• POV Sou


Milagre ou não, eu consegui acordar na hora certa. Pelo menos hoje, eu não chegaria atrasado para as aulas, e ainda terei tempo de ver minha mãe. É, ver minha própria mãe... Ela saía tão cedo para trabalhar, que eu dificilmente a via pela manhã. Sua carga horária era pesada, e ela só retornava para casa no fim da tarde.

Sobre o meu pai, bem... Eles são separados. Às vezes eu ia visitá-lo nas férias, já que ele mora fora da cidade, mas francamente eu nem me importo. Minha relação com ele não chega nem a ser uma relação digna de pai e filho. Conversamos apenas o necessário na maioria das vezes. Acredito que a maior razão para isso seja a sua ausência, que é presente desde os meus oito anos. Eu era tão ingênuo naquele tempo que custei a entender o divórcio dos dois, mas acho que agora eu posso ver e compreender os motivos.

Pra não me perder em mil palavras, só posso resumir que minha mãe tem muito mais caráter que meu pai. Ele bebia, gastava dinheiro com jogos e só nos dava preocupação. Com certeza toda essa distância entre nós e ele, melhorou bastante minha vida e a dela.

Apesar de tudo e de ter sempre minha mãe comigo, as mágoas que tenho dele estarão sempre comigo. Isso ninguém vai tirar.

Me despedi de minha mãe com um abraço, e fui a caminho do metrô, que ficava alguns metros dali. Ainda é cedo e provavelmente essa hora não teria quase ninguém no colégio. Por um lado é ruim ficar esperando os outros, mas por outro é bom para aproveitar o curto tempo e colocar algumas anotações em dia. Quem sabe eu não tenha sorte e encontre o Ban e o Ryuto não é? Ou até mesmo o Ryosuke...

– Ah, que ótimo... – lamentei ao chegar. Como eu esperava, tinham poucas pessoas pelo colégio. Algumas meninas estavam sentadas conversando e mais outro grupinho a longe. Odeio chegar cedo demais,e odeio acima de tudo esperar. Fui para um lugar mais afastado, e me sentei em um degrau para verificar se havia alguma atividade atrasada em meu caderno.

– Ei moleque! – reconheço essa voz. É, infelizmente eu reconheço. Levantei bruscamente de onde eu estava, me preparando para o que viria a seguir.

– Shinji, já vai me encher logo de manhã? – Shinji era o líder de um tipo de gangue com valentões do colégio. Eu os odiava desde o ano passado, desde o momento que passei a ser um dos favoritos de Shinji.

Se Shinji estivesse só, eu poderia até negociar (leia-se sair correndo), mas quando ele está exatamente como agora, acompanhado, era bem mais complicado.

– Cala a boca baixinho, você sabe muito bem o que queremos. – e como bons valentões, sempre queriam se aproveitar desde as mínimas coisas até as maiores. Digamos que eu faço parte das mínimas, e ainda bem que sim.

– O mesmo de sempre não é? Pois bem, eu não vou dar o meu dinheiro. Vão procurar outro pra infernizar. – por coragem, ou até mesmo burrice, respondi lhe dando as costas.

– Espere aí, acha que vai para onde mesmo? – disse Shinji, que avançou em mim e me puxou pela blusa. Eu definitivamente estava sem sorte, pois não havia ninguém onde estávamos, e o colégio era grande demais para que me ouvissem.

– Me solta, seu idiota! – tentei me debater na esperança que Shinji me soltasse, mas eu era mais fraco e menor que ele, e obviamente em clara desvantagem.

– Peguem a mochila dele. – ordenou Shinji enquanto me segurava os braços.Vi Ogata tirar a bolsa de mim e jogá-la para os outros dois, Kohara e Naoyuki.

– Mas o que está havendo aqui?– nem acreditei ao ouvir a voz. Era...

– Ryosuke! – gritei sem esconder nem um pouco a felicidade que tive ao vê-lo.

– Solte o Sou, o que vocês pensam que estão fazendo?– Ryosuke questionou, aproximando-se mais de onde estávamos.

– Olha só, mais um. Veio dar uma de herói retardado? Sinto muito, não há nada para você aqui, vá embora.– disse Shinji, que me largou no mesmo momento e virou-se para Ryosuke.

– Bom, o retardado aqui com certeza não sou eu. – falou Ryosuke, que agora estava frente a frente com Shinji, ambos se encarando de tal forma que imaginei até faíscas saírem dos olhos dos dois.

– Shinji, melhor a gente cair fora, algumas pessoas estão vindo para cá. – comentou Kohara, que agora observava com atenção um grupinho de alunas se aproximando.

– Não pense que isso acaba aqui. – falou Shinji, que com visível irritação virou-se e andou em direção oposta a que estávamos. Logo os outros o acompanharam também, deixando minha mochila jogada ao chão.

O grupo de garotas aproximou-se de nós dois, mas com interesse no Ryosuke, obviamente. Como de costume, de vez em quando algumas garotas iam puxar assunto onde quer que ele esteja. Bom, o certo não seria puxar assunto, e sim “encher o saco”.

Nyaaa Ryosukee, que bom que te encontramos! – “Nya”? Argh, eu fico me perguntando como ele aguenta essas meninas. Me dão asco de tão grudentas que elas são. – Eu... Eu queria te entregar isso, por favor, aceite!

– Ah... Obrigado! – Ryosuke agradeceu sem jeito, pegando uma caixa embrulhada em um pano rosa de tecido fino. – Não precisava se incomodar para me dar algo...

– Não é incômodo, eu espero que goste. São alguns temakis que fiz para você... – a tal garota agora parecia enrubescer de vergonha. As amigas dela começaram a dar umas risadinhas irritantes, pareciam mais esquilos conversando.

– Mesmo assim, obrigado por ter se esforçado. – Ryosuke sorriu de maneira simpática como de costume, fazendo com que a menina abaixasse a cabeça. Essa menina deve ser um E.T, o Ryosuke sendo assim tão paciente e ela simplesmente abaixa a cabeça, o que há com ela?

– Hm... Até logo ! – disse a menina, que logo em seguida sai correndo, com suas amigas indo atrás tentando acompanhá-la.

– Que garota esquisita. – falei rispidamente enquanto observava o grupinho se afastar.

– Mas que bom que elas apareceram, porque eu não ia deixar que aquele garoto fizesse algo com você.– corei involuntariamente com o que Ryosuke disse. – Quem eles são?

– É uma longa história, mas irei resumir. É apenas um grupinho de garotos que armam confusões pelo colégio e ao redor dele. Desde o ano passado eles me enchem o saco, e quase sempre me roubam dinheiro ou algo que eu tenha na minha mochila. Eu tenho até um pouco de sorte, porque já fizeram coisas piores com outros garotos...

– Mas ninguém faz nada com eles ?

– Não. Shinji é um típico filhinho de papai, sempre dá um jeito de livrar ele e esses companheiros de punições. O máximo que fizeram com eles, foram duas suspensões... Uma foi por estragarem o festival de teatro, e a outra por fingirem um incêndio dentro da escola. – relembrei os dois acontecimentos do ano passado, e tive até vontade de rir. Tudo bem que não foram coisas louváveis, mas a cena da diretora da escola correndo desesperada é simplesmente hilária.

– Que absurdo Sou, então eles fazem o que querem e ninguém faz nada? – disse Ryosuke, com uma expressão enfurecida no rosto.– Olha, já que gostam de fazer algo com você, melhor não ficar mais sozinho, certo? E se algo acontecer de novo, me fale.

– Mas o que você vai fazer então, oh Super homem? Vai vir voando me resgatar? – comecei a rir com o que disse, imaginando Ryosuke vestindo aquela típica roupa com capa vermelha do Super homem.

– Não... Desculpe-me então, eu só queria ajudar. – vi Ryosuke fazer uma cara meio triste, deixando-me com um arrependimento enorme por ter brincado com a situação.

– Ah, desculpa... Eu só estava brincando. – expliquei apressado. Ryosuke acenou positivamente com a cabeça, demonstrando que havia entendido. – Você tem razão mesmo, vou evitar ficar sozinho, e você também deverá, pois irão te marcar na listinha deles depois do que aconteceu hoje.Mas sabe, eu prefiro ser perseguido por ''Shinji & cia'', do que por aquelas meninas que vão sempre atrás de você.

– Qual é Sou elas só estão sendo atenciosas, já que eu sou um novato aqui. – Ryosuke riu com meu comentário, fazendo-me rir também.

Atenciosas, sei. Você é muito ingênuo sabia? Mas, talvez você goste de ser rodeado por elas, hm? – perguntei curioso. Provavelmente esse seja o motivo o qual Ryosuke nunca reclamava.

– É legal receber atenção, mas não acho isso ótimo. E também não estou interessado em nenhuma delas, então tanto faz. – Ryosuke afirmou sério, mas de maneira suave ao mesmo tempo. Senti meu coração dar uma pequena acelerada, e estranhamente fiquei contente com o que ouvi. Ryosuke saiu andando sem pressa em direção ao pátio, deixando-me para trás com uma cara estupidamente boba. – Anda Sou, vamos atrás dos outros.


~


Após alguns minutos, encontramos Ryuto e Ban e começamos a contar o que havia acontecido.Ambos ficaram bastante irritados, e sugeriram que nós quatro ficássemos juntos a partir de agora. Shinji só precisa de um motivo para aprontar contra alguém, e depois de hoje, ele terá muitas razões para desprezar Ryosuke. Se ele fizesse algo, sairia totalmente ileso, já que seu pai usa e abusa de seu dinheiro e popularidade a seu favor.

Enquanto comentavam entre si, eu não conseguia disfarçar a felicidade que sentia. Anteriormente só tratei Ryosuke de maneira fria, respondendo com frases curtas ou até mesmo com silêncio. Achava que ele era só mais um menino igual aos outros, que só ligava para popularidade e coisas do gênero, mas me enganei.

Algumas perguntas passaram pela minha cabeça então.Estar feliz por causa dele soava estranho, já que Ryosuke era apenas meu mais novo colega de classe, e só isso. Só isso. “Somos apenas colegas, e ele só está sendo legal comigo porque ele é legal.” Passei a repetir mentalmente a frase, forçando minha mente a aceitar que não era nada mais além.

Fiquei tão pensativo que Ryosuke percebeu. Cutucou meu ombro, esperando com que eu o respondesse, mas permaneci em silêncio olhando para seu rosto como se estivesse processando algo em minha mente.

– Algum problema Sou? – perguntou preocupado, fazendo com que Ban e Ryuto voltassem a atenção para mim.

– Ah, não é nada, só... E se Shinji quiser se vingar de você Ryosuke?

– Que ele venha então. – quando Ryosuke terminou de falar, o alarme tocou, era hora de irmos para nossas salas.

Enquanto Ban e Ryuto andavam mais a frente, puxei Ryosuke pelo braço até certa distância, esperando que os outros não nos ouvissem.

– Ryosuke, queria te agradecer por hoje, e... Também te pedir desculpas, er... – falei embaraçado, quase atropelando as palavras. Eu devia estar parecendo um bobo, pois Ryosuke soltou um riso divertido quando me calei.

– Desculpas? Não entendi.

– É que quando te conheci, tive uma imagem diferente do que você é. Desculpe-me se te tratei mal algumas vezes, não farei mais isso. – disse com a cabeça baixa, sentindo meu rosto esquentar de vergonha.

– Ei, tudo bem. – fui pego de surpresa ao sentir uma mão de Ryosuke em meu queixo, que levantou minha cabeça para poder me olhar. – Não estava e nem estou chateado, então não há motivos para pedir desculpas. Vamos esquecer isso ok? Seremos amigos a partir de agora. – sorriu docemente, e acabei sorrindo também sem nem perceber.

Seu sorriso me transmitia tanto conforto, era como se estivesse tudo bem cada vez que eu o visse. Acenei positivamente com a cabeça para demonstrar que havia concordado.

– Agora vamos andando, temos um dia longo pela frente. – Ryosuke me puxou pelo braço, e assim nós subimos as escadas até nossa sala de aula.

O clima entre eu e ele havia mudado... Era como se nós dois tivéssemos nos conhecido já algum tempo, e espero que continue assim. Mesmo com tantas dúvidas, só tenho certeza de uma coisa: desde que eu o conheci algo mudou dentro de mim, e nem mesmo ele poderia explicar o que.