard está te treinando? – Jean disse com os olhos arregalados e a boca aberta.

– Sim... Por que o espanto? – Rick indagou respirando forte.

– Mestre Eddard nunca treina alguém. Algumas pessoas até pedem, mas ele nega. Diz não ter paciência para essas coisas.

Paciência é uma coisa que está em falta nele mesmo.

– Parece que ele cismou comigo. – Rick somente comentou. Não queria dizer que ele só o estava treinando por interesse.

Jean o encarou animado.

­– Você pode me dar umas dicas quando souber lutar bem como o Mestre? Eu gosto de lutar, me sentir útil. Meu pai costumava me ensinar, mas... Ele morreu. E desde a sua morte não tenho mais um professor.

Rick sentiu um peso no estômago (e definitivamente, estava cansado de pesos). Sabia como era a tristeza de perder o pai.

– Claro! Hum... Provavelmente não vai ser por agora, mas posso tentar te mostrar tudo o que eu aprender.

Jean pareceu muito contente quando saiu pra entrar em sua casa.

* * *

Rick deitou-se na sua cama e pela primeira vez, teve uma boa noite de sono, sem pesadelos ou preocupações.

* * *

Marcus IV corria feito louco pelos campos. Sua túnica vermelha esvoaçava ao vento. Atrás de si, ouvia várias pernas se mexendo rapidamente para tentar alcançar sua presa, além de gemidos grotescos.

A floresta estava a poucos metros de distância – uns quinhentos no máximo. Depois de tudo que passara, não poderia ser morto por meras aranhas e ser devorado por zumbis medíocres e irritantes.

Forçou suas próprias pernas a correr mais rápido. Correr, correr, correr. Era só o que fazia nos últimos tempos. Nunca na vida se sentira tão inútil. Quando era jovem, enfrentava diversos monstros sem nenhum medo. Com essa força, conquistou o lugar de rei em Altos Terrenos. Contudo o seu maior poder desapareceu ao longo dos anos de mordomia – a coragem.

Uma das aranhas se aproximava demais. A árvore que pretendia subir para se salvar estava perto, embora não o suficiente. A criatura deu o bote: Marcus desviou parcialmente, pois as presas enormes dela se cravaram em sua perna esquerda. Urrando, Marcus tirou o seu capacete de diamante e a usou para dar um golpe potente na cabeça da aranha; que se contorceu e relaxou a mordida, dando a chance de o seu oponente chuta-la pra longe com a perna boa.

Quase nem mancando por conta da adrenalina, continuou a corrida até a sua árvore. Finalmente chegou ao seu objetivo e enquanto subia teve que chutar diversas cabeças e corpos; até que conseguiu uma altura o suficiente para não o incomodarem mais.

Encostou-se rigidamente no tronco. Agora que estava em segurança, sua perna machucada latejava dolorosamente. Deu uma olhada melhor, jorrava muito sangue pra fora. Rasgou um pedaço de sua calça para servir de curativo, que foi enrolado em torno da ferida.

Fazia uma semana desde a invasão em Altos Terrenos e Marcus IV sempre era forçado para mais longe do reino, dificultando a intenção de descobrir o que acontecera com sua família. Tranquilizava-se falando para si mesmo que mortos não saem para dar uma volta; e se estivessem vivos, naquele caos não estariam.

Mas o seu consolo acabava quando as perguntas vinham em sua mente: E se eu nunca mais acha-los? E se... Estiverem mortos? O que eu vou fazer de agora em diante?

Escutou um ruído suspeito e deu uma espiada lá embaixo. Começou a suar frio e engoliu em seco; as aranhas davam um jeito de subir no tronco.