O Capitão Davos observava atentamente o frio e cinzento litoral da península de Ponta de Storrold. Ao longe a Floresta Assombrada era um amontoado de sombras e névoa no horizonte.
"Mãe, me permita encontrá-los." Rogou aos Sete enquanto apertava seu manto negro ao redor si junto a amurada da proa.
O vento úmido e gelado do Mar Tremente varria o convés do Betha Negra inflando suas velas e puxando o manto de Davos como uma amante ciumenta.

— Vê algo, Will? — O capitão gritou para o jovem rapaz empoleirado no cesto da gávea.

— Nada, capitão. — Will berrou contra o vento.

O garoto observava todo o horizonte através de uma pequena luneta de cobre com lentes de Myr que lhe permitia enxergar mais longe que qualquer homem, o pequeno e caro utensílio pertenceu a Davos outrora, herança de Roro Uhoris seu antigo mestre. Hoje, como todo o resto que era seu, pertencia a Patrulha da Noite; sua luneta, seu barco, sua vida.

— Emmett! — Davos gritou por seu imediato.

— Capitão! — o homem de feições duras, alto e magro, respondeu vindo da popa do Betha, atravessando o convés.

— Vou me recolher e comer alguma coisa, vamos continuar subindo em direção a Durolar, mantenha a vista do litoral mas sem perder a atenção ao mar aberto —Davos olhou ao redor para a imensidão cinzenta do mar—, qualquer coisa me chame imediatamente.

— Pode deixar capitão. — Emmett assentiu com a cabeça já despachando ordens.

Davos adentrou sua cabine abaixo do deque elevado da ponte de comando, pendurou seu manto no gancho atrás da porta e descalçou as luvas. O braserio no centro da cabine estava acesso e fornecia um pouco de calor ao ambiente, o intendente também havia deixado sua refeição sobre a mesa de baixo de um tampo de ferro negro.

— croac! — cruscitou o corvo em sua ganhola pendurada proximo a escotilha como se fosse uma saudação, Davos sabia que aquela altura a ave já estava alimentada e com a ganhola limpa, por isso apenas o ignorou.

— croac, croac...

— Quieto corvo! — Ralhou com a ave enquanto destampava seu almoço.

Obviamente já estava frio, coberto por uma grossa crosta de gordura branca. Cutucou com a colher de madeira até encontrar o caldo por baixo e não pareceu nada apetitoso. Colou a tigela junto as brasas vermelhas do braseiro e sentou junto a ele. No silencio de sua cabine, protegido do vento frio do Norte, pode notar o quanto seus homens lá fora estavam silenciosos, apreensivos com a espectativa de encontrar o Sereia Grís. A galé havia partido a alguns dias para uma patrulha de rotina pela Baia das Focas seguindo a linha do litoral ao norte, uma patrulha curta de no máximo dois dias, mas no quinto dia, quando não houve sinal da galé nem mensagem de seu corvo, Cotter Pike enviou Davos para localizá-lo.
Anos atrás o próprio capitão Davos, um dos mais leais membros da Patrulha da Noite, era um promissor contrabandista. Conquistou por conta própria, seu belo navio e sua cara reputação e já se faziam treze anos que ele fora capturado por contrabando ali naquelas mesmas águas.
Ainda lembrava do dia em que Cotter Pike e Dennis Massey encurralaram seu Betha. Houve luta, os homens sabiam o que era feito daqueles que negociavam com os selvagens. O própria Davos o sabia bem, seu antigo mestre, Roro, teve a mesma infelicidade de ser capturado e morto por tais crimes, mas, qualquer que tenha sido o propósito dos deuses para com Davos, o comandante de Atalaialeste do Mar, lhes ofereceu a fácil decisão de escolher entre a forca ou o negro. Pensou em Dale seu primogênito e primeiro imediato na época, que foi mandando para a outra extremidade da Muralha em Torre Sombria, e teve um destino cruel, morto brutalmente pelo selvagem conhecido como Chorão em uma de suas patrulhas. Pensou em seus outros rapazes bem distantes ao sul; No imprudente Allard que segundo boatos, trazidos por amigos de portos distantes, havia se juntado ao pirata Lyseno Salladhor Saan. No honesto Matthos que possuía, segundo sabia, um pequeno pesqueiro no Água Negra. No sonhador Maric que servia em uma das galés mercantes em Porto Real. E claro lembrou-se de sua amável e doce esposa, Marya e uma enorme saudade esmagou seu peito. Tudo aquilo, porém, fazia parte de outra vida.
"Sinto muito meu amor, mas não possuo mais esposa ou filhos. Sou um homem da Patrulha da Noite agora, um fantasma no fim do mundo e a única família que possuo agora são meus irmãos, homens de negro como eu, jurados a servir por toda a vida e devo encontrá-los."

—Croac, Croac! — A ave o arrancou de seus pensamentos.

— Já disse para ficar quieto, gralha escandalosa! — disse Davos voltando a dar atenção a seu cozido.

A gordura já havia se desmanchado e já se podia notar as batatas e nabos e até um naco de carne no caldo vermelho. Davos misturou tudo com a colher e retornou a mesa com a tigela, onde se serviu de pão e água doce. Tomou sua refeição com o cruscitar incessante da ave, era comum cada embarcação da patrulha navegar com pelo menos uma das aves do poleiro do meistre. Como boa parte dos capitães tais como Davos, não sabiam ler um código de fitas coloridas fora criada para deixar a Muralha a par dos acontecimentos: Um nó vermelho na pata esquerda significava pedido de socorro, naufrágio; Um nó negro significava reforços, selvagens, piratas ou contrabandista e assim por diante. Se Davos enviasse para Atalaialeste a ave com uma fita branca, significaria: Estamos retornando encontramos a galé perdida. Era a que desejava usar.
Após terminar sua refeição, se pôs de pé, pegou um graúdo grão de milho e ofereceu ao corvo.

—Grão! —A ave gritou assustadoramente humana.

Davos nunca se acostumou com a facilidade que aquelas criaturinhas aprendiam as palavras.Deitou no catre com bota e tudo apenas para um breve descanso, quando uma batida seca na porta o despertou.

—Capitão. — Era Emmett o chamando.

Levantou-se as pressas e abriu a porta, o vento frio atravessou seu corpo congelando seus ossos e lhe esbofeteando a cara. Emmett parecia contente.

— Fale homem!

— O encontramos senhor, Will tem certeza que é o Sereia, já estamos manobrando até ele.

Davos adentrou aos tropeções para buscar suas luvas e então vestir seu manto pesado e quente.

— Direção, Will! — Gritou ao rapaz na gávea enquanto atravessava o convés em meio aos homens que manuseavam velas e cordames.

— A estibordo, capitão! — disse apontando a direção.

Davos recostou o quadril na amurada e franziu os olhos e busca da embarcação. O sol já estava começando a descer a oeste o que facilitou ver o Sereia Gris a leste.

— Estão mais distante do litoral do que eu esperava. — Disse a Emmett do seu lado enquanto franzia o cenho forçando a vista.

— Parece que a vela mestra está solta, capitão! — Will gritou lá de cima.

Davos pode perceber a enorme vela drapejando ao vento como uma bandeira, os cordames soltos ao léu.

— Estão a deriva. — disse para si mesmo.

— Emmett, emparelha as galés a bombordo — ordenou ao Imediato, — Contramestre, preparar homens para abordagem, ganchos e corda a proa e a popa, a embarcação está a deriva. Todos a seus postos! — gritou aos marujos.

Os patrulheiros se espalharam pelo convés, afim de ocupar suas posições. Quatro deles, dois a proa e dois a popa preparam os gancho de abordagem.

— Capitão! — Will gritou —, sem sinal de movimento, mas vejo muitos corpos no convés. — disse com medo na voz voltando a olhar através da luneta.

Davos sentiu um arrepio na pele, um frio diferente de todos que havia experimentado desde que chegara a Muralha. Aquelas palavras teve efeito sobre os homens que se entre olharam apreensivos.

— Atenção irmãos, o primeiro grupo de abordagem irá comigo, Simon traga minha espada e broquel, iremos em direção a ponte de comando, o castelo da proa e a cabine do capitão, o segundo grupo seguirá Emmett pelo convés principal até o porão. — Davos dava ordens conformes aproximavam.

— Garth, quero você lá em cima com Will, derrube qualquer coisa que não esteja de preto! Rogar, coordene os arqueiros para nos dar cobertura na abordagem.

O silêncio tomou conta do Betha Negra conforme se aproximava, Davos afivelou o cinturão da espada, ajeitou o broquel no antebraço e vestiu um meio elmo de ferro negro, já repleto de pontos de ferrugem vermelha. Seu equipamento era bem parecido com o que seus homens usavam. Poucos se atreviam a usar couraças e armadura em alto mar, exceto por aqueles oriundos das Ilhas de Ferro, como Cotter Pike que navega seu navio trajado como um deus guerreiro feito de aço.
Aquela distância Davos já podia ver claramente os corpos no convés, todos trajavam o negro, era quase toda a tripulação notou com amargura. Olhou para cima e viu no cesto da gávea Garth com seu arco pronto para disparar a qualquer movimento suspeito. Davos usou uma barrica como escada para subir na amurada se apoiando nos cordames das velas auxiliares, pousou a mão no cabo da espada e aguardou.
Quando Betha Negra ficou lado a lado do Sereia Grís a uma distância de seis passos, Davos ordenou que os ganchos fossem lançados. Os lançadores rodopiaram os ganchos e os lançaram em uma curta parábola até a outra embarcação, o gancho se enrolou no parapeito da amurada e quando os homens puxaram, se cravou fundo na madeira.

— Puxem! — Ordenou Davos pronto para saltar.

A distância entre as duas galés foi diminuindo até que suas laterais se chocaram lentamente.

— Comigo! — Davos gritou saltando para o convés seguido por seus homens que se derramaram pelo deque principal em direção a popa. Tomaram rapidamente a Ponte de Comando e a cabine do capitão, enquanto o grupo de Emmett seguiu pela proa até o alçapão que dava acesso ao porão. Não houve luta naquela tardezinha, só haviam mortos no navio, e nenhum dos corpos eram do inimigo. Todos os mortos eram os membros da tripulação do Sereia. Davos deu ordem para que as galés fossem mantidas amarradas pelos ganchos de abordagem e procurou por Emmett.

— Como está lá embaixo?

— Seis corpos, todos irmãos. As provisões ainda estão lá. Nada foi levado, nem as armas. — Emmett respondeu confuso.

— Não parece nada com um ataque selvagem — Davos comentou olhando ao redor —, veja a disposição dos corpos, parece que mataram uns aos outros — Disse cheio de terror.

— Tive esta mesmo sensação lá embaixo, capitão, foi uma luta interna, uma luta sem vencedores.

Davos caminhou pelo convés se desviando dos corpos no açoalho e de seus homens atônitos com o cenário. Se agachou sobre o capitão.

— Não lembro do capitão Beneth ter olhos azuis — disse a Emmett que o seguia de perto.

— Ele não tinha, capitão — Emmett respondeu ansioso —, Nem o Ruff. — completou apontando para grande patrulheiro de fartos cabelos castanhos que fitava o céu cinzento com brilhantes olhos azuis.

Davos franziu o cenho. — Homens, confiram os olhos de nossos irmãos, são azuis? — ordenou a seus comandados.

Como corvos os Patrulheiros se debruçaram sobre os cadáveres. Após uma série de respostas positivas, Davos e Emmett se entre olharam com espanto.

— Isso... Isso não é possível — Davos disse coçando a cabeça —, como isso é possível Emmett?

O jovem imediato ficou em silêncio.
Os irmãos negros estavam estarrecidos com toda aquela situação. Alguns buscavam seus amoletos em busca de proteção e faziam preces silenciosas.
"Tenho que me recompor, não é hora de fraquejar Davos."

— Tragam todos os corpos para o convés, os alinhem ao centro, lado a lado. Enroleos em seus mantos. A noite está preste a cair. Vamos pernoitar aqui, amanhã consertaremos a vela mestra de volta a seu lugar e navegaremos ambos os navios de volta para Muralha, manteremos as embarcações atracadas. Os homens começaram a se movimentar e lentamente sair da inércia que tinham entrado, trocando a insegurança do desconhecido pela familiaridade de seus trabalhos.

Há noite não demorou a cair e o capitão se recolheu a sua cabine. Atiçou o braseiro ainda enrolado em seu manto negro. A noite trouxera um frio diabólico que chegava aos ossos. A cabeça de Davos dava voltas com a descoberta do Sereia e de sua tripulação de mortos. A posição dos corpos, as armas, os ferimentos, tudo indicava que houve batalha no navio, porém não contra selvagens. "Um motim." O capitão pensou com tristeza. Era a única explicação plausível. Um motim era um risco comum na patrulha da noite, muitos daqueles homens não estavam ali por livre escolha, muitos como Davos, optaram pelo negro, pois o contrário seria a forca. Não por acaso Cotter Pike levara nove anos até confiar a capitania de Betta Negra a Davos novamente, mesmo com a Patrulha carente de capitães experientes. "Mas quem, quem teria levantado o motim, e quantos? A batalha foi equilibrada afinal não houve nenhum sobrevivente, e pelas contagens de Emmett toda a tripulação estava a bordo. E aqueles olhos..." Davos estremeceu com o pensamento.
O intendente bateu na porta e em seguida abriu.

— Capitão? Trouxe sopa de cebolas e um pedaço de pão pra acompanhar. Tome enquanto ainda está quente. — O intendente entrou seguindo ritmo do balanço do navio e pousou a travessa na mesa em seu rastro veio o frio noturno do mar.

— Obrigado, Cliff. — Davos disse esfregando as mãos uma na outra após retirar as luvas para tomar sua refeição. Cliff bateu a porta ao sair e o corvo crocitou.

— Croac!

—Shh, você vai virar sopa corvo, prometo.

— Grão!

— Hora você está de papo cheio, não me amole.

Davos tomou um gole farto da sopa quente e sentiu seu calor se irradiar pelo seu peito.

— Grão!

Davos olhou para ave irritado e então um estalo em sua mente o fez abrandar. "O corvo do Sereia Grís ainda está na cabine do capitão Beneth. Como pude esquecer da ave?" Davos mergulhou o pedaço de pão na sopa e o levou a boca, se levantou chupando os dedos e pegou seu par de luvas.

Ao sair viu o convés do Betha Negra deserto, os homens buscaram refúgio daquele frio monstruoso no porão do convés, Glendon e Walmer estavam em ronda um a popa e outra a proa atentos ao mar, uma névoa sombria cobria as águas ao redor das embarcações.
Apenas um dos lampiões estava acesso junto ao mastro principal do Betha, a lua ajudava os vigias a observar os arredores.
Sem querer perturbar seus homens já tensos pelo achado sombrio de mais cedo, ele mesmo foi buscar o corvo na embarcação ao lado pegando o lampião no mastro. Betha Negra e Sereia Grís ainda estavam atados no abraço apertado de quatro cordas, Davos passou por sobre as amuradas emparelhadas dos dois navios apoiando a barriga no parapeito, girando lentamente até passar as pernas para o lado do outro navio.
Sentiu o piso do convés do Sereia estranho, se agachou e passou o dedo enluvado e levou até a luz do lampião, notou que uma leve geada cobria o assoalho, foi quando viu um vulto perto do mastro do Sereia Grís onde os corpos dos cadáveres estavam reunidos e enrolados em seus próprios mantos.

— Quem está aí?
Perguntou cauteloso mas, com autoridade.

— Capitão — Emmett respondeu, — Não há nada aqui, vim fazer uma ronda, pensei ter visto alguém, mas é só sombras, névoa — olhou para as silhuetas amontoadas no centro do navio— e mortos, acho que esse frio dos infernos tá mexendo com a minha cabeça.

— Está muito tempo aqui fora, entre e coma algo quente, logo estarei de volta.

— Davos disse com seu hálito rolando em fumaça de sua boca.

Davos adentrou a cabine do capitão. Era bastante parecida com a sua, mas tinha uma coluna de mastro bem no centro. Davos fechou a porta, pois se sentiu mais seguro assim. "Que sensação é essa nas minhas entranhas. Será apenas o frio?"
Pendurou o lampião no gancho da coluna da cabine e foi até o corvo, a ave era estranhamente silenciosa, o corvo inclinou a cabeça para ele de forma curiosa quando se aproximou.
Davos sacou do bolso um grão de milho graúdo.

—Está com fome? Hein? Aqui coma —Abriu a portinhola da gaiola e lhe ofereceu o milho.

O corvo olhou para o milho e então para Davos, o capitão ficou vidrado naqueles olhinhos negros como lascas de obsidiana, brilhantes, cheios de inteligência.

— MORTOS! — O corvo berrou.

Davos sentiu seu coração congelar em seu peito, o medo descendo pela sua espinha como uma faca fria.

Toc!Toc!Toc! Ouviu na porta.

— MORTOS! — A ave gritou outra vez.

Toc!Toc!Toc!

— Quem é?!

Um silêncio eterno se fez presente naqueles poucos segundos até que ele ouviu a voz de Emmett.

— Capitão, tudo bem aí?

— MORTOS!

— Quieta ave infernal. Está sim, Emmett.

Davos foi rapidamente até a porta e a abriu.
A mandíbula de Emmett trepidava de frio.

— Capitão, acredite em mim, tem alguma coisa de errad...

O sangue quente do Imediato jorrou no rosto de Davos, por alguns segundos foi quase agradável ter aquele sangue quente afastando o frio impiedoso de seu rosto, atônito Davos tentou entender o que aconteceu.

Emmett continua de pé a sua frente mas o topo de sua cabeça estava partido com um robusto machado cravado nele e uma torrente de sangue rubro gorgolejando da fenda. Ele caiu para o lado levando consigo o machado do atacante fincado em seu crânio, revelando o assassino que estava logo atrás dele. Davos fitou a silhueta negra de olhos azuis frios e brilhantes como estrelas.

— Be... Beneth?— Davos balbuciou diante do reconhecimento.

O capitão do Sereia Grís avançou sobre ele que tentou gritar aos seus homens, mas sua voz foi estrangulada pelo aperto feroz das mãos de Beneth.

Davos caminhou para trás lutando contra as mãos firmes do capitão em sua garganta, bateu com as costas na coluna no meio da cabine e rolaram por sobre a mesinha de canto, nesse momento a cabeça de Beneth atingiu com violência a gaiola do corvo, que se desprendeu do suporte e caiu no chão com estardalhaço, abrindo de vez a portinhola, libertando a ave.

Davos lutou com Beneth pela cabine, capitão contra capitão, vivo contra o morto, se arrependeu de não estar armado, seus pulmões doíam sem ar, sua cabeça latejava, sua visão escurecia. "Não é possível não é possível não é possível" Repetia em sua mente de forma incessante.

— Mortos, mortos, mortos. — O corvo gritava agora empoleirado no gancho onde o lampião estava pendurado.

—Capitão! — Ouviu a voz distante de um dos seus homens lhe chamar.

"Emmett? Emmett está vivo? Não, ele não pode, não pode ser..." A ponta de uma espada despontou no meio do peito do capitão Beneth quase perfurando o próprio Davos. Beneth largou o pescoço de Davos para tentar arrancar a espada das costa e Davos tombou engasgado sorvendo o ar com sofreguidão em meio as tosses.

Will o ajudou a ficar de pé e só então percebeu os sons da batalha lá fora.

— Will — Davos sussurrou rouco com a mão a garganta, — Quem? Como?
Mas o rosto confuso de Will virou uma máscara de agonia quando as mãos de Beneth agarrara seu pescoço, o puxando para a morte alheio a espada que o empalava.

Will e Beneth caíram no apertado catre do capitão, Beneth por cima dele, afogando o rapaz na palha de seu colchão velho. Davos puxou a espada enterrada nas costas de Beneth e o golpeou , uma, duas, três vezes até acertar o pescoço do homem fazendo sua cabeça tombar de lado presa apenas por um tendão do pescoço.

Davos empurrou o corpo semi decapitado pro lado e foi ajudar Will, no entanto ao virar o jovem patrulheiro notou os dois pares de olhos muito azuis e seu rosto congelado em desespero.

Davos se afastou assustado com a espada ensaguentada nas mãos. Os dois mortos, Beneth com sua cabeça larga e barbuda pendurada sobre o ombro esquerdo e Will começaram a se reerguer. "Como?" Pensou incrédulo.

— FOGO! — A ave empuleirada no gancho do lampião gritou e voou por sobre a cabeça de Davos cabine a fora.
Davos não exitou golpeou o lampião com um golpe de espada. O óleo se derramou inflamando todo que tocava.
As criaturas pareceram temer as chamas e elas arderam alto. Davos fugiu da cabine para a loucura que dominava o convés com espada em punho. A batalha se espalhou não só pelo Sereia Grís mas também no Betha Negra. Com ambos os homens trajados de negro, era difícil dizer quem estava vivo ou morto, exceto por seus olhos.
No calor da batalho Davos golpeava quem tentava o golpear primeiro e eram muitos. Logo toda a cabine do Sereia estava em chamas e o capitão temeu por Betha, o último pedaço de sua vida pregressa, a última forma de voltar para muralha.

— Homens! Separem os navios, cortem as amarras! — gritou quase em desespero.

Se os navios arderem, estava todos condenados. Correu para a primeira amarra que se partiu com dois golpes seguros de sua espada e então a segunda. Teve que golpear um dos mortos que avançou sobre ele, Davos viu seu rosto de relance, não lembrava o nome do rapaz, mas sabia que já compartilharam refeição juntos do salão de Atalaialeste. Cortou a segunda amarra e viu dos seus homens cortar a terceira, mas para sua infelicidade uma vela auxiliar do Betha se incendiou com as chamas que subiam da ponte de comando do Sereia, seu barco também começava a arder.

Davos se afastou do calor das chamas.
— Homens, fogo! Não deixem nosso barco queimar!

Porém, seus homens estavam ocupados demais lutando por suas vidas. O capitão correu para a última amarra já que seus homens estavam sendo derrubados um atrás do outro na tentativa de separar as embarcações, no entanto, cada homem seu derrubado se reerguia como um inimigo mortal. Davos, cortou mãos, varreu rostos, abriu gargantas, mas isso só parecia para-los por um pouco. Na quarta e última amarra a proa do navio, ele quase foi atingido, o machado passou por sobre sua cabeça no exato instante em que ele abaixou, o atacante era rápido e forte, era Emmett. Apenas um olho era visível em seu rosto coberto por sangue seco, sua cabeça aberta era uma visão aterradora.
Davos dançou ao balanço do mar, as chamas já devorara toda a popa do Sereia e se espalhava pelo convés na direção deles. As armações e as velas despencaram em chamas fazendo até os mortos fugirem do fogo. Alguns se lançaram no convés do Betha Negra, mas, muitos cairam no mar, na fenda que se abriu entre os navios quando as amarras foram sendo cortadas e eles começaram a se afastar. Um dos homens de Davos veio em seu auxílio, Emmett era um combatente capaz, mesmo depois de morto. Atingido por trás Davos lhe cravou a espada na garganta e no impulso o jogou no espaço entre os barcos. Com o machado caído que o próprio Emmett usava cortou a última amarra que ainda unia os dois barcos, que começou a se afastar em definitivo, com dificuldade Davos subiu na amurada o patrulheiro que o ajudou também tentou mas foi derrubado e apunhalado uma dezena de vezes pelos mortos, Davos não pode perder tempo saltou para o Betha Negra que se afastava de forma ligeira, agarrou a amurada com os dois braços, não caindo na água por pouco, as pernas tentavam buscar apoio desesperadamente.

Olhou para trás e viu o Sereia ardendo iluminando aquela noite lúgubre enquanto afundava, na água os mortos com seus olhos febris se agarravam ao casco do barco. Sua atenção se voltou para o Betha Negra a tempo de ver um morto vindo em sua direção com uma faca de cozinha, ele se esquivou e puxou a criatura por sobre a amurada aproveitando que ela estava no embalo.
Usando as forças que lhe restava ele se ergueu por sobre a amurada e rolou pelo convés. Para sua tristeza seu próprio navio estava tomado pelo fogo.
"Não os separamos a tempo! O que foi que eu fiz?"

Em meio a fumaça e fagulhas da madeira que crepitava, as criaturas corriam em busca do sangue dos vivos. Davos percebeu muito de seus homens entre eles. "Estamos perdidos, está tudo perdido. Mãe, tenha misericórdia." O mastro mestre estalou e caiu partindo o convés ao meio, nesse instante os demais mortos perceberam sua presença, não havia para onde correr, ele estava na ponta da proa do navio onde a escultura de madeira da mulher que dava nome ao barco repousava em um postura altiva.

Os mortos correram em sua direção, alguns já em chamas. Davos subiu na ponta da proa usando a escultura de Betha Negra como apoio. Mãos se ergueram para agarrar a barra de seu manto, Davos o arrancou dos ombros e jogou sobre eles, os afastando aos chutes. Murmúrios, lamentos, gritos e o rugir das chamas enchiam o mundo. Ele olhou para o mar, tentou buscar o horizonte. "Pra que lado fica a costa, cadê o litoral?"

— NADE!

Ouviu da ave que pousou na cabeça da escultura de proa de repente.
"O corvo, o maldito corvo."

— NADE! — o corvo gritou uma última vez antes de voar.

Davos sentiu o Betha Negra indo a pique, a proa subindo cada vez mais, o convés se inclinando como uma rampa, mortos escorregando e deslizando para as chamas. Ele desejou chorar, mas ainda não, ainda não era hora. Pousou a mão sobre a cabeça da senhora de madeira em uma despedida silenciosa e mergulhou, um mergulho profundo e longo no mar gelado do Norte. A água estava tão gelado que parecia queimar sua pele. Quando rompeu a superfície sugou o ar em um rugido. Melancólico, viu seu navio, sua maior conquista, pelo menos a maior conquista que lhe restara, ser consumida pelo fogo e engolida pelo mar Tremente. Uma breve lembrança dos cadáveres na água o arrebatou de sua tristeza, o medo lhe pôs a nadar. Para onde não sabia, desorientado e cego pelo escuro da noite, seguiu sem destino.

"Nade!" O alerta do corvo ainda soava em sua mente.

E ele nadou, nadou e nadou...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.