Survive

Sexto Coração - Winter Song


No pôr do sol...

Ela abriu os olhos lentamente, ainda sonolenta. Estava se iniciando mais uma noite de sobrevivência. Não estava muito disposta a correr por aí, mas não tinha escolha.

Levantou-se preguiçosamente, saindo do buraco bem escondido que ficava na floresta. Pegou o violoncelo protegido pela capa, colocando-o nas costas como uma mochila de uma alça só, a diferença era que essa seria bem mais pesada. Limpou o vestido como pôde, e então começou seu caminho. Cantarolava baixinho uma das músicas antigas que sua mãe lhe ensinara, para espantar os demônios - e era bem irônico que ela cantasse isso, pois ela mesma era um demônio.

Passou-se um tempo de paz e harmonia, ela cantando e cuidando a cada instante, vendo se não havia ninguém por perto, e algumas paradas para se localizar. Depois começou a se ouvir um ruído quase inaudível, e ele foi aumentando a medida que ela caminhava, até que ouviu um grito e automaticamente se escondeu atrás de uma árvore. Tudo se silenciou, exceto o ruído insistente e uma luz avermelhada mais adiante.

Ela se concentrou no ruído, para depois criar coragem e se aproximar. Então ela percebeu que o ruído era o crepitar de uma chama, e a luz avermelhada a própria chama.

Estava em Yamairi.

Correu pelo local em chamas, tentando encontrar alguém. Mas era inútil. Tudo o que encontrou foram corpos de Ressuscitados. Ela correu até um dos poucos lugares que ainda não estava pegando fogo.

Um templo.

Ela sentiu as pernas bambas, suando frio. Ao julgar seu estado, provavelmente haviam vários símbolos religiosos espalhados ali dentro. Talvez o simples fato daquele ser o templo já a fazia se sentir mal.

Mesmo estando perigosamente vulnerável, ela ainda gritou:

— Foi você, não é? FOI VOCÊ QUE FEZ ISSO! Qual é, cara? Não pode nos deixar em paz? Eu sou apenas uma garota que deseja conhecer a cidade grande! Custa me deixar viver?

Como em resposta, dois humanos sugiram.

— Olhe! - Gritou um deles - Um vampiro! Rápido, peguem as estacas!

A menina se desesperou com a morte tão próxima, e saiu correndo dali imediatamente. Os dois humanos gritaram, tentando segui-la, mas ela os despistou rapidamente.

Chegou até os limites de Yamairi, onde havia um barranco escuro, já no espaço da floresta.

— Ali está ela! - Foi a voz de um dos homens - Peguem-na!

Com o susto, a menina se desequilibrou e caiu rolando no barranco, parando próxima de uns arbustos. Folhas, galhos e grama grudados ao seu vestido de cor laranja.

Sentou-se no chão, atordoada.

— É...Parece que não. - Falou, referindo-se ao que dissera para sua divindade momentos antes.

Eu ouvi algo! Ela deve ter caído! Vamos, atrás dela! - Ouviu os humanos lá de cima. Resmungou e se arrastou até uns arbustos próximos, se escondendo neles. Os espinhos dos caules cutucavam suas costas e quadris, provavelmente destruindo o tecido do vestido, e até a capa do violoncelo.

Muito obrigada cara, pensou ela, referindo-se à divindade. Com dificuldade, retirou a capa do violoncelo das costas, abraçando-se à ela, tentando se concentrar em sobreviver. Ouviu passos por perto, mas ninguém a achou. Fechou os olhos, lembrando-se do dia em que tentara fugir de casa e se escondera em um dos arbustos do quintal, rezando para que ninguém a encontrasse.

Tempos depois, tudo se silenciou. Talvez tivessem desistido, foi o que ela achou. Saiu dali cuidadosamente, tentando ver os estragos do vestido. Felizmente, não era nada demais.

Colocando a capa do violoncelo às costas novamente, ela fitou o céu, o olhar raivoso.

— Eu vou fugir. E me tornarei a melhor violoncelista que esse mundo já viu - Rosnou, em desafio.

E tornou a caminhar, pisando firme.

A medida que continuava a caminhar, começou a ouvir risadinhas e gritos infantis. Se aproximou dos barulhos, e então se escondeu em uma das árvores ao notar o aglomerado de humanos.

Um grupo de crianças se divertia em uma clareira. Pareciam contar feitos de seus pais, que matavam Shikis e cometiam grandes massacres. Ao contrário do que ela ficaria, as crianças estavam muito orgulhosas de tudo isso.

Ao notar quem eram as crianças, um sorriso assustador brotou em sua face. Eram todos pirralhinhos remelentos que, sob ameaça, choravam e corriam atrás dos pais. Ela poderia desviar seu caminho por alguns instantes para assustá-los, fazê-los se perderem. Isso certamente seria muito legal.

Saiu do esconderijo, sorrindo. As crianças olharam para ela, assustadas.

— O que pirralhos fazem aqui? Sabiam que ainda existem muitas bestas morrendo de fome ao redor da floresta? Se eu fosse vocês, correria para beeeem longe, para os seus pais!

— E quem é você para falar algo, velhota? - Perguntou uma das crianças.

— Ora seu... - Ela começou a se irritar.

— Ela não é uma esquisitona que se veste como uma bruxa? - Perguntou um garotinho.

— Ela mesma! - Concordou outro - Olha só as roupas dela!

— O quê?! - Ela estava totalmente irritada - Eu não me visto como uma bruxa! Vocês que não têm estilo!

— Blá-blá-blá...Sai daqui, bruxa! - Gritou uma menina.

— É, sua...Macaca remelenta! - Xingou uma outra menina.Todos deram uma boa gargalhada, exceto, obviamente,a Shiki.

— Escuta aqui,macaca remelenta é a sua... - Ela não pôde terminar a frase, pois jogaram-lhe um pouco de lama no lado esquerdo do rosto - AI! QUEM FEZ ISSO?

As crianças começaram a gargalhar ainda mais, umas atirando pedras, outras mais lama. Algumas até atiraram galhos. A Shiki se defendia como podia, gritando e se encolhendo, até que sua paciência chegou ao limite:

— PAREM, VERMES! PAREM! OU FAREI QUESTÃO DE MATAR CADA UM DE VOCÊS E PENDURAR SEUS CORPOS NA VARANDA, INÚTEIS! - As crianças pararam por um momento, por conta do tom de voz que ela usara, e saíram correndo e gritando quando ela abriu a boca, exibindo as presas, emitindo uma espécie de rosnado.

— A besta! A besta! - Elas gritavam.

A Shiki bufou e começou a limpar o delicado vestido. Pelo menos a capa do violoncelo estava limpinha. Ela tentou terminar o trabalho o mais rápido possível, pois a qualquer momento poderiam chegar um grupo de humanos - os pais das crianças -, armados de estacas e martelos. Terminou aquilo depois de um minuto, seguindo caminho.

Chegou logo na cidade, subindo em um dos telhados das casas mais próximas, querendo ter uma visão melhor de tudo. Ainda precisaria caminhar bastante.

Ela estava na ponta do telhado, soltando a capa do violoncelo por perto. Procurava por algum vestígio de humanos, e até o momento não havia encontrado nada de suspeito. Também não percebeu que a capa do violoncelo escorregava para a borda, e não pôde evitar que caísse, acordando-a com um baque.

— Ah não...Isso não... - Resmungava baixinho enquanto se dirigia à ponta de onde teria caído seu amado violoncelo. Tentou pegá-lo, mas acabou escorregando e caindo também.

Estava deitada no chão, torcendo para que não viesse ninguém. Um vulto.

Parado diante dela, em pé, um garoto de mesma idade e bem vestido, tinha a mão estendida para ela.

— Faz quando tempo que não nos vemos, Mikoto? Venha, vou te ajudar.

***

Ela mal podia acreditar. O garoto a ajudou à se levantar, pegando e levando seu violoncelo e a guiando até a sua casa, cujo telhado ela "ocupava" minutos atrás.

Ela e o garoto tinham um "histórico" longo...Ele era neto de um adorável senhor que ensinou Mikoto à tocar violoncelo. Eles nunca se falavam, mas dava para perceber, pelo modo de vestir, que se tratava de um rapaz excêntrico. Igual à ela. E igual à Megumi, que Mikoto admirava e respeitava em silêncio.

Ele a levou até a sala, deixando o violoncelo - protegido por sua capa - sobre o sofá. Mikoto sentou-se ao lado do instrumento, e o garoto se ajeitou em uma poltrona ao lado do sofá.

— Há quanto tempo ,não? - Perguntou ele, com sua voz doce. Mikoto não podia negar: sentia uma forte atração por ele. No auge de sua adolescência, dedicara algumas canções à ele, esperando um dia poder tocá-las para o mesmo, e esperava que este sorrisse ao final de cada canção.

Doces sonhos, porém, que perderam sua força ao longo do tempo. Com 19 anos "humanos", o maior sonho de Mikoto era poder tocar em um concerto na cidade grande.

— É...Faz muito tempo mesmo... - Murmurou ela, com certa timidez.

O garoto se levantou, sumindo-se pela casa. Voltou tempo depois, carregando uma bandeja com xícaras. Era o costume de seu avô servir as visitas com chá. Isso fez Mikoto se sentir melhor.E la tomou seu chá em silêncio, e o garoto também, e este decidiu quebrar o silêncio alguns minutos depois:

— Você ressuscitou, não foi? Está fugindo dos humanos? - A pergunta direta quase fez com que Mikoto se engasgasse com o líquido quente. Nervosa, ela colocou a xícara sobre a mesinha de centro, e de repente o tapete negro da sala parecia ser a coisa mais interessante do mundo.

— Como sabe de tanto? - Era uma pergunta idiota, mas poderia desviar do assunto.

— Fui ao seu enterro - Disse o garoto simplesmente. Mikoto o fitou, incrédula.

— Você foi?

— Não deveria? - Perguntou ele com certa indiferença.

— Não...Quer dizer sim...Quer dizer...Sei lá! Não tínhamos muita ligação. Por que foi?

— Porque queria me despedir. - Essa frase ficou ecoando na cabeça de Mikoto, que tornou a olhar para o tapete.

Ele queria se despedir de mim...O que exatamente isso significa?

Sua mente trabalhava, tentando encontrar interpretações: Talvez ele gostasse dela...Não. Nunca que ele gostaria de alguém como Mikoto. Estava claro, no seu jeito de falar e agir, que ele tinha uma certa paixão por Megumi Shimizu. Ele poderia achar que ela fosse uma grande amiga...Mas como? Nunca se falaram. Depois que o avô dele morrera, ela dificilmente o via ,pois não via mais necessidade de ir na sua casa. Talvez ele simplesmente não tivesse mais nada para fazer, porém até isso não fazia muito sentido.

Ele quebrou o silêncio mais uma vez, com suas frases diretas:

— Gostaria que tocasse um pouco para mim.

Ela ficou surpresa, olhando para ele novamente. Sua face era inexpressiva. Ele realmente estava falando sério.

Cuidadosamente, ela retirou seu amado violoncelo de dentro da capa, com o arco. Posicionou-o no chão, entre as pernas, notando que não possuía nenhum arranhão. Isso a deixou feliz.

Posicionando o arco, começou a tocar as notas de uma das canções que ela havia composto unicamente para ele. A princípio seus movimentos era rígidos, pela vergonha. Ela fechou os olhos. Imaginou-se sentada no quarto do seu mestre. Tocando para ele. Imaginou seu sorriso de aprovação.

Depois começou a imaginar ela flutuando no céu, pulando sobre as notas da canção, sentindo-se livre, de um jeito inédito para ela.Logo, ela estava sentada em uma cadeira macia, tocando diante de centenas de pessoas. Usava roupas formais, e podia sentir um sorriso de canto se formando no seu rosto.

Aplausos. Centenas de aplausos, que aos poucos se tornaram um. O aplauso dele. Mikoto abriu os olhos,tornando à realidade.

Ele aplaudia, e Mikoto reconheceu - não sem um pouco de assombro - o sorriso do velho, o sorriso de aprovação, na face daquele garoto. A semelhança deles era algo extraordinário.

— Parabéns - Ele sorriu - Meu avô tinha toda razão em escolhê-la como sua aprendiz.

Ao ouvir aquilo, Mikoto sorriu. Ele se levantou, ficando diante dela.

— Obrigado. Não tem noção do quanto isso me ajudou. Agora vamos. Vão estranhar a minha ausência e virão atrás de mim. - Ele se adiantou até a porta de entrada.

— Vamos aonde? - Perguntou Mikoto, franzindo a testa.

— Para a cidade grande. Não quer ir para lá?

Novamente Mikoto fitou-o, incrédula:

— Vai me levar? Mesmo? Tem certeza que vai me ajudar?

— Sim. Você provou ter talento, Mikoto. Vou te levar lá. Levarei-a para grandes concertos. Deixarei que vejam seu talento.

— E por que fará tudo isso?

— Porque era essa a intenção do meu avô.

E dito isto, ele pareceu se lembrar de algo,indo para um dos cômodos e voltando logo depois, com um vestido mais simples, rosa claro.

— Use isso. Era da Megumi. Espero que sirva em você.

***

E lá estava Mikoto, bem vestida, o violoncelo na capa, junto do arco, no meio de suas pernas. Ela ocupava o banco do carona. O garoto no banco do motorista.

— Já tem carteira? - Perguntou ela, curiosa, quando ele entrou no carro.

— Não - Ele sorriu - Mas isso será nosso segredo - Mikoto respondeu com um sorriso cúmplice. Ele ligou o carro, e partiram.

Ele seguiu por um caminho bem calmo, e quase não se encontravam com humanos.

— O que vai fazer quando chegarmos na saída? - Perguntou Mikoto, na metade do caminho.

— Pisar fundo no acelerador - Ele sorriu. Aquela face misteriosa - iluminada apenas pela luz da lua - deixava-o irresistível.

— E eu valho tanto a pena assim?

— Claro que vale, meu amor. - A última palavra deixou Mikoto desorientada, e ela nada fez, apenas tornou a olhar para a frente. Não importa o quanto vivesse o lado dela, ela sabia, nunca descobriria quais seus verdadeiros sentimentos em relação à ela.

Uma pena. Seria ainda melhor se ela pudesse simplesmente desfrutar da segurança que os braços dele traziam.

Chegaram em uma das saídas principais. Ele buzinou com força, e os humanos - em total desespero - correram para a beirada da estrada. Passaram rapidamente pelos tais, e Mikoto não resistiu à tentação de acenar para eles com um sorrisinho. Ela ainda podia ouvir os gritos deles à alguns metros de distância, começando a gargalhar alto.

— Cidade Grande, lá vamos nós! - Ela gritou, sem esconder o entusiasmo. O garoto apenas sorriu.

E juntos eles partiam para um futuro desconhecido e encantador.

This is my winter song
December never felt so wrong
Cause youre not where you belong
Inside my arms.

(Esta é minha canção de inverno
Dezembro nunca pareceu tão errado
Por que você não esta aonde pertence
Entre meus braços)